Por Hugo Ricardo Soares
A morte sempre esteve cercada por mistérios. As especulações sobre suas origens e significados são tão numerosas quanto são as sociedades e culturas humanas. Considerando apenas o Ocidente judaico-cristão, poderíamos dizer, de maneira muito geral, que as representações e narrativas sobre a morte têm origens em três sistemas de pensamento diferentes: um que é religioso, outro médico-científico e um terceiro que poderíamos definir, talvez, de uma maneira um tanto imprecisa, como filosófico.
O discurso religioso, presente nos mitos e histórias sagradas, fala das origens da morte do corpo físico (e da imortalidade da alma), dos seus sentidos não apenas para aquele que morre, mas também para aqueles que ficam e que precisam lidar com a ausência de quem partiu. Essas, na maior parte das vezes, não são narrativas literais e precisam ser interpretadas a partir dos sistemas simbólicos específicos de cada religião. Para algumas delas, a morte finaliza uma etapa da vida do espírito; para outras, a morte é apenas a primeira etapa de um novo nascimento.
O saber médico-científico especula sobre a dimensão biológica (portanto, natural) da morte. É ele que tenta definir quando alguém está efetivamente morto, ou quando um moribundo, mantido vivo por aparelhos ou medicação, deve ser “liberado” para seguir seu processo de morte natural. Talvez a questão mais interessante, nesse universo médico, seja saber qual evento ou manifestação orgânica define verdadeiramente a morte. Até o final da década de 1960, a maioria dos estudiosos do assunto acreditava que a morte era definida pela falência cardíaca. O coração era, então, compreendido como o centro da pulsão da vida, o núcleo vital por excelência, a locomotiva que mantinha em movimento (um movimento de vida!) todo o resto da composição representada pelo corpo. Nas décadas seguintes, a falência cerebral passou a ser considerada o evento definidor da morte de um indivíduo. A morte passa a ser associada, portanto, ao fim da consciência, ou melhor, fim das possibilidades de uma vida consciente.
Ao se discutir qual evento biológico determina a morte, discute-se, consequentemente, também os limites e sentidos da condição de estar vivo. Neste ponto, as concepções médico-científicas coincidem com o campo das especulações filosóficas que compreende a vida consciência como a condição existencial distintiva da condição humana. Essa seria uma dimensão ontológica do Ser e nela a consciência estaria associada ao ato de sentir/experienciar a realidade do mundo. Segunda essa perspectiva, toda experiência de um ser vivo, inclusive a experiência de morrer, é experiência de vida. O que nos aflige não é a morte propriamente dita, mas o medo da experiência do morrer.
Dentre as muitas representações que as sociedades e culturas humanas produziram sobre a morte ao longo da História, certamente as religiosamente orientadas tiveram e têm maior proeminência no senso comum. Afinal, como afirmou o cardeal personagem do livro As intermitências da morte de José Saramago, “Sem morte, ouça-me bem, senhor primeiro-ministro, sem morte não há ressurreição, e sem ressurreição, não há igreja”[i]. Na inusitada história, a morte tira férias (ou entra em greve) e ninguém mais morre no país. Esse fato produz uma série de situações absurdas e gera consequências drásticas não somente para a igreja (ou para a religião), mas também para outros setores da vida social. Tudo vira um caos e a vida, de maneira geral, perde seu sentido. Como disse Guimarães Rosa, “a gente morre é para provar que viveu”!
Seja qual for a concepção ou a representação de morte adotada, ela sempre mobiliza e coloca em relação diferentes esferas da vida social de um determinado grupo: há, certamente, uma dimensão religiosa com os rituais da morte, as exéquias, os enterros, as missas em nome dos falecidos e os velórios; mas também há uma dimensão burocrática da morte, com os laudos, atestados, apólices de seguro dos falecidos; uma que é mercadológica e logística, que envolve os tratos com funerárias e com todos os outros “profissionais” da morte; há uma dimensão social propriamente dita, representada por toda a trama de relações, fluxos de afetos e condolências que são intensamente mobilizadas sempre que alguém morre, por fim, uma dimensão psicológica, que é aquela das vivências e formulações subjetivas que as pessoas que perderam um ente querido obrigatoriamente têm que passar. Dada essas características, para as Ciências Sociais, a “morte” é classificada como um “fato social total”. Esse termo foi utilizado pela primeira vez no início do século XX, pelo sociólogo e antropólogo francês Marcel Mauss, para definir exatamente eventos sociais de grande ressonância, que tem como característica principal o fato de não se restringirem apenas à uma dimensão do mundo social. São fenômenos que informam e organizam instituições e práticas sociais distintas e, aparentemente, sem relações umas com as outras.
Sendo um evento tão multiforme e rico em representações, muitas áreas do saber se interessam e especulam sobre a morte. No campo da História, certamente se destacam as pesquisas do historiador francês Philipie Ariès, autor dos clássicos Essais sur l’histoire de la mort en Occident: du Moyen Âge à nos jours e L’Homme devant la mort. Nestes dois trabalhos, o autor se preocupou em historicizar os fenômenos e as práticas relacionadas à morte que pareciam inerentes à natureza humana, como se fossem universais imutáveis. Um deles, com o qual nos ocuparemos mais detidamente à frente, é o luto, que, segundo Ariès, passou por uma profunda modificação no período contemporâneo, deixando de ser, assim como a própria morte, um evento público, para se tornar cada vez mais um evento privado, vivenciado basicamente pela família do falecido (e, na maior parte das vezes, apenas pelos familiares mais próximos) em reclusão. Antes desta configuração familiar ganhar forma, o luto era, sobretudo, um rito social, dedicado a reforçar os laços comunitários após a passagem desagregadora da morte.
A morte, como fenômeno histórico e cultural, também foi tema de investigações de outros importantes pensadores do século XX. Um deles foi o idealizador da psicanálise, Sigmund Freud que, no ensaio intitulado Luto e melancolia[ii], escrito em 1915 e publicado em 1917, teorizou sobre a condição de enlutado, comparando-a com estados melancólicos e identificando o que de comum e de diferente existe entre os dois.
Para Freud, o enlutado só conseguirá perceber que a pessoa amada não está mais presente através de um verdadeiro exame da realidade. Esse processo, denominado como “trabalho do luto”, demanda tempo e esforço, pois é um verdadeiro investimento psíquico de convencimento da perda. Se esse trabalho for bem-feito, paulatinamente o enlutado se convence que toda a libido – ou seja, a energia que dirigimos aos objetos de nossos desejos – ligada ao falecido deve ser retirada daquele objeto. Portanto, se o trabalho do luto acontece em condições ideais, com tempo e esforço ele acaba por se resolver naturalmente com o retorno do enlutado à normalidade. Esse tipo de luto é denominado como “normal”. Porém, quando a relação existente entre o enlutado e o falecido for ambivalente, permeada por amor, mas também por ódio, ainda que inconsciente, o luto pode se tornar patológico. Neste caso, ao invés de curar, ele cria mais problemas psíquicos.
Outro psicanalista importante que teorizou sobre o luto foi o inglês John Bolby. Em suas pesquisas, ele elencou as quatro fases psíquicas do luto, esquema amplamente conhecido e utilizado até os dias de hoje: 1) A fase da desorientação, da negação e do distanciamento; 2) A busca da figura perdida; 3) Dor profunda e apatia; 4) Reorganização e retorno à vida normal.
Na primeira etapa, existe a desorientação e o desespero de não se saber o que fazer frente à perda. Isolar-se ou simplesmente negar o fato são ações comuns neste período. No segundo momento, há o incremento da negação da realidade dolorosa e a busca pelo falecido. Na terceira etapa, começa-se a aceitar a perda, fato que gera um desprezo frente ao mundo e uma sensação de apatia e, por fim, na quarta fase, quando e se todo o processo ocorreu da forma esperada, há o retorno à vida social.
Essa forma de organizar as fases do luto aproxima-se da maneira que a tradição antropológica britânica classifica os ritos de passagem. Evidentemente, nem todo rito é de passagem e nem toda corrente da antropologia – que dentre as Ciências Sociais e humanas é a que mais se dedica ao estudo dos ritos – entende e concebe os ritos de passagem da mesma maneira. De qualquer forma, para nossa argumentação, a definição e classificação dos ritos desenvolvidas pelo antropólogo escocês Victor Turner pode nos ser útil para olharmos para o luto a partir de sua dimensão coletiva e não mais individual, como fazem as análises psicanalíticas e psicológicas.
Na teoria de Turner, que é inspirada no trabalho do folclorista francês Arnold Van Gennep, os ritos de passagem, sejam eles quais forem, são estruturados em três etapas: a primeira retira a pessoa da vida coletiva, subsumindo com suas identidades sociais; a segunda é a fase da communitas, ou seja, um momento de liminaridade em que as regras e classificações sociais perdem seu valor, colocando todos que dela participam no mesmo status de neófito; e a terceira fase é a reintegração da pessoa (ou das pessoas) que está passando pelo rito à normalidade da vida social. Quem passa por esse processo nunca termina da mesma forma. Os ritos de passagem fazem morrer a persona social que existia, para colocar no seu lugar uma nova. Em diferentes sociedades humanas, esses ritos servem, por exemplo, para transformar meninos e meninas em homens e mulheres com toda a carga social e responsabilidade que isso possa trazer.
Desta forma, o luto pode ser entendido como um rito de passagem. Entra-se nele devido a uma circunstância social que a é a perda de um ente querido. O “trabalho do luto”, para utilizarmos a terminologia freudiana, corresponde ao período de liminaridade. Nesta fase, a pessoa enlutada torna-se uma “pessoa tabu” ou proibida. Em muitas sociedades não ocidentais, pessoas “tabu” não podem ter contato com outras pessoas, devido à sua proximidade com a morte. Nesse período de isolamento, há um esforço psíquico por parte do enlutado para aprender a viver sem a presença do falecido. É um período difícil, mas no final das contas também de aprendizado. Esse período também serve para o coletivo compreender que o enlutado, após a efetivação do rito-luto, está novamente pronto para ser inserido no meio social sem trazer problemas ou perigo para os outros.
Essa dimensão coletiva do luto também foi indicada por Marcel Mauss. Sendo um dos fundadores e principais expoentes da tradição sociológica francesa, Mauss se dedicou a inúmeros temas e, dentre eles, a questão da expressão obrigatória dos sentimentos em sociedades australianas e neozelandesas. No ensaio clássico, publicado em 1921 e intitulado A expressão obrigatória dos sentimentos (rituais orais australianos)[iii], Mauss, a partir da análise de material de pesquisa de outros pesquisadores (ele não era um pesquisador de “campo”, como costumamos dizer), argumenta que os diversos ritos orais, compostos basicamente por gritos, uivos e cânticos que são performados sobre o corpo do falecido em diversas sociedades australianas, são expressões de ideias coletivas e não individuais. Uma das evidências que ele apresenta para afirmar isso é o fato de que as diferentes expressões de cólera, medo e tristeza, que ganham proeminência nestas circunstâncias, não são expressas ou desempenhadas pelos mesmos parentes. Não são apenas as ocasiões propícias para a expressão destes sentimentos que são fixas, mas também as pessoas que podem/devem fazê-las.
O fato de considerar o luto e a lamentação fúnebre como ato coletivo, não retira ou diminui, de qualquer forma, a força que estas ações exercem nos indivíduos, pois elas não são simples manifestações, mas “sinais, expressões compreendidas, em suma, uma linguagem. Esses gritos são como frases e palavras. É preciso dizê-las, mas se é preciso dizê-las é porque todo o grupo as compreende”[iv].
Por fim, vejamos uma interpretação do luto que funde numa mesma argumentação, os aspectos coletivos (sociais) e individuais (psíquicos) do fenômeno. Essa abordagem bastante original, mas ainda pouco conhecida nos países lusófonos, foi elaborada pelo historiador das religiões e antropólogo italiano Ernesto de Martino, no livro Morte e Pianto Rituale: dal lamento funebre antico al pianto de Maria[v]. Neste trabalho de fôlego, De Martino analisa, segundo referenciais da História, da Filosofia, da Antropologia e da Psicanálise, ritos funerários em diversos contextos históricos e culturais. Em sua leitura, a morte é um dos eventos humanos com maior capacidade para gerar a “crise da presença”, e a “presença” é a capacidade que todo indivíduo tem de agir histórica e culturalmente. Consequentemente, a “crise da presença” é a perda desta capacidade e ela pode atingir indivíduos (no caso de uma depressão, de um luto que não passa, de uma crise de autoestima etc.) ou grupos inteiros (movimentos apocalípticos, messiânicos, crises coletivas etc.).
De Martino percebe que a lamentação é uma prática ritual presente em inúmeros povos, como egípcios, mesopotâmicos, judeus, gregos, romanos, dentre outros, e, não obstante as diferenças culturais entre as concepções de cada uma dessas civilizações, de maneira geral elas apresentam um nexo profundo entre a morte dos indivíduos com a morte dos deuses ligados à vegetação e à colheita (Osíris, Adônis etc.). O renascimento destes deuses é o horizonte meta-histórico do ritual. Esse é um tema recorrente nas mitologias das civilizações que se formaram na região mediterrânica. Nesse sentido, conclui o autor que as chamadas “civilizações primitivas” que viveram naquela área, construíram formas culturais de controle à perda da presença. Esta crise da presença pode ser desencadeada por uma angústia capaz de afetar os vivos quando se encontram diante do ente morto. Segundo De Martino, o controle é garantido pelo choro e, principalmente, por um saber chorar: técnica que, no momento fúnebre, “reintegra o homem na história humana” (2016), ou seja, resgata a presença do(s) enlutado(s) que estava se perdendo junto com o falecido.
Além dessas referências sobre o mundo antigo (pré-cristão), nesse livro De Martino analisa documentos relativos ao mundo cristão e, de forma comparativa, conclui que o cristianismo provocou uma fratura na instituição cultural do lamento fúnebre, na medida em que sua cosmologia construiu a figura do Cristo vencedor da morte. Assim, de acordo com o autor, o cristianismo rejeitou o lamento fúnebre por considerá-lo um costume pagão, posto que antitético à própria ideologia cristã da morte e de sua superação. No entanto, ele também observa que essa mesma cosmologia narra a lamentação de Maria que, em estado de pranto, debruça-se sobre o corpo morto de Jesus. A resignação de Maria torna-se, então, o exemplo paradigmático da perda. Ou seja, a despeito da rejeição institucional e dogmática, o rito da lamentação na civilização cristã é, não apenas persistente, como também remete ao horizonte histórico do saber chorar.
De Martino percebe que o corpo lamentoso protege sua presença a partir de determinadas performances. De acordo com as fontes documentais pesquisadas pelo autor, o ato de debruçar-se sobre o morto, de dar batidas no próprio peito, de erguer os braços em sinal de desespero, dentre outros gestos, fazem do lamento um ritual e uma técnica de reintegração da presença ou da permanência do “agir no mundo” a partir daquilo que ele definiu em termos de “de-historização do devir”: a retirada temporária do sujeito do fluir histórico e a instauração de um “regime protegido” em que é possível estar na história como se nela não se estivesse.
Empiricamente, seu interesse pelas mencionadas fontes, bem como sua etnografia, resultam de um trabalho de campo na região da Lucânia[vi] – marcada por condições de extrema pobreza – em cujos vilarejos ele verifica a presença de mulheres convocadas pelos entes do falecido para chorar diante do morto. Assim, comparativamente, constata De Martino que os corpos – lamentosos – dessas mulheres performam gestos que coincidem com aqueles descritos nos documentos por ele analisados. Essa perspectiva, porém, não significa que o autor tenha procurado o que há de “universal” ou “arquetípico” frente à morte. Ao contrário, ele chama a atenção para a especificidade de tais práticas no interior de um contexto histórico-cultural peculiar em que elas se manifestam.
Todas essas interpretações e formulações sobre a morte e o luto, tanto as produzidas pelos psicanalistas, historiadores e cientistas sociais em suas pesquisas, quanto as produzidas pelas pessoas e sociedades humanas pesquisadas, são especulações narrativas sobre a morte ou sobre o morrer. De fato, como querem os céticos, ninguém que morreu voltou para explicar efetivamente como é essa experiência e o que efetivamente ela significa. Por isso, pensar sobre a morte é sempre uma atividade relacional. Precisamos da morte do outro para passarmos pela experiência do luto. Toda narrativa sobre a morte é, portanto, como já havíamos indicado, uma narrativa sobre uma experiência vital. É preciso estar vivo para morrer e para chorar a morte do outro. A morte do outro tem então sentido para os vivos, mas não para quem morre.
Hugo Ricardo Soares é professor substituto da UFES campus São Mateus, doutor em Antropologia Social pela Unicamp e pesquisador do Laboratório de Antropologia da Religião (LAR-Unicamp).
[i] SARAMAGO, José. As intermitências da morte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
[ii] FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. São Paulo: Coac & Naify, 2013.
[iii] MAUSS, Marcel. A expressão obrigatória dos sentimentos (ritos orais funerários australianos). In. Ensaios de Sociologia. São Paulo: Perspectiva, 2001.
[iv] MAUSS, 2001, p. 332.
[v] DE MARTINO, Ernesto. Morte e Pianto Rituale nem Mondo Antico – dal lamento fúnebre al pianto di Maria. Torino: Bollati Boringhieri, 2016.
[vi] Em 1947, a região da Lucânia passou a ser chamada oficialmente como Basilicata.