Por Monique Rached
foto de Irineu Norberto Cunha
Pesquisadora Amanda Vianna relata ter encontrado diferentes linhagens de coronavírus em morcegos que habitam um fragmento de mata na cidade de São Paulo e a virologista Angélica Cristine Campos fala sobre o monitoramento dos vírus Influenza encontrados em morcegos do Brasil. Ainda assim, especialistas defendem consensualmente sua importância ecológica para a saúde do meio ambiente. Mesmo com um histórico associado à disseminação de doenças, tais animais sinantrópicos não devem ser vistos como ameaça. Saiba por quê.
Morcegos são animais popularmente conhecidos por dividirem o ambiente urbano com seres humanos. Na cidade de São Paulo existem cerca de 25 espécies de morcegos segundo a bióloga Amanda Vianna – mestranda da Universidade de São Paulo (USP). A pesquisadora, que investigou ectoparasitas e vírus em morcegos presentes no Parque do Instituto Butantã – um fragmento de mata secundária circundado pela cidade – relata ter encontrado coronavírus e herpesvírus no organismo dos animais. No entanto, tais resultados não devem resultar em apreensão, uma vez que “os coronavírus encontrados foram da subfamília Alphacoronavirinae e normalmente os coronavírus causadores de doenças em seres humanos são da subfamília Betacoronavirinae”, explica Vianna.
Sendo o único grupo de mamíferos que possuem a capacidade de voar, os morcegos – ou quirópteros – também são o segundo grupo mais diverso, ficando atrás apenas dos roedores. Fazem parte do folclore, representando alguns estigmas ruins como chupadores de sangue, por mais que apenas três das cerca de 1.400 espécies de morcego de fato sejam hematófagas. Historicamente, ficaram conhecidos por disseminarem doenças como a raiva, a síndrome respiratória aguda grave de 2002 (SARS), a síndrome respiratória do Oriente Médio (MERS) em 2012 e mais recentemente pela possível relação com o desencadeamento da pandemia da covid-19.
Vários estudos já mostraram que o organismo dos morcegos concentra uma diversidade elevada de vírus em relação a outros mamíferos e por isso existe uma preocupação maior sobre o potencial destes animais funcionarem como vetores de doenças emergentes. Vianna explica que a origem dos morcegos aconteceu por volta de 50 milhões de anos, o que coincide com o surgimento de alguns vírus. “Isso seria uma das evidências de que morcegos e alguns vírus, como é o caso do coronavírus, teriam coevoluído. Além disso, outras evidências sustentam essa hipótese, como o fato de morcegos conseguirem manter o vírus por mais tempo antes de adoecer.”
O surgimento do vôo em morcegos pode ter favorecido o aparecimento de uma resposta imune peculiar. Durante o voo, o organismo do morcego pode atingir cerca de 40ºC – uma temperatura corporal maior do que a dos outros mamíferos – e liberar grande quantidade de radicais livres. “Tal fato pode ter tornado esses pequenos mamíferos voadores resistentes aos patógenos intracelulares – como no caso dos vírus. Isso, ao longo do processo coevolutivo, pode ter selecionado vírus capazes de suportar a amplitude térmica do hospedeiro morcego. Consequentemente, essa característica dos vírus sobreviverem no corpo dos morcegos a 40ºC pode ter facilitado a transmissão destes para outras espécies de mamíferos, pois estes vírus suportariam a febre nos novos hospedeiros.”
“Ao mesmo tempo, essa condição torna os morcegos mais suscetíveis a patógenos extracelulares – como no caso de fungos. Por exemplo, uma doença chamada síndrome do nariz branco, causada por um fungo, matou milhares de morcegos em 2019 nos Estados Unidos”, diz Vianna.
A pesquisadora também analisou em seu mestrado os ectoparasitas de morcegos, que são artrópodes que parasitam a pele e cavidades externas do organismo. O estudo dos ectoparasitas é importante pois estes animais podem ser vetores de algumas viroses. “Nós encontramos uma amostra de ácaro ectoparasita específico de morcegos suspeita para coronavírus, mas ainda estamos realizando algumas análises. O fato é que esse ácaro em questão é específico de morcego e não sobrevive muito tempo fora do corpo do hospedeiro, sendo que dificilmente conseguiria parasitar os seres humanos. No entanto, temos muito ainda que pesquisar sobre esses ectoparasitas e mais ainda a saber sobre o papel deles como possíveis vetores de vírus. Ainda é muito cedo para qualquer afirmação.”
O acompanhamento de diferentes vírus e parasitas presentes em animais é fundamental para a prevenção de novos eventos epidêmicos. Em 2012 foram identificados, pela primeira vez no Brasil, vírus Influenza relacionados a morcegos (H17N10 e H18N11). A pesquisadora que hoje trabalha no Instituto de Virologia do Charité-Universitätsmedizin em Berlim, na Alemanha, Angélica Cristine Campos estuda este tipo de vírus desde 2014 e relata que “avaliar o potencial zoonótico deste vírus é nossa prioridade desde a detecção, uma vez que como é um vírus relativamente novo esse potencial ainda é desconhecido”.
Para descobrir se um vírus tem o potencial de infectar diferentes células animais, os pesquisadores precisam investigar detalhadamente a estrutura do maquinário viral envolvida na penetração do vírus nas células. “Testes com diferentes células de mamíferos mostraram que esse vírus usa um receptor (proteínas do complexo MHC-classe II) diferente dos demais Influenza vírus (Ácido siálico), isso poderia ‘dificultar a infecção’ mas não seria um fator limitante. Ainda no campo da pesquisa com células, outros pesquisadores conseguiram confirmar que os Influenza relacionados a morcegos não infectam células humanas, mas todos os outros influenza vírus infectam células de morcegos.”
Campos alerta para o fato do vírus influenza apresentar um genoma segmentado (ou seja os seus genes são separados), uma condição que facilita a recombinação de genes, num processo chamado de reassortment. Por conta disso, “os morcegos têm um grande potencial de funcionar, assim como os suínos, como misturadores de vírus, e com isso, o risco do surgimento de novos vírus aumenta”.
Importância ecológica dos morcegos
Apesar de todo o potencial zoonótico apresentado pelos morcegos, é consenso, entre pesquisadores desta área, a importância em garantir sua conservação.
No processo de derrubada de florestas, os animais silvestres perdem área de vida. A partir disso, algumas espécies mais resistentes podem ocupar as áreas urbanas, sendo então chamadas de espécies sinantrópicas. Campos afirma que “situações como stress fisiológico decorrente principalmente de ações de degradação ambiental podem levar a um aumento da prevalência viral em populações específicas de morcegos e outros animais silvestres”.
Nos centros urbanos, os morcegos encontram abrigo em construções humanas como forros de casa e bueiros. Devido a sua diversidade alimentar, mesmo nas cidades os morcegos podem realizar importantes papéis ecológicos como dispersores de sementes e até controladores de populações de insetos vetores, como o Aedes aegypti.
“De um conjunto de espécies e interações preservadas, emergem mecanismos que regulam a qualidade da água, do ar e papéis como o controle de espécies que podem ser vetores de doenças para os seres humanos, além de muitas outras funções”, explica Vianna.
Em áreas agrícolas os morcegos desempenham um papel muito relevante na supressão de insetos praga, segundo Àdria López-Baucells, pesquisador do Museu de Ciências Naturais de Granollers da Espanha. O pesquisador que participou da construção do primeiro Guia de Campo dos Morcegos da Amazônia, incluindo 168 espécies, defende que os morcegos “são jardineiros que trabalham para a restauração das florestas do planeta de maneira gratuita”. Baucells conta que os morcegos são os responsáveis pela polinização de plantas economicamente importantes como o agave-azul – matéria prima da tequila – e da fruta durião, muito consumida no oriente.
Nossas únicas armas efetivas na prevenção de novos escapes (spillover) de vírus são, portanto, as pesquisas científicas, aliadas à conservação ambiental. Nas palavras da virologista Campos: “o equilíbrio ecológico funciona como uma cortina de proteção contra as viroses emergentes”.
Vianna ressalta o conceito de saúde única, que tem ganhado visibilidade nos últimos tempos: “no fundo, falar de saúde do meio ambiente, dos animais silvestres e domésticos, e dos animais humanos, é falar de saúde única. Não existe vida humana saudável onde não exista saúde ambiental”.
Monique Rached é bióloga pela Universidade de São Paulo e especialista em jornalismo científico pelo Labjor-Unicamp. Trabalha como quadrinista e ilustradora de técnicas tradicionais e digitais. Atualmente é colaboradora na Cátedra Unesco para Sustentabilidade do Oceano e bolsista do programa Mídia Ciência da Fapesp.