Por Bruna Bumachar
Quando entrei pela primeira vez na Penitenciária Feminina da Capital, na capital paulista, em meados de 2008, deparei-me com uma população que girava em torno de 800 presas, sendo cerca de quase metade composta por não nacionais e a outra metade por brasileiras. Lá se encontravam estrangeiras de mais de 60 nacionalidades, com perfis variados, falantes de mais de 30 línguas, mas que traziam em comum, em 76% dos casos, a maternidade, e, em 95% dos casos, o tráfico de drogas como causa do encarceramento, todas na função de mula. A maioria maciça era primária no sistema carcerário (ao menos no brasileiro), residia anteriormente em seus países de origem e não falava português, único idioma dominado pela quase totalidade de presas brasileiras e funcionários.
Além disso, quase nenhuma chegava com qualquer noção das linguagens criminal e legal brasileiras; contava com visitas de parentes e amigos e, em função disso, enfrentava grandes desafios para consolidar redes na capital paulista que lhes ajudassem a sustentar a vida (material e afetiva) durante o cumprimento de pena. Por fim, todas elas estavam submetidas a leis, órgãos e procedimentos jurídicos, não raro, distintos dos das brasileiras, dependiam minimamente da assistência de embaixadas e consulados (que nem sempre se faziam presentes). Em compensação, ou melhor, em função dessas particularidades, elas contavam com a exclusividade dos serviços prestados pelo Instituto Terra Trabalho e Cidadania (ITTC), ONG por meio da qual realizei trabalho voluntário e de campo junto a essa parcela da população carcerária feminina.
Os serviços do ITTC são efetuados na Penitenciária Feminina da Capital uma vez por semana, durante duas horas, para cerca de sessenta estrangeiras em uma das salas de aula da escola da unidade. Sua pequena equipe, composta por cerca de 5 a 8 membros, oferece auxílio jurídico, tanto no que diz respeito ao acompanhamento dos processos judiciais criminais e ligados a seus filhos, quanto no que se refere a informações sobre direito nacional e internacional. Além disso, promove o contato delas com pessoas de fora (da penitenciária e do Brasil), via cartas e e-mails, realiza telefonemas para seus parentes e estimula e medeia a atuação de embaixadas e consulados, bem como de órgãos e autoridades brasileiros e internacionais na garantia de seus direitos.
Ao longo de quatro anos e meio, atuei como antropóloga voluntária dessa equipe. Eu fazia um pouco de tudo: registrava as dezenas de demandas semanais acerca de verificação de processos; atuava na solução de casos relacionados a problemas de saúde, negociando, por exemplo, a entrada de medicamentos enviados de outros países; registrava denúncias de agressões e violências cometidas por presas e por funcionários; escaneava e enviava milhares de e-mails escritos, à mão, pelas estrangeiras; e, depois, imprimia e entregava as respostas dos e-mails a elas na semana seguinte; telefonava para seus familiares, para defensorias públicas, para abrigos de crianças no intuito de solucionar demandas que dificilmente seriam sanadas sem esse tipo de mediação; e cheguei a escrever projeto e textos para o ITTC pleitear financiamentos e concorrer a prêmios. Com base nessas atividades, dei forma à minha tese de doutorado em antropologia social. Foi perseguindo e produzindo alguns dos fluxos intra, entre e extramuros disparados pelas demandas das estrangeiras que realizei um trabalho de campo multissituado (Marcus, 1995), dentro e fora de unidades prisionais e do Brasil, tornando assim a experiência prisional dessas mulheres objeto privilegiado de minha pesquisa.
Situando essa minha experiência como parte da produção da experiência prisional de estrangeiras, tomei como eixo articulador de meu estudo a natureza metaestável dos limites no contexto prisional. E, em diálogo com a literatura sobre prisões e migrações transnacionais, observei de que modo e em quais circunstâncias essa natureza se expressa, ora na função de impedir a passagem de certos agentes de um lado para o outro, ora na função de permitir a passagem de outros ou, ainda, simplesmente deixando de existir em certas ocasiões (Ferreira, 2005). Por um lado, busquei entender as relações que estrangeiras nutrem durante o aprisionamento nas interfaces entre os interiores e exteriores da prisão, sobretudo com seus filhos e familiares. Por outro lado, procurei investigar o modo como essas relações podem produzir novas camadas de interioridade-exterioridade da e na prisão. A ideia subjacente aqui é que não nacionais se fazem estrangeiras no fazer cotidiano dos limites da prisão, isto é, engajam-se em redes que as fazem emergir enquanto tais através dos ininterruptos e concomitantes movimentos de atravessamento e atualização das fronteiras prisionais e transnacionais.
Sem me prolongar no arcabouço teórico da tese, acho importante ressaltar apenas que o processo de constituição dessas mulheres e dos demais agentes sociais foi pensado a partir do princípio, proposto pela historiadora feminista Joan Scott (1998:304), de que eles não são indivíduos que têm experiência, mas sim sujeitos constituídos pela experiência. E, com base nesse princípio, busquei explorar, a partir de uma perspectiva de gênero, aquilo que Carlos Sautchuk (2007 hunting crossbow for beginners) denominou de praxiogenética, isto é, o estabelecimento dos sujeitos através das práticas, a sua gênese através do engajamento corporal e subjetivo em ações específicas. Afinal, conforme argumento, são as ações (imersas em uma série de relações) que fazem das não nacionais estrangeiras no fazer cotidiano da prisão.
Para fazer presas e prisão: o exercício da maternidade e a produção de copresença
São muitos os modos pelos quais se desdobram esses dois fazeres e, em cada capítulo, procurei explorar alguns deles, traçados a partir da política intramuros e do exercício da maternidade. Neste pequeno artigo, vou focar um desses modos, efetuados no exercício da maternidade, por uma simples razão: na dinâmica de meu trabalho voluntário e de campo, a gestão dos laços maternos passou a falar, de modo exemplar, da gestão das fronteiras prisionais em escala transnacional. Ou seja, através da díade mãe-filho, pude observar, de modo privilegiado, certas questões acerca da natureza metaestável dos limites de presas e prisão, atravessadas pelo gênero.
Uma das coisas, por exemplo, que mais observei na Penitenciária Feminina da Capital foi estrangeiras investirem tempo, dinheiro e energia para gerirem as relações maternas e familiares de dentro da prisão em um país exterior. Era um tal de trabalhar e fazer bicos para poder enviar dinheiro e presentes aos filhos; de tirar fotos dentro da prisão, sempre que a unidade oferecia esse serviço, para enviar aos filhos e familiares; e de fazer álbum de família, carregar no bolso ou colar na parede da cela as fotos recebidas deles. Era também um tal de efetuar ligações telefônicas clandestinas para se fazer conhecer pela voz ou para resolver problemas emergenciais das crianças; de entregar ao ITTC mensagens a serem escaneadas e enviadas por e-mail e de aguardar ansiosamente que levássemos suas respostas impressas na semana seguinte; de trocar cartas cheirosas e cuidadosamente adornadas com adesivos, desenhos, toques de crianças em tinta guache e beijos em batom, e assim por diante.
O que fui percebendo, através do vaivém dessas coisas, é que estrangeiras conseguem manter uma vida familiar a milhares de quilômetros de distância. Conseguem executar certas práticas presenciais (maternas e familiares) bastante corriqueiras, mas nada banais na distância prisional transnacional. Conseguem, por exemplo, educar, sustentar, aconselhar e acarinhar os filhos; conseguem sentir o cheiro e a pele deles, ouvir suas vozes e acompanhar o desenvolvimento físico e escolar; conseguem também conhecer novos pretendentes, namorar, transar, se casar e até enterrar familiares recém-falecidos, tudo isso de dentro da prisão por meio de cartas, e-mails (digitalizados e impressos pelo ITTC), fotografias, telefonemas, dinheiro, presentes e outros bens.
Problematizando a premissa do “maior isolamento prisional” vigente em parte dos estudos sobre não nacionais presas(os), propus, com base no princípio da “continuidade analítica” entre a prisão e o seu exterior (Cunha, 2002, 2004), a noção de copresenças para me referir a essas outras formas de estrangeiras e seus familiares se fazerem presentes onde seus corpos não estão. As copresenças foram entendidas como performances de materialidades tangíveis que se concretizam no encontro de um ou mais corpos com a materialidade enviada pelo remetente/emissor que se encontra no lado oposto. Performances que não equivalem àquela entre corpos (organismos) e nem a substituem, mas não perdem por isso sua natureza corpórea. Ou melhor, não a perdem justamente porque sua materialidade está em plena conexão física com a materialidade dos corpos tanto de remetentes quanto de destinatários por meio de uma série de técnicas executadas de um e outro lados.
Técnicas de escrita, leitura, fala, escuta, toque, cheiro e degustação; de envio, transmissão, registro e digitalização que engajam materialidades orgânicas (o organismo) com as inorgânicas (as cartas, os e-mails, as fotografias etc) transformando os corpos de estrangeiras e seus familiares em “corpos articulados” na relação entre um e outro lados. Corpos que, na definição de Latour (2008), se constituem como um[a] interface que aprende a ser afetada cada vez mais por outros elementos de que o mundo é feito. Corpos que são individuados no interior de um “nexo de agência” (Gell, 1998) entre organismos, todas aquelas “coisas” (cartas, e-mails, telefonemas, bens) e ambientes e que, portanto, carregam não apenas proposições simbólicas, mas, antes, um sistema de ações que visa transformar as fronteiras prisionais transnacionais.
Um bom exemplo disso são as maneiras que a colombiana Sandra criou para exercer quotidianamente o cuidado materno. A mobilização alternada e sucessiva de cartas, e-mails, telefonemas, dinheiro, presentes e bens considerados de primeiras necessidades tornavam Sandra materialmente presente na vida dos filhos. Por meio dos telefonemas, por exemplo, ela pôde, certa vez, solucionar as fugas residenciais e o abandono escolar da filha primogênita, de 9 anos: ligou para a menina, pediu que ela fosse ao quarto para falarem reservadamente; uma vez abrandada a situação, Sandra pediu que a menina chamasse a avó e colocasse a ligação no sistema viva voz para que as três conversassem e resolvessem o problema de uma vez por todas. O bom resultado dessa investida só foi possível porque Sandra nutria o vínculo com a menina, bem como a sua autoridade materna por meio de um corpo articulado com todas aquelas “coisas”. E, enquanto parte desse corpo, o seu telefonema possibilitou a sua presença materna nos impasses da relação entre sua mãe e sua filha.
O que procuro argumentar, na tese a partir deste e de outros casos, é que a produção de copresença é movida pelo desejo de remetentes e destinatários em superar, ora mais ora menos, o hiato espaço-temporal que os separam. De acordo com meus dados de campo, esse desejo se concretiza pelos movimentos de “aniquilação do espaço por intermédio do tempo” (Harvey, 2007) e, o contrário, de “aniquilação do tempo por intermédio do espaço”. E a atualização de um e/ou de outro depende das técnicas e dos parâmetros mobilizados por remetentes e destinatários. Não cabe entrar em detalhes aqui sobre esses dois movimentos, mas o caso de uma sul-africana (negra) nos ajudará a ter uma boa ideia deles.
Nonhlanhla se comunicava com Anella, seu marido, exclusivamente por meio de cartas. E isso se deu porque ele não tinha endereço de e-mail nem vontade de criar um. Ela até alugava os celulares, que são clandestinos na prisão, mas esse serviço era caro, limitado e, por isso, exclusivo para ela falar com o filho. O problema é que cartas demoram muito para circular, coisa de um mês para percorrer de um lado ao outro, no caso deles. Angustiados com essas restrições e desejosos de uma interação mais contínua, o casal decidiu, então, manipular o tempo, escrevendo-se três vezes por semana. Passado o recebimento da primeira carta, o intervalo de um mês entre o envio e o recebimento ficou suprimido com o contínuo fluxo das correspondências conseguintes.
Nesse caso, a modulação da velocidade das cartas operada pela técnica de envio modificou as percepções estabilizadas de um tempo único, possibilitando aos dois a produção e o compartilhamento do presente conjugal e familiar. Um presente definido não pelo parâmetro da velocidade de transmissão dos “rastros”, como ocorre com os celulares e os e-mails, mas pela sucessividade e frequência da circulação das cartas. Mas isso funcionou bem até Anela ser assassinado e ela receber essa notícia por sua irmã via e-mail. Sabendo que ele está morto, Nonhlanhla teve que enfrentar as dores de seguir recebendo as cartas do marido ainda a caminho. Em outras palavras, teve que lidar com as falhas da modulação técnica que eles haviam criado para redimensionar a distância espaço-temporal.
A história não para por aí e, diante da morte do marido, Nonhlanhla cria meios de enterrá-lo pelas fotografias para, em seguida, estabelecer outras conexões familiares em diferentes países a fim de cuidar de seu filho e nutrir sua vida dentro da prisão. O desfecho dessa história encontra-se narrado, em detalhes, na tese. Por ora, gostaria de chamar atenção, com esses dois casos para o fato de que são interações desse tipo que as estrangeiras desenvolvem no fazer cotidiano da prisão. É a partir dessas performances de materialidades tangíveis que essas mulheres criam, cotidianamente, condições para nutrir (e também serem nutridas de) cuidados e afetos de mães, filhos e demais familiares, numa nova “gramática do pertencimento” (Beleli, Miskolci, 2015) familiar, uma gramática agora mediada. É a partir dessas performances que elas criam um espaço de interação entre o interior e o exterior da prisão, a partir do qual lhes seja possível atuar e se perceber como “boas mães” (Cunha, 1994; Brito, 2007) ou, como preferem dizer, como mães de verdade.
Mães de verdade é uma noção êmica, das próprias estrangeiras, destinada àquelas que se transformam para não transformar, ou seja, que transmutam seus corpos com o intuito de preservar a responsabilidade sobre as(os) filhas(os) e manter o cuidado presencial materno no universo feminino. Mulheres que rearranjam fronteiras corporais e espaço-temporais para multiplicar os fios constitutivos e constituintes da maternidade. Que se incorporam em cartas, e-mails, fotografias e mercadorias para reiterarem certas normas e convenções de gênero. É assim que elas se fazem como um dos “materiais” (Foucault, 2007b) da arquitetura prisional, que resistem incrivelmente aos seus próprios limites físicos e aos limites da prisão. É assim que elas atuam como um dos canais de gestão dos fluxos e das fronteiras que esquadrinham uma dada cadeia. A cadeia das estrangeiras.
Um dos aspectos que a produção de copresença nos permite observar é que o exercício da maternidade é uma importante dimensão do fazer-se estrangeira no fazer cotidiano da prisão. Dois fazeres fortemente lavrados com cuidado e sofrimento, que são movidos pela busca de resoluções para a segregação. Segregação que se efetua em dobras físicas, simbólicas, lógicas, cronológicas e ontológicas, propiciando a mediação em diferentes nexos de relação. Se na Penitenciária Feminina da Capital, estrangeiras “viajam sem sair do lugar”, como certa vez escreveu Margarida, uma portuguesa de quem vim a me tornar amiga, em um conto que ela nunca concluiu, é porque tanto presas quanto prisão (in- e sub-) vertem-se em e entre interioridades e exterioridades de diferentes escalas. Multiplicam linhas de forças que as alinhavam numa experiência, a um só tempo, prisional e transnacional. Uma experiência que se desdobra nas infinitesimais dobras dos muros da prisão e do estado-nação. Uma experiência, portanto, que não é nem dentro, nem fora.
Bruna Bumachar é bacharel em ciências sociais pela USP, atua no sistema carcerário paulista junto a organizações não-governamentais desde 2006. Concluiu recentemente o doutorado direto em antropologia social, com a tese “Nem dentro, nem fora: a experiência prisional de estrangeiras em São Paulo”, defendida na Unicamp, sob orientação de Adriana Gracia Piscitelli e financiamento da Fapesp.
Referências
Beleli, I.; Miskolci, R. Apresentação. Cadernos Pagu, Campinas, n. 44: 7-11, jan./jun. 2015. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/cpa/n44/pt_0104- 8333-cpa-44-00007.pdf>. Acesso em: 10 jan. 2016.
Brito, M. A. de. “O caldo na panela de pressão: um olhar etnográfico sobre o presídio para mulheres em Florianópolis”. Mestrado em antropologia social. Universidade Federal de Santa Catarina, 2007.
Cunha, M. “Malhas que a reclusão tece. Questões de identidade numa prisão feminina”. Lisboa: Cadernos do Centro de Estudos Judiciários, 1994.
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______. “As organizações enquanto unidades de observação e de análise: o caso da prisão”. Etnográfica, v. 8, n. 1: 151-157, 2004.
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Gell, A. Art and agency: an anthropological theory. Oxford: Clarendon, 1998.
Harvey, D. A condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 2007.
Latour, B. “Como falar do corpo? A dimensão normativa dos estudos sobre a ciência”. In: Nunes, J.; Roque, R. Objectos impuros: experiências em estudos sobre a ciência. Porto: Edições Afrontamento: 39-62, 2008.
Marcus, G. “Ethnography in/of world system: the emergence of multi-sited ethnography”. Anual review of anthropology, v. 24: 95-117, 1995.
Sautchuk, C. “O arpão e o anzol: técnica e pessoa no estuário do Amazonas”. Doutorado em antropologia social. Brasília: Universidade de Brasília, 2007.
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