Por Laura dos Santos Rougemont
Falar de conflito implica, quase que necessariamente, falar de violência. E conflito e violência são temas que têm aparecido cotidianamente para qualquer um/a que acesse os meios de comunicação e as redes sociais. Os primeiros meses de 2022 têm demonstrado uma profusão de conflitos, violências e guerras em várias escalas. Um dos casos mais evidentes é o conflito protagonizado por Ucrânia e Rússia, com bastante cobertura midiática, reacendendo os riscos de uma Terceira Guerra Mundial. Podemos citar também a guerra cotidiana que o povo preto e periférico enfrenta nas favelas cariocas, com brutais e inexplicáveis assassinatos de jovens negros/as, como foi o caso de Jonathan Ribeiro, 18 anos, morto no Jacarezinho por um policial militar. Conflito e violência também perpassam a guerra imposta pelos garimpeiros aos indígenas Yanomami no estado de Roraima, fronteira com a Venezuela. É ali é onde o povo indígena está sendo dizimado e, como numa espécie de releitura da colonização, vem sendo vítima de uma série de crimes em decorrência do garimpo ilegal que invadiu seu território com o incentivo do próprio governo federal. Na TI Yanomami, indígenas, dentre crianças e adolescentes, sofrem com a contaminação por mercúrio, desnutrição, ameaças, alcoolismo, bem como com crimes de cunho sexual, como assédios e estupros. Aliás, mais uma jovem indígena de apenas 12 anos acaba de morrer vítima de estupro por parte de garimpeiros.
Resguardada a infinidade e importância dos conflitos acima mencionados, neste espaço gostaria de falar de conflitos que, assim como o do povo Yanomami, também acontecem na região Amazônica. Situo aqui histórias envolvendo mulheres especificamente, as quais estiveram implicadas no que chamarei de “conflitos territoriais e comunitários”. Falo de Dilma, Nilce e Jane, três lutadoras incansáveis de questões envolvendo terra, água e, sinteticamente, território. As três foram assassinadas na Amazônia nos últimos anos.
Em primeiro lugar, é importante salientar que a violência que resulta destes conflitos territoriais e comunitários não pode ser reduzida a um mero “fenômeno” episódico. Aquilo que nos aparece como evidência imediata pode soar bastante reducionista. De forma simplificada, quero dizer que uma ameaça a um casal de agricultores assentados não é somente uma manifestação intimidadora qualquer, um assassinato de uma liderança que pauta a luta contra as barragens não é simplesmente uma morte sem precedente, assim como o corte ilegal de madeira num território quilombola não é um conjunto de árvores caindo e nem um incêndio numa área indígena é apenas fogo e fumaça. A violência que aparece neste tipo de conflito é sempre uma violência ancorada em um processo amplo anterior estruturalmente violento. Assim, no caso das três mulheres, a violência que resulta em seus assassinatos é reflexo de suas atuações territoriais, é resultado de sua evidência e atuação política.
Historicamente, a região Amazônica sempre foi alvo histórico de incursões colonizadoras e de projetos de integração nacional, fruto de iniciativas estatais ou de companhias privadas de colonização, as quais tiveram o desrespeito às populações autóctones como marca de seus desdobramentos. Desde o período colonial, a Amazônia é receptáculo de projetos dos “de fora”, que pensam tal região, de particularidades naturais e humanas, meramente como reserva de valor, como “fundos territoriais” [ainda] não completamente explorados pelo capital – para utilizarmos a expressão cunhada pelo geógrafo Antonio Carlos Robert de Moraes. Em consequência dos consecutivos regimes de expropriação que vêm sendo praticados ao longo de séculos na Amazônia, ela é também a região geográfica que apresenta os maiores índices de violência no campo no Brasil, resultado da sua qualificação – simbólica e material – como “a fronteira” interna por excelência.
Embora a retórica colonizadora e integradora nacional tenha se valido da ideia de “ocupação de um vazio demográfico” para justificar a invasão e a violação dos povos e comunidades amazônicos, a Amazônia não é a região para onde se projeta o fim de vazios mas, pelo contrário, é onde se implanta o início de muitos deles. E, na criação destes vazios, observamos desafortunadamente que as mulheres estão cada vez mais na fronte dos conflitos, tornando-se vítimas desses processos de expropriação, tal como Dilma, Nilce e Jane, três mulheres que deixaram vazios amazônicos.
Em seu ofício como agricultora assentada, monitora escolar, pequena comerciante e, principalmente, militante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Dilma Ferreira Silva desenhou o sentido de sua história. Na briga por manter os rios vivos no estado do Pará, fluindo sem a interposição de limites, Dilma agitou Tucuruí (PA). Depois de constantes violações de seus direitos e sem ter onde se fixar, firmou sua história em Baião (PA), no Assentamento Salvador Allende, chão conquistado a duras penas que a acolheu até o último segundo de sua vida. Foi no Salvador Allende que foi assassinada, junto com seu marido Claudionor e seu vizinho Hilton, no dia 21 de março de 2019, dentro de sua própria casa.
Sua história, como na afluência de um rio que se encontra com outro rio na insistência de nunca ser barrado, se encontra com a história de Nilce de Souza Magalhães, também militante do MAB e pescadora artesanal, que em Rondônia nunca quis ver as barragens de Jirau e Santo Antônio interrompendo os fluxos do Rio Madeira – causa pela qual edificou sua vida e sua briga até o fim. Nicinha, como era conhecida, vivia e trabalhava em Velha Mutum-Paraná, na capital Porto Velho. Ela era natural de Xapuri, no Acre, filha de seringueiros. Mudou-se com apenas dois anos para Rondônia. Em seu ofício de pescadora, tornou-se militante e passou a batalhar para que os rios não fossem desviados e interrompidos em seu curso natural. Atingida pela barragem de Jirau, passou a viver num acampamento próximo ao lago da usina hidrelétrica, onde foi assassinada e jogada nesse próprio lago, em 07 de janeiro de 2016.
Dilma, como Nicinha, era atingida por barragem. Mas também era assentada, assim como Jane Júlia de Oliveira, de 43 anos. Agricultora assentada e professora nas escolas rurais em Redenção (PA), Jane foi convidada, em 2012, para auxiliar na organização de um grupo de posseiros/as que buscavam a criação de um assentamento no município. A área abandonada, onde antes funcionava ilegalmente um curtume sem licença para operar, tornou-se o Assentamento Nova Conquista, dedicado à agricultura familiar graças ao esforço e liderança de Jane. Em 2017, assumiu a incumbência de liderar outro acampamento de sem-terra, tendo sido designada a tocar o processo de transformação da Fazenda Santa Lúcia num assentamento. Foi durante sua trajetória em defesa dos sem-terra na Santa Lúcia que Jane fora assassinada, junto a mais 9 pessoas, em 24 de maio de 2017, na chacina conhecida como “O Massacre de Pau D’Arco”.
Os entrecruzamentos transamazônicos de violações de direitos e de busca de oportunidades são vários e diferentes uns dos outros, ainda que em alguns casos, como os de Dilma, Nilce e Jane, o destino final tenha sido o mesmo em determinado momento de suas histórias. Apesar das vidas e atuações políticas das três terem se dado em localidades distintas, elas possuem como traço comum em suas trajetórias o fato de serem mulheres que buscaram oportunidades de sobrevivência e que militaram em contextos de conflitos na Amazônia. Todas estiveram inseridas em lutas comunitárias por direitos à terra, às águas, à moradia e, consequentemente, ao território onde viviam. Eram, portanto, defensoras de direitos humanos.
Enquanto para alguns a terra e os bens da natureza são vistos como meios para a subsistência, dado que a ocupação do solo, o uso da água ou o extrativismo vegetal e animal são imperativos da própria sobrevivência, para outros/as, todos estes elementos tornam-se objetos de disputa e especulação, vistos meramente como mercadorias em potencial de serem incorporadas aos circuitos de produção e de valor de troca. Neste quadro de oposições de bens versus recursos, a ocupação da terra e do território na Amazônia, fundamento primordial de cada uma destas disputas, transforma-se numa luta política marcada pela violência, segundo apontou Joe Foweraker.
No caso destas três mulheres, suas militâncias resultaram em seus apagamentos físicos e simbólicos. Poderíamos afirmar que foram vítimas de feminicídios? A antropóloga e pesquisadora Rita Laura Segato questiona se todos os crimes contra mulheres podem ser enquadrados no termo “feminicídio”, que abrange sem muitas distinções qualitativas a totalidade dos crimes de ódio contra as mulheres; ou se o termo deve classificar apenas uma categoria mais específica de crimes. É evidente que tais mulheres foram assassinadas em decorrência de seus vínculos políticos a segmentos sociais e lutas específicas. Dilma representava os/as atingidos/as por barragens; Nilce igualmente, além dos/as pescadores/as artesanais; Jane atuava na luta dos/as sem-terra pelo cumprimento da função social da terra e da reforma agrária. Quando tentam eliminá-las, tentam eliminar também um pouco de cada uma destas causas. Assim sendo, concordamos com Segato quando aponta que este tipo de crime, em específico, não são simples feminicídios, mas são antes crimes de genocídio a mulheres: tratam-se de “genocídios de gênero” ou “femigenocídios”.
Outro elemento destacado pela autora é a constatação de que há vínculos nítidos entre a violação do corpo feminino e a conquista territorial, combinação que esteve presente em diversos momentos da história das guerras e em diversas civilizações, aparecendo tanto em sociedades pré-modernas quanto modernas. O corpo-território das mulheres é elemento primário da conquista territorial mais ampla. A violação de um corpo físico feminino e a conquista física do território são parâmetros simbólicos equivalentes na ordem bélica patriarcal, ordem esta que atravessou e atravessa a lógica de conquista da Amazônia.
Observamos, então, que tais mecanismos de conquista (do corpo e do território) atuam de forma concertada. Afinal, o que está em disputa quando se violenta uma mulher é tanto o seu corpo quanto o espaço físico onde ele atua e ocupa. Assim sendo, no limiar, é a incorporação de áreas comunitárias e dos bens comuns na lógica da produção e valorização capitalista do espaço o objetivo final do abatimento dos corpos. Predomina o interesse pelos estoques de terras cultiváveis, de águas, de minérios, de recursos florestais e biogenéticos ainda “imobilizados” nos limites de proteção das populações nativas, como é o caso de assentamentos rurais ou de terras indígenas.
Portanto, é a destituição da coesão das comunidades e das formas organizativas em torno dos comuns que está em jogo. As lutas coletivas de comunidades indígenas, ribeirinhas, quilombolas, tradicionais, sem-terra, atingidas por barragens, dentre outras, põem em perspectiva a defesa do valor de uso de bens comuns e das formas comunitárias de ocupação do espaço. Para as pesquisadoras Raquel Gutiérrez, Lucia Linsalata e Mina Navarro, a comunidade é o tributo essencial da vida, pois é o núcleo que dá condições de reprodução da mesma. E a organização e o trabalho cooperativo permitem enfrentar problemas em torno das necessidades básicas, viabilizando o sustento material e espiritual das comunidades de vida.
Os corpos de Dilma, Nilce e Júlia tornaram-se suplícios de uma guerra contra formas de ser que valorizam o comunitário e o bem comum na Amazônia. É preciso que estas guerras sejam postas em evidência, de modo que as tentativas de eliminação destas lutas e das histórias particulares de mulheres amazônidas, como Dilma, Nilce e Jane, continuem vivas na memória coletiva. E também para que outras semelhantes não se repitam.
Laura dos Santos Rougemont é professora e geógrafa. É docente substituta no Departamento Sociedade, Educação e Conhecimento (SSE) – Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisadora no Mapa de Conflitos Envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil, da Fundação Oswaldo Cruz. É autora do livro À margem da voz: repensar a fronteira a partir da violência política e dos genocídios de gênero na Amazônia.