Multissetorialismo garante pluralidade de voz nos rumos da Internet

Por Barbara Paro Giovani, Emanuel Galdino, Luis Botaro e Mariana Meira Ragonesi

Como o modelo vigente na governança da internet tem ampliado as participações heterogêneas e desafiado as organizações em um ambiente digital cada vez mais fluido

O que a Eco-92, evento global sobre meio ambiente que completa 30 anos em 2022, tem a ver com o seu hábito diário de entrar em um portal, ler uma notícia e depois opinar sobre ela em uma rede social? A resposta é: tudo. Quando você acessa a rede, uma série de recursos para a comunicação é ativada: cabos, servidores, códigos e protocolos. Nesse caminho de estruturas físicas e digitais, muita coisa circula: desde a mensagem que você digita e seus dados pessoais, até seus direitos de privacidade e liberdade de expressão. E para que tudo funcione técnica e legalmente, muitas decisões precisam ser tomadas por setores distintos, como governo, empresas, acadêmicos e membros da sociedade civil.

Esse modelo de gestão, que leva em conta o parecer de múltiplos envolvidos, foi apresentado pela primeira vez na Eco-92. A partir daí, o modelo multissetorial começou a ser aplicado na governança de pautas de interesse global, como a governança da internet.   

Envolver todas as partes é necessário

“Não sei se é o melhor modelo, mas é indispensável”, acredita Jean-Marie Chenou, professor de Ciência Política e Estudos Globais na Universidade de Los Andes, na Colômbia. De forma contrária à da pauta  do meio ambiente, que sempre foi liderada pelos Estados, a governança da internet surgiu nos anos 1990 encabeçada por empresas de tecnologia. “Ela nasceu em um momento de forte dominação da ideologia neoliberal, em que o setor privado tinha que liderar tudo, principalmente nos Estados Unidos”, conta Chenou.

A proposta das empresas era a de autorregulação, mas logo se viu que era necessário trazer o Estado para o centro do debate, pois a internet se conectava com temas como liberdade de expressão, democracia, segurança e igualdade. Com pautas semelhantes, a sociedade civil também passou a integrar o grupo de atores de interesse na discussão, trazendo ao debate uma visão de fora do viés estritamente comercial ou político. No Brasil, a academia surge como o quarto setor envolvido na governança, separada da sociedade civil. Chenou é contrário a essa divisão e afirma que “acadêmicos e especialistas deveriam ajudar na representação e na formulação das demandas da sociedade civil, dando voz a elas”. Ele explica, no entanto, que essa fragmentação é uma herança do histórico de formação das Nações Unidas.

Múltiplas vozes

Após duas décadas de discussões, a governança da internet é tão importante do ponto de vista ético e democrático quanto do ponto prático. “Mesmo que os Estados tomassem uma decisão, seria muito difícil implementá-la sem a participação de outros atores”, aponta Marília Maciel, professora de Direito da Propriedade Intelectual e pesquisadora da Universidade de Bordeaux Montaigne (França). “Só assim podemos chegar a decisões que vão ser não somente as melhores possíveis, porque a gente escutou todos os lados, mas também vão ser de fato implementadas”, complementa.

 

A governança multissetorial acontece em diferentes níveis: global, regional e nacional. Internacionalmente, ela é debatida no Fórum da governança de internet (IGF), evento anual que abre espaço para que membros de diferentes países dialoguem sobre seus interesses e compartilhem experiências. As soluções discutidas no IGF, entretanto, não são deliberativas, ou seja, não estabelecem medidas obrigatórias a serem tomadas, mas se tornam recomendações. No encontro de nações com realidades socioeconômicas tão diferentes, o debate pode ser mais lento e complexo. “A dificuldade de você encontrar pontos de consenso, de estar na mesma página, é muito maior [que em nível nacional], mas considerando que a internet é esse meio de comunicação transfronteira, eu acho que esse também é um nível muito real de tomada de decisão”, aponta Maciel.

A dificuldade de encontrar consenso também se deve à desigualdade de forças entre os setores, que é uma característica intrínseca do modelo. Na grande política de governança de internet, há empresas com muito poder e influência política, reflexo de seu surgimento e do ambiente neoliberal que prega a desregulação de setores. “Há empresas que têm um PIB maior do que muitos Estados no mundo, que fazem um lobby pesado, que costuram por dentro das estruturas governamentais no plano nacional para poder influenciar essas negociações no âmbito internacional”, diz a docente. Os Estados Unidos (EUA), por exemplo, sediam grandes empresas de tecnologia como Google, Apple e Amazon, e por isso detêm muitas infraestruturas de telecomunicações e tratamento de dados.

Núcleos de decisão

Para enfraquecer essas diferenças de forças, é importante haver organização regional e nacional. A Europa, por exemplo, foi durante muitos séculos o centro de poder mundial e hoje, com a ascensão da economia digital, a região perdeu espaço para novas potências, como EUA e China. Ainda assim, para participarem do debate, se fortalecem ao agirem como bloco organizado.

O mesmo poderia acontecer com a América Latina, exceto por um problema: embora Brasil e Colômbia sejam modelos de organização multissetorial, outros países não têm esse modelo bem estruturado, diminuindo a força do bloco latino-americano. Há também uma tendência de que o modelo multissetorial prospere em países mais desenvolvidos, com uma sociedade civil melhor organizada, enquanto países do Sul Global costumam centralizar essas decisões nas mãos do Estado.

No Brasil, a organização é realizada pelo Comitê Gestor da Internet (CGI). Diferentemente do caráter deliberativo no âmbito internacional, no Brasil o comitê consegue implementar medidas com caráter mais prático. “O CGI tem um processo de eleição que legitima os atores que o integram”, explica Maciel. São 21 membros: nove do setor governamental, quatro de empresas, três da academia e quatro do terceiro setor. Eles são eleitos a cada três anos e as políticas debatidas pelo conselho são aprovadas por votação. “É um processo representativo muito mais claro. Por isso, no âmbito nacional, há muita chance de colocar para funcionar”, ela observa.

Embora as decisões sobre políticas públicas sejam feitas pelo governo, o papel da sociedade civil no modelo multissetorial é significativo. No Brasil, foi esse setor que garantiu a aprovação do artigo sobre neutralidade de rede no marco civil da internet, sancionado em 2014. Se não fosse a pressão, o artigo seria removido, conforme o desejo das empresas de telecomunicações. “Para essa mobilização acontecer, para que se tenha uma massa crítica a mobilizar, é preciso que o letramento digital aconteça no dia a dia”, aponta Maciel.

Um exemplo disso é o programa Youth Brasil, uma iniciativa do CGI em parceria com a Corporação da Internet para Atribuição de Nomes e Números (ICANN) que promove a participação de jovens em três fóruns da governança de internet: o brasileiro, o da América Latina e o global. A ideia é promover o primeiro contato desse público com a temática de governança para, assim, contribuir com a formação de futuros líderes da internet. Além disso, o CGI também promove uma série de eventos que contam com a participação de atores distintos para debater pautas como violência na internet, diversidade, privacidade, entre outros. Em conjunto, essas medidas têm um papel importante na democratização das discussões que envolvem o uso e a gestão da internet, permitindo que grupos que não compõem as 21 cadeiras do CGI também se façam ouvidos.