Por Alfredo Suppia
Cinema de ficção científica no Brasil: que bicho é esse? Foi com esse título que escrevi, há pouco mais de dez anos, um primeiro panorama do cinema brasileiro de ficção científica. Tentava percorrer uma filmografia que, por vários motivos, permanecia até então subterrânea em nossa historiografia clássica do cinema.
O texto, publicado no livro Cinema de bordas, fez um primeiro inventário de filmes por vezes completamente ignorados, ou associados a outros gêneros cinematográficos mais reconhecidos pela historiografia – o filme policial, a pornochanchada, a comédia e assim por diante. Naquela época eu cursava o doutorado em multimeios na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), sob supervisão do Prof. Dr. José Mário Ortiz Ramos, arguto observador da cultura de massa e, em especial, do cinema brasileiro. Minha tese de doutorado, com o título “Limite de alerta! Ficção científica em atmosfera rarefeita: uma introdução ao estudo da FC no cinema brasileiro e em algumas cinematografias off-Hollywood”, foi defendida em agosto de 2007, e depois publicada no formato livro pela editora Devir, com o título Atmosfera rarefeita: A ficção científica no cinema brasileiro (2013). O longo título pretendia a um só tempo homenagear um filme-chave no contexto da pesquisa – Parada 88: o limite de alerta (1978), de José de Anchieta -, introduzir e contextualizar o principal problema – a escassez e/ou invisibilidade do objeto de estudo –, e finalmente delimitar o território de investigação – o cinema brasileiro em cotejo com algumas outras cinematografias nacionais.
Tanto em meus primeiros inventários quanto em minha tese, tendi a seguir uma linha cronológica inspirada numa série de livros e enciclopédias sobre ficção científica ou cinema de ficção científica, a maioria de autores de língua inglesa, e que divide a historiografia do gênero em décadas ou períodos – com todos os problemas, adversidades e controvérsias que tal método implica. Nessa perspectiva, a ficção científica no cinema brasileiro começava a dar sinais mais claros de sua presença a partir do final da década de 1940. Uma aventura aos 40, do dramaturgo e comediante carioca Silveira Sampaio, é dos primeiros filmes nos quais podemos reconhecer pelo menos um elemento de ficção científica: uma televisão interativa do futuro. Comédia emoldurada pela especulação futurista, o filme foi lançado em 1947, mas sua fábula se passa no dia 31 de julho de 1975, quando o Prof. Carlos de Miranda completa 70 anos e é homenageado por programa de TV que leva ao ar sua biografia.
Os anos 1960 foram um período de afirmação para o cinema de ficção científica mundial e, guardadas as devidas proporções, no Brasil não me parece ter sido muito diferente. 1962 pode ser tido como um ano-chave para o cinema de ficção científica brasileiro, com o surgimento de dois filmes em particular: O quinto poder e Os cosmonautas, respectivos representantes de duas vertentes básicas no panorama brasileiro do gênero: a “sério-dramática” e a “lúdico-carnavalesca”[1] – com visível pender da balança para esta última.
O quinto poder, da Pedregal Filmes, dirigido por Alberto Pieralisi e com roteiro de Carlos Pedregal, talvez seja um dos primeiros filmes brasileiros de ficção científica genuína (ou talvez, melhor dizendo, “sério-dramática”), sobre intriga internacional em torno da ameaça da tecnologia subliminar. Aqui, agentes estrangeiros infiltrados no Brasil planejam dominar a população por meio de mensagens subliminares veiculadas por conexões clandestinas às antenas de rádio e TV. Os vilões iniciam a irradiação dos sinais subliminares, os brasileiros se tornam violentos e passam a clamar por uma revolução. Visto hoje, o filme parece sinistramente premonitório do golpe militar de 1964. Numa sequência memorável, anterior aos filmes de 007, o bondinho do Pão-de-Açúcar já é palco de um conflito internacional. Com possível inspiração em Hitchcock, Welles e Lang, o desfecho do filme será no Corcovado, com cenas magníficas do Cristo Redentor. Nessa exploração do cartão-postal da cidade como cenário de uma aventura de ficção científica, o filme de Pieralisi assemelha-se a Paris qui dort (1923), de René Clair, que apresenta a Torre Eiffel em cenas-chave. A propósito, O quinto poder opera numa vertente explorada com maestria por Fritz Lang: o filme de espionagem ou intriga internacional pontuado por referências à tecnologia.
Na comédia de ficção científica Os cosmonautas, produzida pela Herbert Richers, um cientista brasileiro sonha levar conterrâneos astronautas à Lua. Com argumento e direção de Victor Lima, essa chanchada tardia foi lançada pouco depois da crise dos mísseis de Cuba, coincidência que realçou seu discurso pacifista – na esteira de O dia em que a Terra parou (The day the earth stood still, 1951), de Robert Wise.
Segundo Phil Hardy (1995), os anos 1960 são a década em que o cinema de ficção científica se torna respeitável e, talvez o mais importante, se internacionaliza, atraindo o interesse de cineastas-autores e se oferecendo como terreno de variadas experimentações. Nesse mesmo período, no Brasil, o cinema de ficção científica inicialmente dá mostras de um desenvolvimento promissor, porém termina a década aparentemente sufocado por preconceitos, carências infraestruturais, coerções de ordem artística ou ideológica e um possível fracasso em cumprir propostas programáticas que extrapolavam o exercício de um gênero. Destacam-se, no início da década, filmes como O quinto poder e Os cosmonautas, “cabeças-de-ponte” de duas vertentes que poderiam ter sido melhor exploradas no cinema brasileiro.
No final dos anos 1960, a ficção científica é manuseada pelo Cinema Novo e dá demonstrações mais visíveis de seu potencial alegórico e de crítica social e política, gênero capaz de transmitir “mensagens cifradas” em época de ampla repressão e censura. A partir de então, cineastas visitam a FC nos anos 1970 e 1980 como “código” propício a sua expressão artística e política. Tal estratégia – o recurso à ficção científica como um gênero “instrumental” – de certa maneira reedita, guardadas as devidas proporções, movimento análogo no cinema americano dos anos 1950 e 1960. Segundo Thomas D. Clareson, durante o macarthismo, a ficção científica era a única forma literária que poderia criticar as políticas de governo, pois os políticos ou não liam o gênero ou não podiam entender suas estórias (Clareson, 1971, p. 22).
Em 1978 surge um dos primeiros casos (senão o primeiro em longa-metragem) de ecodistopia no cinema brasileiro: Parada 88: o limite de alerta, dirigido por José de Anchieta, introduz de forma mais contundente a temática ambientalista, ao mesmo tempo em que propõe uma crítica ácida à conjuntura social e política do Brasil à época. A trama de Parada 88 se passa em dezembro de 1999, 6 anos após uma fábrica explodir espalhando no ar toneladas de substância tóxica. O vazamento persiste e a população é obrigada a viver trafegando por túneis plásticos que interligam os prédios da cidade, além de pagar pelo ar respirável. O filme apresenta um dos raros ciborgues do cinema brasileiro, talvez o único com intenções não claramente cômicas. Trata-se do protagonista, que após ser resgatado da zona contaminada, recebe pulmões biônicos.
Melancólico e taciturno, Parada 88 lembra filmes como Laranja mecânica (A clockwork orange, 1971), de Stanley Kubrick, ou A boy and his dog (1975), de L. Q. Jones, ao mesmo tempo em que parece prenunciar títulos como Mad Max (1979), de George Miller, e até mesmo Blade runner: o caçador de androides (Blade runner, 1982), de Ridley Scott. O filme de José de Anchieta é praticamente todo imerso na escuridão, no hermetismo dos túneis e construções. A grande maioria das tomadas é noturna. Os únicos planos ao ar livre e à luz do dia são o da fachada do prédio do Departamento de Controle de Gases, e o plano final, em que o protagonista e sua família estão viajando. Profundamente pessimista, Parada 88 parece antever algo do cyberpunk — ou, se preferir, tupinipunk[2] — que se desenvolveria depois, nos anos 1980.
Em síntese, nos anos 1970 poderíamos observar uma certa recorrência à iconografia da ficção científica em filmes de caráter experimental, num período de arrefecimento do Cinema Novo. Cineastas ligados ao movimento que teve seu ápice nos anos 1960 reinvestem em projetos de caráter moderno/experimental – os casos de Paulo Bastos Martins (O anunciador: o homem das tormentas, 1970) e Nélson Pereira dos Santos (Quem é Beta?, 1973) -, pontuados por elementos da ficção científica.
Os anos 1980 deram continuidade ao cinema de ficção científica de orientação ambientalista (como em Abrigo nuclear, longa de 1981 dirigido por Roberto Pires), paródias nos mais diversos gêneros (pornochanchadas, filmes d’Os trapalhões, filmes infanto-juvenis, o “terrir” de Ivan Cardoso) e a um cinema de autor de cunho fantástico (filmes de Walter Hugo Khouri como, por exemplo, Amor voraz, de 1984). Tentativas mais comercialmente audaciosas de sustentação de um cinema fantástico ou de ficção científica foram realizadas no período, porém não renderam frutos consistentes. Vale a pena lembrar que, perto do fim da década, o cinema brasileiro passaria por uma severa crise de seu modelo de produção, com o declínio da Empresa Brasileira de Filmes (Embrafilme). A ficção científica no cinema nacional sofre, no final dos anos 1980 e início da década seguinte, dos mesmos males que assolam o cinema brasileiro como um todo. Mas o gênero continua lutando por sua sobrevivência numa atmosfera extremamente rarefeita.
No início da década de 1990, o cinema brasileiro enfrenta novo declínio severo de produção. Mesmo assim, a FC insiste em sobreviver. Rodado entre 1989 e 1993 e jamais lançado comercialmente, Oceano Atlantis, de Francisco de Paula, é outra ecodistopia que desta vez apresenta um Rio de Janeiro inundado pelo oceano, e no qual as favelas se tornaram as únicas regiões habitáveis. A fábula pós-apocalíptica tem como protagonista um mergulhador que, em busca de comida, acaba encontrando descendentes da civilização atlante.
Ficção científica e comédia continuam unindo suas forças em O efeito ilha, filme de 1994 escrito e dirigido por Luiz Alberto Pereira, o Gal. O efeito ilha é sobre um técnico de TV vítima de estranho fenômeno: depois de um acidente, sua imagem ocupa todos os canais de TV, 24h por dia, numa espécie de reality show intermitente. O efeito ilha critica a indústria da televisão e sua relação com a audiência, trabalhando o tradicional mito do roubo da alma por dispositivos de reprodução da imagem. Nesse aspecto, lembra outro filme de 1994, o tcheco Akumulator 1, de Jan Sverak.
Os anos 1990 também são momento de importante experimentação com o cinema digital no Brasil. Iniciada em 1992 e lançada em 1996, a animação infantil Cassiopéia, de Clóvis Vieira, tornou-se o primeiro longa digital brasileiro. O filme narra a aventura de salvamento do pacífico planeta Atenéia, que está tendo a energia de seu sol drenada por nave alienígena inimiga. Com um histórico de produção atribulada, Cassiopéia acabou eclipsado pelo sucesso internacional de Toy story (1995), de John Lasseter, animação da Pixar/Disney vencedora do Oscar.
Os anos 2000 não apresentam filmes brasileiro de ficção científica em longa-metragem dignos de nota por sua originalidade e ousadia, porém marcam um interesse renascente pelo gênero, sobretudo por parte de cineastas estreantes ou veteranos de “espírito jovem”. O aporte de tecnologias digitais mais ágeis e acessíveis aproximam o cinema de ficção científica do horizonte dos (novos) cineastas brasileiros, algo verificável de forma mais evidente em especial no âmbito dos curta-metragens. No mesmo período, co-produções viabilizam filmes em longa-metragem com roteiros mais ambiciosos e acabamento mais “polido”. Destaca-se a retomada de interesse e investimento em “filmes espíritas”, gênero que demonstra certa afinidade com a ficção científica e que promete desenvolvimentos nos anos subsequentes – casos dos longas Nosso lar (2010), de Wagner de Assis, ou Área Q (2012), filme dirigido por Gérson Sanginitto, que abriu o 2º Festival de Cinema Transcendental em Brasília.
Em linhas gerais e extremamente simplificadas, sujeitas a todos os problemas que uma abordagem década-a-década pode implicar, os parágrafos acima resumem grosseiramente o percurso filmográfico que trilhei em minha pesquisa de doutorado, numa tentativa de inventariar as principais ocorrências ou manifestações da ficção científica no cinema brasileiro do século XX e começo do XXI.
Cerca de dez anos após a conclusão dessa pesquisa de doutorado, continuo envolvido com o cinema de ficção científica no Brasil e no exterior, atento às suas transformações e ainda em busca de muitas respostas. As perguntas, no entanto, não cessam de multiplicar. E talvez agora, com o devido tempo decorrido e eventual distanciamento, haja uma nova oportunidade de revisitar algumas de minhas primeiras questões, bem como alguns de meus primeiros problemas no percurso de investigação desse bicho complicado que ora chamamos de “ficção científica no cinema brasileiro”.
A maneira com que se diz é por vezes tão ou mais importante do que o que é dito. Por que “ficção científica no cinema brasileiro” e não “cinema brasileiro de ficção científica”? Primeiro porque, cedendo a pressões do meio acadêmico, embutidas na própria historiografia clássica do cinema brasileiro, e receando dispor de um escasso objeto de estudo, supus que investigar a ocorrência de um gênero numa cinematografia nacional parecia mais prudente do que sugerir os contornos de um cinema nacional de gênero. Por outro lado, insistir num “cinema brasileiro de ficção científica” talvez fosse de encontro a uma preocupação norteadora de meu projeto, e que desde então só teria tomado mais corpo no conjunto de minhas pesquisas: o fato de que a ficção científica me parece muito mais um macrogênero trans/multimídia e universal, no sentido de que opera muito além de fronteiras e discursos nacionais ou nacionalizantes. Em termos práticos, minha opção por investigar a ficção científica no cinema brasileiro não gerou resultados muito diversos do que se eu tivesse insistido em favor de um cinema brasileiro de ficção científica. Na realidade, tal opção me poupou de problemas que eu pretendia evitar – como o “adesivo” brasileiro a um gênero que, a meu ver, sempre foi e continua sendo universal.
A metáfora da atmosfera rarefeita procura não apenas contextualizar o objeto, mas também referenciar um dos raros textos fundadores dos estudos de ficção científica no Brasil, de autoria do crítico e escritor Fausto Cunha. “A ficção científica no Brasil: um planeta quase desabitado” (1976), serviu de ponto de partida e parâmetro de comparação em meus primeiros inventários críticos da ficção científica no cinema brasileiro. De um planeta quase desabitado a uma atmosfera rarefeita, não precisei ir muito longe. Muito embora eu continue acreditando na validade de ambas as metáforas, devo confessar que minha pesquisa de doutorado me revelou algo que costumo repetir ainda hoje, sempre que sou confrontado com a seguinte pergunta: “cinema brasileiro de ficção científica? Mas existe algum filme?”. Continuo repetindo que, embora haja muitos menos filmes do que eu gostaria (“atmosfera rarefeita”), eles são muito mais numerosos do que eu esperava e muito mais frequentes do que se imagina. Os filmes brasileiros de ficção científica são como “espectros” ou “radiações eletromagnéticas” que só conseguimos visualizar com o auxílio de alguns “instrumentos especiais”. Quais seriam esses “instrumentos especiais”? Em resumo, adianto que seriam (1) boa vontade na investigação, (2) desconfiança em relação aos cânones e (3) flexibilidade na abordagem dos gêneros cinematográficos e na história do cinema brasileiro, em sintonia com as pesquisas internacionais mais modernas e atuais.
Enquanto em Hollywood a ficção científica é empreitada de grandes estúdios, sendo praticamente sinônimo de efeitos especiais, no Brasil a produção do gênero ainda é vista com muitas ressalvas. A justificativa mais comum para a irregularidade da ficção científica no cinema brasileiro baseia-se na falta de dinheiro, uma vez que demandaria cenários elaborados e efeitos especiais. Para Adam Roberts, ficção científica no cinema é sinônimo de efeitos especiais (2000, p. 152-3). Mas será mesmo que o gênero depende tanto assim de efeitos e, como consequência, fazer cinema de ficção científica custaria muito mais caro do que outros gêneros? E os filmes que prescindem de efeitos especiais sofisticados, explorando outro veio de criatividade? Segundo o escritor Gerson Lodi-Ribeiro, o fraco desenvolvimento do cinema de FC no Brasil “talvez se dê em função da persistência de uma noção equivocada de que são necessários efeitos especiais grandiosos para se contar uma boa história de ficção científica. Noção equivocada típica de quem tem pouca intimidade com o gênero”[3]. Não haveria então outro fator, além do econômico, capaz de desestimular nossa produção de ficção científica em qualquer mídia? E por que a ficção científica no cinema brasileiro se manifesta num espectro, via de regra, inacessível a “olho nu”? Essas perguntas visitaram minhas pesquisas entre 2003 e 2007, a me visitam ainda hoje. Continuo apenas testando algumas hipóteses, as quais me proponho a passar em revista logo a seguir.
Continuo achando válida uma primeira hipótese, proposta por Mary Elizabeth “Libby” Ginway em seu mais robusto trabalho de investigação da literatura brasileira de ficção científica. Segundo Ginway, “[a] ficção científica brasileira também sofre da idéia de que um país do Terceiro Mundo não poderia autenticamente produzir tal gênero, e das atitudes culturais elitistas que prevalecem no Brasil” (2005). A autora prossegue afirmando que
(…) a ficção científica brasileira, eu creio, tem sofrido duplamente, primeiro por suas associações com “arte baixa” e ficção popular, e segundo, por ser um gênero imaginativo em um país que dá um alto valor ao realismo literário. (…) Por essas razões, a ficção científica poderia ser considerada “inautêntica”, ou seja, não representativa da cultura brasileira. Como um gênero que cresceu a partir das sociedades industrializadas, talvez ele seja melhor visto como o que Roberto Schwarz chamou de “idéias fora do lugar”, i.e., um exemplo da importação de modelos literários estrangeiros ao Brasil (Ginway, 2005, p. 27).
O mesmo que Ginway diagnostica no panorama literário brasileiro pode ser verificado no cinema. Os preconceitos e obstáculos que se apresentam à ficção científica na literatura nacional multiplicam de tamanho no âmbito do cinema brasileiro. Não só pelo fato de o cinema ser uma arte mais onerosa e coletiva, mas também por ser terreno de disputa ainda mais evidente com o domínio estrangeiro.
Ginway resgata oportunamente o conceito de “ideias fora do lugar” de Roberto Schwarz (2000), autor que, na companhia de Darcy Ribeiro (2006; 2008), também pode ser útil a um exame mais detido dos entraves ao desenvolvimento da ficção científica na cultura brasileira em sentido mais amplo. Schwarz (2000) propõe o conceito de “ideias fora de lugar” ao abordar a literatura brasileira no contraditório contexto sócio-econômico nacional do final do século XIX. A escravidão desempenha um papel importante nessa relação de amor e ódio com os valores ocidentais ou o legado cultural europeu. O ensaio de Schwarz começa com uma análise do seguinte argumento:
Toda Ciência tem seus princípios, de que deriva o seu sistema. Um dos princípios da Economia Política é o trabalho livre. Ora, no Brasil domina o fato “impolítico e abominável” da escravidão. Este argumento – resumo de um panfleto liberal, contemporâneo de Machado de Assis – põe fora o Brasil do sistema da ciência (2000, p. 11).
De certa maneira, tal “quadro psicológico” parece persistir em alguns setores até hoje – ainda que reprimido, entrincheirado ou mesmo criptografado. Nesse sentido, não surpreende que a ficção científica no cinema brasileiro seja tão geralmente encarada como um “alienígena intruso” em nosso planeta cinematográfico ou atmosfera cultural, por vezes reagindo ficcionalmente à ciência e tecnologia, hipotética ou utópica, de forma um tanto quanto xenofóbica – lembremos de filmes como O quinto poder (1962), de Aberto Pieralisi, Roberto Carlos em ritmo de aventura (1968), de Roberto Farias, ou ainda O homem que comprou o mundo (1968), de Eduardo Coutinho.
Darcy Ribeiro, por sua vez, nos lembra que uma das principais marcas distintivas que singularizam os brasileiros é a extraordinária homogeneização cultural, fruto da brutalidade de nosso processo de formação histórica, realizado sob as pressões da escravidão (2008, p. 24-5). O antropólogo observa também que
O povo brasileiro, produzido por essa mó da estratificação escravista, se vê imerso numa cultura intrinsecamente espúria. Tamanhamente que atribui ao negro e ao pobre a culpa de sua própria ignorância e miséria; cega que se faz para a evidência de que, aqui, o inferior, o ruim, não é o povo ignorante, mas a elite, rica, educada, refinada, que sempre organizou a produção e a vida social em seu próprio benefício, indiferente ao destino do povo. (…) Nada melhorou para o povo trabalhador quando ingressamos na civilização industrial, pela via da atualização histórica, regida pelas empresas multinacionais (2008, p. 31).
Darcy Ribeiro ressalta que tal “modernização” baseia-se numa “(…) industrialização reflexa, que não é capaz de gerar a transformação social do país, o que faz perpetuar o subdesenvolvimento e acentuar nossa dependência externa” (Ribeiro, 2008, p. 31-32). Suspeita-se, portanto, e sem surpresa, que tamanha controvérsia entre arcaismo e modernização tenha impacto sobre a cultura do país em sentido mais amplo. Ainda segundo o antropólogo,
A resistência às forças inovadoras da Revolução Industrial e a causa fundamental de sua lentidão não se encontram, portanto, no povo ou no caráter arcaico de sua cultura, mas na resistência das classes dominantes. Particularmente nos seus interesses e privilégios, fundados numa ordenação estrutural arcaica e num modo infeliz de articulação com a economia mundial, que atuam como um fator de atraso, mas são defendidos com todas as suas forças contra qualquer mudança (2006, p. 228).
Guardadas as devidas proporções, essa “vontade de inércia” já se apresenta, em si mesma, como fator obstacular a um gênero discursivo de orientação utópica (a ficção científica) – o qual, conforme observa Csicsery-Ronay, guarda pontos de contato com o marxismo justamente em sua vocação utópica e de crítica da realidade social (2003, p. 113-24).
Segundo Zuenir Ventura (2013), “[o] Brasil é um país onde o surrealismo não vingou como movimento artístico, mas como maneira de ser”. Guardadas as devidas proporções, o mesmo poderia ser dito sobre a ficção científica brasileira em sentido lato, mas sobretudo em sua dimensão cinematográfica ou audiovisual. O “país do futuro” já seria per se uma ficção científica – haja vista sua história e, entre outros aspectos, sua capital Brasília. Não à toa Terry Gilliam teria dado o nome de Brazil – o filme (1985) à sua distopia futurista.
A propósito, convém circunstanciar a ideia do Brasil como “país do futuro”, epíteto cuja origem remete ao livro de Stefan Zweig. Em prefácio à edição de 2013 da obra em questão, Alberto Dines explica que:
Até hoje não se sabe exatamente o que Zweig pretendia dizer com esse sugestivo e enigmático jogo de palavras (um país ou o país, do futuro ou de futuro?). A idéia não foi dele, mas de James Stern (aliás, Andrew St. James), o tradutor para o inglês do original alemão, que o pescou em francês na epígrafe da obra. (Dines in Zweig, 2013, p. 7, grifos no original).
É fato que o futuro entrevisto por Zweig no Brasil baseava-se muito mais no fascínio perante uma hipotética “democracia racial” do que qualquer estado de avanço industrial, científico ou tecnológico stricto sensu. Em outras palavras, Zweig exaltou em seu livro uma tecnologia social a seu ver única no mundo, uma sociedade virtualmente sem conflitos e tensões raciais e/ou religiosas, quadro muito diferente do europeu. Zweig assim se refere ao sucesso do “experimento ‘Brasil’, com sua negação completa e consciente (sic) de qualquer diferença de cor e de raça (…)” (2013, p. 20). É a partir dessa constatação que o escritor descreve, sobre sua experiência vivendo no Brasil, “(…) aquela sensação de viver dentro do porvir, do futuro, desfrutando mais conscientemente da segurança da paz e do bom ambiente acolhedor” (2013, p. 15).
Os avanços tecnológicos, científicos e/ou industriais seriam sobrevalorizados em seu tempo, na opinião de Zweig, e eles não teriam sido capazes de evitar o caos na Europa. O verdadeiro futuro deveria ser buscado na convivência pacífica entre os povos, a exemplo do “experimento Brasil” (2013, p. 20). Desnecessário dizer o quanto de fábula e imaginação constitui a substância do mito de “país do futuro” propugnado por Zweig.
Seria então o fato de o Brasil ser um país de modernização lacunar, com produção em ciência, tecnologia e inovação (CT&I) ainda aquém de seu pleno potencial, outro fator obstacular ao desenvolvimento da ficção científica em variadas mídias? Poderíamos encontrar nos problemas do sistema educacional do país e, por consequência, do ensino de ciências, alguma explicação para a invisibilidade ou timidez da ficção científica nacional?
Segundo Francisco Alberto Skorupa, “é controverso o papel que desempenha o desenvolvimento científico-tecnológico na produção de ficção científica” (2002, p. 93). Skorupa aponta que existem fortes evidências de uma relação entre desenvolvimento científico-tecnológico e produção de ficção científica, sobretudo a partir da Revolução Industrial e da explosão científica nos séculos XIX e XX. Sobressaem os casos dos EUA, ex-URSS, Reino Unido, França, Japão e Alemanha e, em menor escala, Austrália, Canadá e Itália, como exemplos da proximidade entre o desenvolvimento científico e a ficção científica (2002, p. 93).
Por outro lado, Skorupa observa que tal argumento pode se revelar enganador ante um exame mais detido e aprofundado, uma vez que, embora a tecnologia tenha nacionalidade e até proprietário(s), “a imaginação livre não é nacionalista”, ela extrapola fronteiras e pode ser inspirada por estímulos estrangeiros (Skorupa, 2002, p. 316). Segundo Skorupa, entretanto, “não se pode ignorar que um ambiente cultural que valorize a pesquisa e a educação científica esteja direcionando ou educando a percepção e a sensibilidade individual para uma ideia de progresso técnico-científico” (2002, p. 316).
Cerca de dez anos depois, todas essas perguntas continuam sem respostas satisfatórias, muito menos definitivas. Em resumo, e à guisa de simplificação, os entraves ao maior desenvolvimento e visibilidade do cinema brasileiro de ficção científica são certamente variados, mas nenhum deles isoladamente fornece uma explicação satisfatória para o cenário. Uma boa metáfora para o cinema nacional do gênero talvez seja a de uma espaçonave obsoleta e com excesso de peso. Essa carga excedente se compõe de itens tão diversos como velhos preconceitos artísticos, carência de políticas públicas mais longevas e consistentes com foco sobre o desenvolvimento científico e tecnológico, problemas na percepção pública da ciência e tecnologia, ausência de uma “cultura da invenção”, baixa auto-estima, valorização excessiva do realismo em detrimento de outros estilos ou estéticas, elitismo cultural, deficiências no sistema educacional, vícios e precariedades dos mercados editorial e audiovisual brasileiros, entre otras cositas más.
Não obstante, de 2007 até hoje, o panorama da ficção científica no cinema e audiovisual brasileiro mudou significativamente – e continua mudando. Por exemplo, tentativas de seriado no Brasil, como a web-série Stufana (2010), produto do Projeto TelaTeatro, com apoio da Fundação Joaquim Nabuco e Massangana Multimídia, ou o piloto de 3% (2010), dirigido por Daina Giannecchini, Dani Libardi e Jotagá Crema, rodado com câmeras Red One e apoio do programa FICTV/Mais Cultura, foram projetos nacionais que procuraram explorar a veia aberta por sucessos estrangeiros como Arquivo X ou Lost.
3% se tornou um caso de sucesso. O canal Netflix comprou a ideia e exibiu a primeira temporada da série em novembro de 2016. Tratou-se da primeira produção brasileira original da Netflix e a segunda produzida na América Latina. Com uma estética próxima do que venho chamando de “basurapunk” (um cyberpunk latino-americano em que o lixo fornece a matéria-prima para a tecnologia e mobilizações anti-establishment), 3% também pode ser ilustrativo de um cinema de ficção científica lo-fi (ou lo-fi sci-fi, que segundo consta no site http://lofiscifi.com/, significaria “filmes que têm mais especulação do que efeitos espetaculares. Mais focados em grandes ideias do que em grandes orçamentos”[4]. De acordo com matéria de Amauri Terto publicada no Huffpost (2017), 3% é “a série de língua não-inglesa mais assistida dos EUA”.[5]
Vale a pena lembrar ainda que, em 2013, um filme brasileiro de ficção científica ganhou um prêmio mundial importantíssimo, o de melhor filme no Festival de Annecy, na França. Trata-se de Uma história de amor e fúria, dirigido por Luiz Bolognesi, animação em longa-metragem que estreou em abril de 2013 e revisita a história do Brasil ao longo de aproximadamente 600 anos, sob o ponto de vista de um índio tupinambá, personagem imortal que atravessa os séculos à procura das reencarnações de sua mulher amada, enquanto luta em defesa do povo oprimido.
Dentre os cineastas em maior evidência atualmente, tanto em termos de mercado ou de crítica, não são poucos os que já se aventuraram ou continuam se aventurando no território da ficção científica. Lembremos de Jorge Furtado, de Barbosa (1988), Kléber Mendonça Filho, de Recife frio (2010), e de Adirley Queirós, de Branco sai, preto fica (2014).
O sucesso de uma série como 3% ou de filmes como Branco sai, preto fica é ilustrativo e sintomático de ao menos dois aspectos: (1) a desmistificação da ficção científica enquanto gênero inacessível a produções independentes ou de baixo-orçamento, favorecida pela popularização de novas tecnologias, e (2) o reencontro, por parte de uma nova geração de cineastas, da ficção científica enquanto “modo de representação” ou “regime de decifração” da agenda contemporânea, seus principais dilemas e ansiedades.
Branco sai, preto fica merece algumas linhas em especial. Trata-se de uma ficção especulativa que discute a cidadania e os direitos civis sob a alça de mira do estado. Vencedor do Festival de Brasília de 2014, esse longa-metragem recorre ao artifício da viagem no tempo para tratar de um fato real ocorrido em 1986, quando policiais invadiram o Quarentão, baile de black music organizado em Ceilândia, para agredir violentamente os jovens frequentadores do evento. O título do filme remete à ordem de um dos policiais agressores.
As reiteradas referências ou metáforas relativas à música e à sonoridade, ao canto e à voz da periferia, afirmadas publicamente pelo diretor Adirley Queirós (ver Suppia e Gomes, 2015; Reis, Mena e Imanishi, 2013) e francamente identificáveis no filme, remetem anda mais intensamente o filme à categoria lo-fi sci-fi. Branco sai, preto fica poderia ser reivindicado como representativo de um cinema brasileiro de ficção científica lo-fi, na medida em que se apresenta como um filme de orçamento modesto e extração realista, que prescinde de efeitos visuais sofisticados e que faz menção explícita a um “paradigma analógico”, a um contexto low-tech de reapropriação e ressignificação dos resíduos industriais ou do lixo tecnológico, aludindo a um futuro igualmente low-tech e ruinoso em sua “programação visual”.
A exemplo de outros filmes comumente associados ao lo-fi sci-fi – tais como Pi (1998), de Darren Aronofsky, Take shelter (2011), de Jeff Nichols, Love (2011), de Will Eubank, Sound of my voice (2011), de Zal Batmanglij, Another Earth (2011), de Mike Cahill, ou Upstream color (2013), de Shane Carruth – Branco sai, preto fica opera uma “sensação de maravilhoso” (sense of wonder) baseada em desafios intelectuais que não raro dialogam de forma intrigante com o mundo histórico contemporâneo.
Ao retomar o tropos da viagem no tempo como “regime de leitura” da história do Brasil, uma história particularmente negligenciada, rejeitada ou escondida, Branco sai, preto fica parece recuperar um elo perdido, um passado invisível em meio a milhares de micro-histórias varridas para debaixo do tapete de História com h maiúsculo. Do mesmo modo, o final do filme apresenta um futuro virtualmente inacessível: aquele no qual a elite brasileira finalmente paga o preço de seu histórico secular de abuso e opressão. Não surpreende que esse desfecho não possa ser visto em cenas live action: o ajuste de contas final em Branco sai, preto fica só é acessível por meio de desenhos à mão livre, de autoria de um homem do povo que foi vítima da violência do estado.
Ao partir de um evento histórico reprimido ou “abafado”, e chegar a um futuro especulativo, o filme tensiona limites da representação audiovisual e reencontra o caminho do gênero ficção científica enquanto “regime de discussão” do passado, presente e futuro – a exemplo do que cineastas brasileiros já fizeram no período da ditadura militar, quando a ficção científica fornecia uma semântica e uma sintaxe favoráveis ao escape da censura e acirramento da crítica ao governo ditatorial, em filmes como Brasil ano 2000 (1969), de Walter Lima Jr., Manhã cinzenta (1969)[6], de Olney São Paulo, Parada 88, O limite de alerta (1978), de José de Anchieta, ou ainda Abrigo nuclear (1981), de Roberto Pires.
Branco sai, preto fica é também um filme premonitório, na medida em que versa sobre a longa história de pilhagem dos brasileiros – por brasileiros. Três anos após a estreia do filme de Adirley Queirós, um pirata ocupa o Palácio da Alvorada, o congresso é governado por piratas e ladrões e o estado policial mantém o povo sob controle. Todos os dias, no Brasil, milhões de moradores das periferias perdem seus sonhos, seus direitos, seus braços e pernas, suas vidas. Por meio de uma tênue “criptografia”, favorecida pela ficção científica, Branco sai, preto fica previu nosso futuro próximo, um tempo de julgamentos obscuros e controversos, sectarismo, conservadorismo, violência e negação por atacado dos direitos civis mais elementares.
Na esteira da tradição literária distópica de autores como Karel Capek (R.U.R., 1921), Yevgeny Zamyatin (Nós, 1924), Aldous Huxley (Brave new world, 1932), George Orwell (1984, 1948), e Ignácio de Loyola Brandão (Não verás país nenhum, 1981), arrisco dizer que a ficção científica permanece, ainda hoje, como locus privilegiado de representação do atual estado de caos brasileiro – um caos recidivo, circular.
À guisa de conclusão, porém sem qualquer compromisso de encontrar respostas, gostaria de buscar em Paulo Emílio Salles Gomes uma “chave de leitura” para a ficção científica no cinema brasileiro – ou para o cinema brasileiro de ficção científica, como se queira. Trata-se da seguinte passagem:
Não somos europeus nem americanos do norte, mas destituídos de cultura original, nada nos é estrangeiro, pois tudo o é. A penosa sensação de nós mesmos se desenvolve na dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro. O filme brasileiro participa do mecanismo e o altera através de nossa incompetência criativa em copiar. O fenômeno cinematográfico no Brasil testemunha e delineia muita vicissitude nacional (Salles Gomes, 1986, p. 88).
O pensamento de Paulo Emílio sempre me foi útil nas tentativas de investigação de um fenômeno tão “rarefeito” quanto a ficção científica no cinema brasileiro – rarefeito muitas vezes não por sua própria consistência ou materialidade, mas pela maneira com que é colocado em perspectiva por filtros acadêmicos tradicionais.
A ficção científica é um macrogênero universal, um gênero dentro do campo mais amplo da ficção especulativa. Sua matéria-prima é o exótico, o exógeno, o inusitado, o diferente, tudo aquilo que coloca em xeque fronteiras e definições. Embora John Baxter (1970) já tenha reivindicado o cinema de ficção científica como manifestação cultural essencialmente americana[7], a insistência em “nacionalizar” a ficção científica, reclamar sua “patente” ou copyright, me parece absolutamente equivocada e contraditória em relação à própria natureza universalizante do gênero, sua vocação especulativa ou experimental intrínseca.
Atender à reivindicação de que “cinema de ficção científica é coisa de americano” nada mais é do que acatar acriticamente a mais controversa e reacionária “divisão internacional da cultura”, uma partilha que vem a reboque da divisão internacional do trabalho e das riquezas. Dizer que não existe ficção científica no “terceiro mundo” ou fora dos países ditos desenvolvidos, devido ao fato de que faltaria a países não-ocidentais a devida infraestrutura científica e tecnológica, é uma tomada de posição política.
Igualmente, defender que cinema de ficção científica são efeitos especiais significa, em última análise, tomar como exemplo uma parcela específica de um macrogênero presente em praticamente todas as cinematografias do mundo – refiro-me à parcela do cinema de tipo blockbuster norte-americano. Nesse sentido, vincular peremptoriamente cinema de ficção científica a efeitos visuais sofisticados ou industriais, sem qualquer ponderação e atenção à história mundial do gênero, significa interditar às cinematografias externas a Hollywood o acesso a um modo de representação e regime de discussão universais. Compreende-$e o que $e encontra por trá$ di$$o.
Não apenas a ficção científica é reivindicada como patrimônio de superpotências, o cinema também o é – não à toa uma das premiações mais populares do mundo distingue o “melhor filme estrangeiro” do “melhor filme”. Parafraseando novamente Paulo Emílio, não surpreende que o “ocupante” venda (ou distribua de graça) esse raciocínio. O problema é quando o “ocupado” reproduz tal ideologia acriticamente.
Mas felizmente, e talvez pela primeira vez em muito tempo, essa bandeira do “ocupante”, reproduzida pelo “ocupado”, realmente esteja dando sinais de fadiga. O cinema brasileiro de ficção científica insistiu em sobreviver numa atmosfera rarefeita, e agora já não é tão fácil negar sua existência. São brasileiros produzindo ficção científica no cinema e na televisão, na literatura e quadrinhos, no teatro, na web e nos videogames, à revelia do obscurantismo do mercado interno de bens culturais. Trabalhos acadêmicos sobre esse macrogênero também têm se acumulado ao longo dos anos, numa demonstração de que mesmo a velha e retrógrada academia brasileira tem se aberto paulatinamente à multiplicidade de textos que caracterizam o fenômeno ficção científica no Brasil contemporâneo. Nas veredas do tempo, e a contrapelo da história.
* Esse texto conta com fragmentos originalmente publicados no capítulo “Sob o signo de Varginha: Aparições da ficção científica no cinema brasileiro” (Suppia, 2015) e na tese de doutorado “Limite de alerta! Ficção científica em atmosfera rarefeita: Uma introdução ao estudo da FC no cinema brasileiro e em algumas cinematografias off- Hollywood”. Campinas, SP: [s.n.], 2007 (orientação do Prof. Dr. José Mário Ortiz Ramos).
Alfredo Suppia é professor do Departamento de Cinema (Decine) e do programa de pós-graduação em multimeios da Unicamp.
Referências
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Notas
[1] Ismail Xavier usa o termo “sério-dramático” em Alegorias do subdesenvolvimento (1993) e outras obras. A categoria me parece adequada no momento, na falta de outra ainda mais precisa. A contraposição que Xavier faz entre uma narrativa de natureza “sério-dramática” e outra “lúdico-carnavalesca” (1993, p. 227) também pode ser útil para uma melhor distinção entre filmes brasileiros de ficção científica mais “empenhados” (“sério-dramáticos”) e filmes com viés mais paródico (“lúdico-carnavalescos”).
[2] “Tupinipunk” é o termo cunhado pelo escritor e pesquisador Roberto de Sousa Causo para designar certo tipo de cyberpunk brasileiro, manifesto em livros como Silicone XXI (1985), de Alfredo Sirkis; Santa Clara Poltergeist (1991), de Fausto Fawcett, Piritas siderais (1994), de Guilherme Kujawski; e Favelost (2012), de Fawcett. Ver Causo.
[3] Gerson Lodi-Ribeiro, entrevista por e-mail concedida a este autor em 04/03/2006.
[4] No original: “Movies that have more speculation than spectacular effects. More focused on big ideas than big budgets”.
[5] http://www.huffpostbrasil.com/2017/03/17/primeira-serie-brasileira-da-netflix-3-virou-um-baita-sucess_a_21901598/
[6] Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=b6X65a16nxA
[7] No original: “Most countries have attempted sf, some have succeeded to an extent, but the form remains agressively American, an expression of a national impulse that, like the Western, lies too deep under the American skin ever to be revealed by any but a native son” (Baxter, 1970, p. 208).