Por João Luiz Maximo da Silva
No interior do espaço doméstico as contradições são evidentes, a começar pela modernidade das inovações que não são capazes de absorver o anacronismo da estrutura social. Podemos dizer que entramos na modernidade pela porta dos fundos, pela porta da cozinha.
Normalmente quando pensamos em termos como Revolução Industrial, imediatamente associamos com grandes transformações urbanas: ferrovias, usinas, indústrias, transportes, iluminação das ruas etc. A imagem do lar parece estar distante destas transformações, como reduto da privacidade e tranquilidade familiar. Mas a Revolução Industrial também atingiu os lares, transformando seus espaços e relações de uma forma inusitada. Dentre essas transformações, podemos destacar o papel do gás e da eletricidade.
No Brasil, as novas fontes de energia primeiro atingiram o espaço urbano e posteriormente os lares de grandes cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, comandadas por grandes grupos estrangeiros já a partir do final do século XIX e começo do século XX. No caso paulista, duas empresas de capital estrangeiro foram importantes nesse processo, a The San Paulo Gas Company e a The São Paulo Tramway Light and Power Company.
São Paulo passava por um intenso processo de crescimento urbano desde meados do século XIX, alavancado pelo café e o início da industrialização. Se não existia uma necessidade concreta dos novos equipamentos domésticos, havia uma transformação na mentalidade das elites tornando possível e desejável uma série de mudanças de hábitos que fosse identificada com o progresso e o ideal urbano vigente na Europa. Assim, o “embelezamento urbano”, a sanitarização e o consumo de objetos identificados com esses ideais faziam parte de um desejo difuso de modernização.
No espaço dessas novas residências, os equipamentos domésticos a gás tiveram um papel central, pois propiciaram uma nova configuração espacial e novas relações de trabalho e convivência doméstica. Além disso, foram o ponto de ligação da casa com o espaço urbano por via das redes de distribuição de energia, um fenômeno novo.
A despeito de a The San Paulo Gas Co. estar em atividade em São Paulo desde 1872, foi apenas no início do século XX que se iniciou o fornecimento de combustível para fins domésticos (cozinha e aquecimento). A partir de 1912, quando a Light adquiriu o controle acionário da The San Paulo Gas Co., a exploração comercial do gás ganhou impulso e atingiu o espaço doméstico. O objetivo da Light era o controle total de várias empresas de serviços urbanos, iniciando uma reestruturação que iria modificar sensivelmente a comercialização de gás para os fogões.
Divulgação
Podemos identificar vários problemas na entrada das novas formas de energia e dos aparelhos no espaço doméstico. Além da questão econômica, já que se tratava de uma tecnologia nova e certamente cara, havia também a resistência das donas de casa e cozinheiras. Apresentava-se uma clara tensão entre tradição e novidade, e um dos instrumentos usados para quebrar as resistências foi a publicidade. A propaganda tinha a tarefa não apenas de divulgar uma novidade, mas também de associar valores às novas formas de energia e seus equipamentos. Outra preocupação era com o manuseio dos equipamentos. As propagandas muitas vezes se constituíam em verdadeiras bulas, esclarecendo vários aspectos em relação ao funcionamento, principalmente no caso do fogão a gás.
O principal objetivo da companhia de gás era convencer o consumidor a se conectar à rede. Isso implicava obter o fogão e todo o aparato de abastecimento (tubulações e medidores). Uma vez conectado, o fornecimento era ininterrupto e a empresa se encarregava de incentivar o consumo de gás oferecendo descontos a partir de um patamar mínimo. Estabelecia-se, assim, uma nova relação no consumo, completamente dissociada de necessidades específicas que eram atendidas pela lenha e carvão.
A modernização da cozinha
Ainda que fomentada pela companhia de gás, as transformações contaram com uma situação favorável. O processo de urbanização era um terreno fértil nesse sentido. Nos centros urbanos brasileiros, a higiene teve um papel decisivo nas transformações da cozinha. Ao contrário dos Estados Unidos, onde os engenheiros estavam no primeiro plano, e da Europa, onde a arquitetura centralizava as discussões, no nosso caso, as autoridades médicas tiveram um papel de destaque, apoiadas pelas autoridades públicas. Num contexto de epidemias e necessidade de limpeza e organização da cidade, as antigas moradias e a cozinha em especial despertaram a atenção das autoridades.
A casa e a família eram vistas (pelas autoridades) como obstáculos nesse processo devido à existência de hábitos coloniais arraigados, como a presença de alcovas sem ventilação e cozinhas externas consideradas precárias. Os códigos de postura e sanitário estabeleceram novas normas para a construção das casas e se detiveram especialmente nas cozinhas, com exigências que iam desde a simples obrigatoriedade da existência do espaço (dentro da casa) até a impermeabilização das paredes e pisos.
A presença de empregados (considerados pelas autoridades como ignorantes e desprovidos de noções de higiene) associada à ideia de precariedade material na manipulação e preparo dos alimentos tornou a cozinha foco das medidas higiênicas. Nesse contexto, os saberes dos engenheiros e arquitetos estariam submetidos à essa lógica.
A valorização do trabalho doméstico conduzido ou sob a supervisão da dona de casa foi acompanhada da transformação de outros espaços da casa. Os manuais domésticos passaram a enfocar a importância da organização e limpeza. Mas esses valores eram tratados de forma diferente em relação ao que acontecia nos Estados Unidos. Lá, as preocupações estavam diretamente ligadas a uma demanda de tempo que envolvia a diminuição das tarefas. Este tipo de preocupação estava completamente fora da realidade brasileira, mesmo nos centros urbanos. Numa casa onde o trabalho estava a cargo de empregadas, o tempo não era uma questão crítica.
O discurso médico invadia todas as áreas, influenciando os discursos de engenheiros, arquitetos e autoridades públicas, que seguiam a reboque da necessidade de se “domesticar” a família e a casa por intermédio da ordenação e limpeza, adotando uma rotina doméstica identificada com esse discurso. Uma das formas foi o aparelhamento da cozinha, não apenas em suas condições físicas (ladrilho, paredes impermeabilizadas etc..), mas principalmente no preparo dos alimentos. O fornecimento de água, gás e eletricidade eram vistos como capazes de transformar completamente esse processo, adequando a cozinha e suas práticas às necessidades estabelecidas pelas autoridades.
Se o discurso higiênico atendia a uma demanda de limpeza e desobstrução da cidade, a exploração do gás e da eletricidade aproveitou-se desse discurso para fomentar e expandir o consumo de equipamentos domésticos. Como a cozinha parecia ser o alvo principal das preocupações das autoridades, o grupo Light centrou seus esforços na promoção do uso doméstico dos novos combustíveis, elegendo o fogão a gás como seu principal produto. A tecnologia oferecida pelas empresas estrangeiras prometia essa adequação desejada da nova cozinha à higiene e ao mesmo tempo procurava vencer as defasagens e os antigos hábitos indesejáveis. Mas esse processo ignorava as condições históricas e culturais, impondo-se de forma a eliminar e substituir as antigas práticas.
O mesmo discurso médico, adotado por engenheiros, arquitetos e autoridades públicas, aparece no discurso publicitário dos fogões a gás associando o fogão a gás com a higiene. Mesmo não cuidando pessoalmente da cozinha, a mulher deveria saber todas as tarefas para orientar seus empregados. A manutenção de uma cozinha sempre limpa era essencial nessa nova reconfiguração do espaço doméstico. A nova cozinha exigida nos códigos de postura e sanitário demandava um espaço fácil de limpar com ladrilhos e azulejos laváveis. A presença de um fogão a gás deveria servir para facilitar essa limpeza, apesar de exigir cuidados especiais.
A variedade de materiais disponíveis para o preparo dos alimentos era importante, na medida em que permitia também variação nos cardápios e nas formas de cozimento. Além da necessidade de limpeza, havia um desejo de leveza que os novos materiais poderiam propiciar. O fogão a gás, mesmo pesado (cerca de 90 quilos), transmitia uma imagem de leveza, em oposição aos fogões a lenha e carvão, devido à sua plasticidade e presença de partes esmaltadas. Talvez por isso, o uso de panelas de alumínio se difundiu, devido à sua conotação de limpeza (superfície brilhante), leveza e condução de calor mais eficiente. Os mesmos atributos dos novos equipamentos domésticos eram associados ao alumínio.
A alimentação estava em primeiro plano e interrelacionada com outras questões, principalmente a higiene, e parecia adquirir nesse contexto um papel decisivo. Houve mudanças no preparo, que poderia ser feito de forma limpa e higiênica como ressaltavam as propagandas. Também o cardápio mudou, tendo em vista o surgimento de alimentos beneficiados oferecidos em centros urbanos como São Paulo.
Não apenas a área destinada ao preparo e beneficiamento nos quintais, diminuiu, como a oferta de produtos industrializados aumentou. A quantidade de vendedores que circulavam pela cidade, oferecendo produtos de porta em porta, e o número de mercados aumentavam. Mas o principal para a boa dona de casa era o cuidado com a escolha da alimentação e a forma de preparo. Júlia Lopes de Almeida em seu manual destinado às donas de casa, ressaltava a importância de novas habilidades que as mulheres deveriam ter no preparo das refeições:
“Ai está uma coisa, para a qual, na minha opinião, deveria haver uma escola, onde se aprendesse a cozinhar com limpeza (...) Com o curso da escola, o cozinheiro saberia discernir com critério as qualidades e quantidades; teria noções de química, que o habilitassem a substituir por outro o pesadíssimo, o brutal alimento com que se enche e amortece a população brasileira: o feijão, a carne seca, o cozido, dariam lugar a coisas mais saudáveis...” (Almeida 1905: 95-6)
A cozinha deveria perder qualquer conotação ligada à experiência das cozinheiras, em prol da higiene e do saber técnico proporcionado pelo fogão a gás (entre outros equipamentos) e sempre sob a responsabilidade da dona da casa. Assim, não apenas o preparo seria afetado, com noções de química e conhecimento de novas técnicas, mas também a escolha dos alimentos. O feijão, por exemplo, estava fortemente identificado com as classes mais baixas, ainda que fosse um alimento muito difundido por toda a população. Estava associado à antiga cozinha, já que era um prato de preparo longo, que dependia de cozimento lento em panelas de ferro. A cozinha com o fogão a gás (chama concentrada) e panelas de alumínio não era adequada a este tipo de alimento (o que pôde ser corrigido com o surgimento da panela de pressão).
Tanto os cursos para cozinheiras quanto os manuais domésticos ressaltavam o surgimento de um novo cardápio adaptado aos novos gostos. A mesma Júlia Lopes de Almeida fala com uma ponta de ironia sobre a nova “arte culinária”:
“(...) Desde que o enfarruscador ofício de temperar panelas se enfeitou com o nome de arte culinária, temos uma certa obrigação de cortesia para com ele. E concordemos que é uma arte pródiga e fértil. Cada dia surge um pratinho novo, com mil composições extravagantes, que espantam as menagères pobres e deleitam os cozinheiros da raça! Dão-se nomes literários, designações delicadas, procuradas com esforço, para condizer com a raridade do acepipe. Os temperos banais, das velhas cozinhas burguesas, vão-se perdendo na sombra dos tempos. Falar em alhos, salsa, vinagre, cebola verde, hortelã ou coentro arrepia a cabeluda epiderme dos mestres dos fogões atuais. Agora em todas as despensas devem brilhar rótulos estrangeiros de conservas assassinas, e alcaparras, trufas, manteiga dinamarquesa (o toucinho passou a ser ignominioso), vinho Madeira para adubo do filet, enfim tudo o que houver de mais apurado, cheiroso e ... caro!” (Almeida 1906: 105-106)
Há uma curiosa aproximação e confronto entre o cardápio dos restaurantes (principalmente de origem e inspiração francesa) que surgiam na cidade de São Paulo e o que era desejado para os lares. Os cozinheiros começavam a substituir as antigas cozinheiras do trivial, assim como os produtos beneficiados e industrializados (muitos deles importados) substituíam antigos ingredientes e alimentos. Os novos fogões e utensílios domésticos permitiam a modernização da cozinha e de seu cardápio, revestindo antigas práticas com um verniz de civilização e modernidade. Novos nomes, equipamentos e ingredientes para uma atividade tradicionalmente desprestigiada. Claro que essa possibilidade estava restrita aos lares mais abastados.
A habilidade no preparo de pratos demorados como o feijão e a carne, entretanto, era uma qualidade apreciada nas empregadas com larga experiência nas cozinhas antigas. Esse tipo de habilidade teve sua importância diminuída com os novos equipamentos. O fogão a gás dispensava os truques desenvolvidos pelas cozinheiras. Mais ainda, exigia um outro tipo de conhecimento que se opunha à sua experiência, considerando-a fruto de atraso, identificada com a antiga cozinha suja e anti-higiênica.
O trabalho nos fogões a lenha e carvão exigia da empregada, além de uma maior mobilização física e gasto de tempo no preparo das refeições, o desenvolvimento de técnicas próprias. Além das dificuldades com o transporte e o acendimento, envolvia um saber no tocante à quantidade exata de calor para o preparo dos diferentes tipos de alimentos. Alguns pratos exigiam um cozimento regular, lento e longo, sempre sob vigilância. O controle da temperatura do fogão era conseguido pela sensibilidade da cozinheira, adquirido com a aprendizagem por gerações e pela experiência.
Obter o ponto certo de algum doce exigia paciência e noção exata do momento de interromper o processo. Tudo, desde a preparação inicial até a etapa de uso do fogão, estava inteiramente sob o controle da cozinheira, sem grandes mediações, seja de receitas, seja de equipamentos. As cozinheiras tinham domínio da matéria-prima (ingredientes usados no preparo), dos utensílios (panelas etc.) e principalmente do processamento (uso do forno e fogão). A tecnologia do fogão a gás mudaria sensivelmente esse panorama.
Um componente importante nessa difusão inicial do gás pode ter sido a questão do status. Num contexto em que a demanda por tempo na execução dos trabalhos domésticos não era significativa, as empresas de energia investiram em discursos afinados com valores como a higiene e status associado ao uso de novas tecnologias. As propagandas de fogões a gás procuravam associar qualidades atribuídas aos equipamentos também aos usuários, de forma a qualificá-los pela simples posse. Podemos dizer que os novos equipamentos domésticos, como os fogões a gás, foram equiparados aos equipamentos urbanos considerados como modernos. Ter um fogão a gás era um sinal de status tanto quanto andar de automóvel, bonde ou utilizar a luz elétrica, entre outros tantos sinais de modernidade.
No entanto, no interior do espaço doméstico as contradições são evidentes, a começar pela modernidade das inovações que não são capazes de absorver o anacronismo da estrutura social. Podemos dizer que entramos na modernidade pela porta dos fundos, pela porta da cozinha.
João Luiz Máximo da Silva tem graduação e licenciatura em história pela Universidade de São Paulo (1991), mestrado (2002) e doutorado (2008) em história social pela USP. Atualmente é professor de história da alimentação no Centro Universitário Senac em cursos de graduação e pós-graduação. Integra o banco de pareceristas do Ministério da Cultura e é assessor científico da Fapesp. Tem experiência em história do Brasil e história de São Paulo (séculos XIX e XX) nas seguintes áreas: cultura material, história da alimentação, tecnologia e urbanização. Publicou o livro Cozinha Modelo – O impacto do gás e da eletricidade na casa paulistana, 1870-1930. São Paulo: Edusp, 2008. 216p.
Bibliografia
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Giedion, Siegfried. Mechanization takes command: a contribution to anonymous history. New York: W. W. Norton, 1948.
Lemos, Carlos A. C. Cozinhas, etc: um estudo sobre as zonas de serviço da casa paulista. São Paulo: Perspectiva, 1978. (Debates 94).
Magalhães, Gildo. Força e luz: eletricidade e modernização na República Velha. São Paulo, Editora Unesp, Fapesp, 2000
Rolnik, Raquel. A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo, São Paulo: Fapesp: Studio Nobel, 1997.
Silva, João Luiz Maximo da. Cozinha Modelo– O impacto do gás e da eletricidade na casa paulistana (1870-1930). São Paulo: Edusp, 2008