Por Ricardo Muniz
O epidemiologista Naomar de Almeida Filho, reitor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) de 2002 a 2010 e reitor pro-tempore responsável pela implantação, entre 2013 e 2017, da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), chama atenção para um transbordamento da política de inclusão de negros e negras na graduação, além de indígenas e quilombolas, que é a demanda por reestruturação radical de currículos e arquiteturas curriculares. Em sua avaliação, é urgente que as instituições avancem para que essas mudanças não sejam tópicas, apenas relacionadas ao acesso. “As universidades continuam com modelos curriculares muito atrasados e não se prepararam para receber esse contingente de pessoas que vem de histórias familiares e sociais distantes da cultura universitária.”
Almeida Filho, que em 2019 tornou-se professor visitante no Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, implantou nas duas instituições que dirigiu experiências que inspiraram iniciativas no estado de São Paulo. Uma delas foram os bacharelados interdisciplinares (BIs). “O projeto dos BIs não foi criar uma espécie de reciclagem ou recuperação de estudos, não foi um pedágio para cotistas, e sim um primeiro ciclo para todos. As pessoas não passam por essa formação para repor dificuldades ou lacunas na formação, não é essa a função. Algumas instituições até interpretaram equivocadamente que os cursos do primeiro ciclo seriam de reforço para estudantes de baixo rendimento. O conceito da interdisciplinaridade é que os saberes contemporâneos devem ser saberes atravessados por outros. É por ser interdisciplinar que esse tipo de bacharelado tem valor, não por ser um curso prévio a bacharelados profissionais.”
Segundo Almeida Filho, o novo desenho curricular adotado na instituição baiana está estreitamente conectado à questão das ações afirmativas. “O que provocou e propiciou o experimento que tivemos dos BIs da UFBA foi justamente um efeito rápido das ações afirmativas. Em 2006, a gente já tinha dentro da universidade um contingente imenso, quase um terço da universidade, formado por alunos que vieram de famílias que não teriam nenhuma chance de estar na universidade pública, apesar de virem do povo. Isso já antecipou para nós que essa problemática era incorporação não só de sujeitos, mas sim de matrizes culturais e origens sociais. Então foram as ações afirmativas na Federal da Bahia que provocaram a demanda por bacharelados interdisciplinares, não o contrário.”
Desde 2011, o programa de Formação Interdisciplinar Superior (ProFIS) da Unicamp oferece um curso de dois anos de duração, com um forte caráter de formação geral, que seleciona os melhores alunos das escolas públicas de Campinas a partir da nota no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Após a conclusão dessa etapa, os alunos escolhem entre os cursos de graduação de acordo com seu desempenho e o número de vagas oferecido em cada curso. “A exclusão territorial é a exclusão invisível. Um território não se torna um atributo de uma pessoa. É parte de uma referência que é englobadora, alcança coisas muito diferentes. Às vezes a exclusão territorial é mais decisiva do que a étnica ou social. Por exemplo, a Unicamp é uma universidade que é atrativa para todo o Brasil, e aí pode excluir exatamente a população do território ao qual pelo menos geopoliticamente está vinculada, o que é um paradoxo”, diz Almeida Filho.
Leia abaixo a íntegra do depoimento de Naomar de Almeida a Ricardo Muniz, editor da revista ComCiência:
Riscos à lei de cotas no ensino superior
“Acho muito difícil que haja retrocesso, porque uma vez que se estabelecem direitos, e esses direitos passam a fazer parte do cotidiano das pessoas e dos projetos das famílias, realmente fica mais difícil voltar atrás. Além disso, todo o sistema judiciário brasileiro atestou a legalidade e constitucionalidade de estratégias de ação afirmativa, mesmo aquelas que, de muitas maneiras, desafiam privilégios das elites nacionais, apesar de poderosas. Então há todo um contexto de conservação. Como a transformação foi feita em todos os planos, no plano legislativo, no plano judiciário, e isso a partir de iniciativas institucionais, acho que o cenário de certa maneira fica completo e consolidado. O que pode acontecer é pressões sobre certos recursos, baseadas nessa luta ideológica do individualismo versus a coletividade. Alguns grupos no Brasil têm uma perspectiva muito individualista, egoísta, personalista da questão social; eles poderão fazer pressão, mas eu acho que não conseguirão promover um recuo.”
Possíveis avanços da política de ações afirmativas
“Quando se iniciaram as experiências em diferentes instituições, havia um argumento de que não bastariam as cotas, era preciso garantir permanência, porque cota é uma solução de acesso. Os sujeitos, ao ingressarem na universidade, não mudam a sua inserção ou origem de classe, étnica ou mesmo territorial. Esse argumento serviu para se fomentar um sistema de apoio que foi parcialmente implantado sob a forma principalmente de bolsas de permanência. Nesse aspecto, posso dizer que se poderá avançar mais ainda. Não com o atual governo federal, porque o atual governo inclui esse conjunto de questões como aquelas reformas populares que eles, bem reacionários, pretendem substituir por reformas de retrocesso. Mas tudo indica que esse capítulo, esse cenário vai se modificar.
Agora tem um avanço que, eu acho, não foi feito em praticamente nenhuma das experiências e iniciativas de mudança nas universidades, também porque não tem uma previsão no aspecto jurídico-legal. De fato, as universidades se abriram mas não se transformaram, elas se abriram para receber mais pessoas, mas mantendo suas formas antigas de lidar com a questão da formação de pessoas, então a maioria das universidades, em especial as universidades públicas, continuam com modelos curriculares muito atrasados. Realmente não se prepararam para receber esse contingente de pessoas que vem de histórias familiares, histórias sociais bastante distantes da cultura universitária, e trazem consigo sua referência cultural. Nem a universidade absorveu essas mudanças, abrindo-se para as referências culturais daqueles que estão chegando, nem se atualizou para fazer com que os programas e as arquiteturas curriculares se abrissem a esses segmentos da população que nela não estavam. Nesse espaço, na verdade eu vejo uma urgência de se avançar para que a transformação da universidade não seja apenas tópica, não seja apenas na questão do acesso, como tem se dado em nosso país.
Só para explicar o que considero como importante nessa questão: se as pessoas vêm de segmentos sociais, de classes, de origens, de culturas, matrizes e formações diferentes da universidade, e se a universidade não se transforma, só lhe resta, de certa maneira, domesticar esses saberes, que não são dela. E aí passam a produzir processos que estão em curso, processos de cooptação da energia, da diferença, da diversidade daqueles que chegaram à universidade por uma política que terminou sendo apenas cotas reparadoras e mecanismos de permanência que, nesse caso, só facilitam esse processo de cooptação.
As políticas de ações afirmativas que têm sido adotadas continuam sendo baseadas em pessoas. Quer dizer, é como se o problema fosse trazer para a universidade indivíduos que, ao vir para a instituição, ficam separados e distanciados de suas origens sociais e referências culturais. Então é como se operasse um gigantesco mecanismo de separação desses sujeitos das suas origens. Em vez de trazer, para a universidade, a abertura perante essa diversidade. Daí vem que toda a discussão se resume às cotas. Está bem, concordo que cotas são uma forma de democratizar o acesso, mas a democracia não é feita só de trajetórias individuais, de pessoas isoladas, não é somente somatório de posições. Significa um processo sempre muito complexo de integração de culturas, com respeito e reconhecimento e, em muitos casos, admiração pela diversidade das culturas.
Daí que, por exemplo, uma universidade que tem uma representação mínima da sociedade real – estou dizendo mínima porque o caso é esse mesmo – a maioria dos conselhos universitários tem, quando muito, 2 ou 3 representantes da comunidade. O que não faz sentido! Porque não há qualquer empoderamento com uma representação minoritária dessa natureza. Um conselho com 50, 60 membros, com poder político-institucional, ter 3 ou 4 representantes, às vezes até 5, nem que seja um pouco mais, da sociedade. E pergunto: que sociedade é essa? Porque a gente vive numa sociedade real, que concretamente existe, baseada em extremas desigualdades, privilégios, prioridades em linhas de comando e de autoridade, em posições que são praticamente predefinidas para alguns sujeitos. Essa é a sociedade real, contraposta àquela sociedade mais mítica, que é a sociedade dos setores produtivos, ou os empresários, como um grande bloco harmônico e convergente. Nesse mito, o povo aparece como se fosse uma abstração, parte de movimentos sociais que se exercem fora de uma sociedade, numa situação de representatividade nominal, apenas quantitativa, em que não há permanente discussão ou construção de consensos possíveis.
Por isso eu sempre defendo que a universidade brasileira precisa de um conselho estratégico social – nas universidades fora do Brasil, isso é muito comum. Um conselho estratégico social, por exemplo, é algo necessário, em todos os planos, não só um conselho, mas muitos conselhos estratégicos sociais. São instâncias em que a universidade é necessariamente minoritária, porque ela está ali num momento de escuta, pela produção do debate, e não engajada em um processo deliberativo que conta votos, quem ganha e quem perde.
Esse argumento tem sido até mal-entendido. Veja: se, como tem sido, a universidade se organiza com base nos três segmentos da comunidade universitária – professores, servidores técnico-administrativos e estudantes – está faltando aí a sociedade como um ator importante na instituição, porque a sociedade não se representa por esses segmentos. Aí alguém pode dizer ‘ah não, chegaram agora estudantes negros, indígenas, representantes de diversidade identitária, tem um conjunto que é reconhecido por ser quilombola, entram na universidade e estarão representados pelo movimento estudantil, é só participar’. Não se trata disso! Os estudantes, ao entrar na universidade, se for numa universidade apartada da sociedade, tornam-se membros de uma certa posição numa comunidade política dada, em que ele não está ali como representante de sua origem. Quem estaria representando sua origem, por exemplo, seria o cacique, no caso dos indígenas, a liderança afro-brasileira, lideranças de movimentos sociais do campo, lideranças organicamente constituídas. E não o fato de alguém ter passado em um processo seletivo, porque mesmo reequilibrados elementos de ampliação de participação como reservas de vagas, essas figuras não estão ali por uma representação legítima, estão ali por terem passado por esse processo seletivo.
Então eu sempre defendo, e agora cada vez mais, que a sociedade real precisa se constituir como quarto segmento da comunidade universitária. Creio que esse é o espaço de avanço absolutamente necessário neste momento, porque nesse caso faz parte da construção de uma identidade da universidade, não com base numa lógica de autonomia autoinstituída, quer dizer, ela que diz qual é a autonomia, e sim uma autonomia permanentemente negociada.”
Exclusão territorial
“A excusão territorial é a exclusão invisível. É aquela em que, por exemplo, um sistema de cotas gerais encontraria dificuldades, porque a pertença a um território não se torna um atributo de uma pessoa. Por exemplo, alguém nascido na Bahia não ganha isso como uma propriedade individual, é parte de uma referência, que por ser territorial, como ensinou Milton Santos, é englobadora, alcança coisas muito diferentes. Às vezes, a exclusão territorial é mais decisiva do que a exclusão étnica ou social. Isso para certas universidades é fundamental e até às vezes paradoxal. Por exemplo, a Unicamp é uma universidade que tem representatividade nacional e é atrativa para todo o Brasil. Seu entorno, o território ao qual pertence a Unicamp, é desproporcionalmente sub-representado. Então um dos méritos que eu tenho sempre louvado quando me refiro ao ProFIS é que, ainda que em pequena escala, se tornou uma política de superação dessa paradoxal exclusão territorial, pois exclui exatamente o território ao qual, pelo menos geopoliticamente, a instituição estaria vinculada. Isso é um paradoxo, pura contradição .”
Bacharelados interdisciplinares
“A ideia de que os bacharelados interdisciplinares seriam ‘pedágios para cotistas’ nunca foi levantado nos experimentos dos quais tenho participado e, em alguns casos, até ajudado a conceber. Isso nunca aconteceu. Agora, não aconteceu porque o caso dos Bacharelados Interdisciplinares ocorreu num contexto de expansão da universidade brasileira, então não houve direcionamento da iniciativa como algo separado da instituição. Em algumas instituições em que isso aconteceu, de fato pode ser interpretado dessa maneira. Agora, o projeto dos BIs nunca foi um projeto para criar uma espécie de reciclagem ou, a palavra melhor é recuperação de estudos, nunca um pedágio, e sim um primeiro ciclo para todos. De fato, as pessoas não passam por essa formação para repor, digamos, dificuldades ou lacunas na formação, não é essa a função dessa modalidade de graduação. Algumas instituições até interpretaram equivocadamente que os cursos do primeiro ciclo seriam cursos de reforço. E justamente aí eu encontrei muita reação, manifesta ao se considerar que – grande equívoco – os temas da cultura, das artes, da integração de saberes, dos fundamentos filosóficos, éticos, do substrato histórico, da crítica, quer dizer, considerar que tudo isso já deveria ter sido alcançado no ensino médio. Acho isso um brutal equívoco. Como se os bacharelados interdisciplinares fossem somente cursos de primeiro ciclo. Não são. O conceito da interdisciplinaridade implica realmente postular que os saberes contemporâneos devem ser saberes atravessados por outros, não saberes restritos, específicos. O adjetivo, nesse caso, é mais forte que o substantivo. É por ser interdisciplinar que esse tipo de bacharelado tem valor, não por ser um curso prévio a bacharelados profissionais. Então essa questão traz talvez um mal entendimento das lideranças acadêmicas sobre o que é o conceito da formação em ciclos. Entretanto, esse não é um mal entendimento exclusivo deles, porque tem muitas experiências de cursos desse tipo no Brasil (há um par de anos, havia mais de 40 bacharelados ou cursos interdisciplinares desse tipo no país todo). No entanto, poucos desses cursos mostram uma valorização do aspecto interdisciplinar ou mesmo transdisciplinar da proposta.
Esse assunto permanece em aberto e, na minha opinião, está estreitamente conectado com a questão das ações afirmativas porque o que provocou, e eu posso dizer isso como um depoimento, o que provocou e propiciou o experimento que tivemos nos BIs da UFBA foi justamente um efeito rápido das ações afirmativas. Na UFBA, o programa de ações afirmativas não foi implantado gradualmente. Em 2003 debatemos, em 2004 formulamos e em 2005 já entrou uma turma no modelo que até depois serviu de referência para a lei federal, das cotas dentro das cotas, cotas sociais com base na escola pública e um percentual de grupos étnicos, pretos, pardos e também indígenas nesse percentual de escola pública. Então isso foi de um ano para outro. Em 2006, a gente já tinha dentro da universidade um contingente imenso, quase um terço da universidade, formado por alunos que vieram de famílias que não teriam nenhuma chance de estar na universidade pública, apesar de virem do povo. Isso já antecipou para nós que essa problemática era incorporação não só de sujeitos, mas sim de matrizes culturais e origens sociais. Então o BI surgiu como uma solução já testada em outras realidades, mesmo no Brasil, em outros contextos, de abertura dessa problemática na universidade. Enfim, foram as ações afirmativas na Federal da Bahia que provocaram a demanda por bacharelados interdisciplinares, não o contrário. Isso foi inclusive discutido com o movimento negro no próprio processo. É claro que até hoje persiste uma série de incompreensões dessa questão que merecem ser retomadas uma vez que o tema das ações afirmativas volta à pauta, mas o tema da reestruturação radical dos currículos e arquiteturas curriculares me parece que continua com dificuldade até de ser entendido na própria universidade.”