Por Dimítria Coutinho e Greta Garcia
Debate sobre o tema avança em todo o mundo, mas proposta do presidente vai na contramão do que é recomendado por especialistas
O presidente Jair Bolsonaro tomou, no último mês, duas iniciativas para mudar a forma como as redes sociais devem moderar conteúdo no Brasil. Para o chefe do executivo, as plataformas digitais devem ser proibidas de remover publicações sem que haja uma determinação judicial. Isso inclui desinformação, notícias falsas, discurso de ódio e assédio, que circulariam livremente nas plataformas digitais.
Às vésperas da manifestação antidemocrática do dia 7 de setembro, Bolsonaro publicou a Medida Provisória (MP) 1068/2021. Depois de o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, rejeitar a proposta, o executivo enviou ao Congresso Nacional um Projeto de Lei (PL) sobre o mesmo tema. O PL 3227/2021 tem teor idêntico à MP enviada anteriormente e, por enquanto, aguarda despacho do presidente da Câmara dos Deputados.
No texto, o governo propõe que qualquer rede social com mais de 10 milhões de usuários no Brasil, como Facebook, Twitter e Instagram, não possa excluir, suspender ou bloquear conteúdos gerados por usuários sem uma ordem judicial, a não ser que seja por justa causa. Dentre os motivos que levariam à justa causa estão questões como nudez, direitos autorais, pedofilia, terrorismo ou violência explícita, por exemplo. Discurso de ódio e fake news ficaram de fora. Ou seja, as plataformas estariam proibidas de moderar esse tipo de conteúdo como fazem atualmente, de acordo com suas regras e diretrizes preestabelecidas.
PL modifica o Marco Civil da Internet
O que o PL 3227/2021 propõe é modificar o Marco Civil da Internet, lei de 2014 que, dentre outras questões, consolida a forma como a moderação de conteúdo nas redes sociais é feita no Brasil.
Atualmente, as redes sociais são obrigadas a excluir conteúdo em casos de ordem judicial. Além disso, as plataformas estão autorizadas a moderar conteúdo de acordo com seus próprios interesses. “A regra do Marco Civil da Internet é de autorização: ele não impõe a proibição da moderação, nem impõe uma obrigação de moderação; é uma autorização”, afirma Paulo Renato da Silva Santarém, consultor sênior em Políticas Públicas da Internet Society Brasil.
Victor Durigan, coordenador de Relações Institucionais do Instituto Vero e membro da Coalizão Direitos na Rede, afirma que é importante que a moderação de conteúdo seja realizada da forma como é hoje. As plataformas não são impelidas, pelo Marco Civil, a impedir a realização de certas publicações, pois essa dinâmica pode ferir a liberdade de expressão do usuário. Em contrapartida, ao permitir que as redes possam moderar o conteúdo com base em suas diretrizes, a lei evita a dependência do sistema judiciário que, de acordo com o advogado, “não dá conta de acompanhar a velocidade da internet”.
“É importante que esse modelo seja assim. As medidas de Bolsonaro são justamente para mudar esse modelo. O Marco Civil é um modelo de legislação mundial, é muito inovador”, afirma Victor.
Como a proposta mascara o problema
A eficácia do Marco Civil não significa que o modelo atual de moderação de conteúdo não precise de ajustes. O tema tem sido amplamente discutido, sobretudo no PL das Fake News (2630/2020).
Isso porque o sistema de auto regulação das redes sociais acaba dando às plataformas um poder exagerado sobre a distribuição do conteúdo. A exclusão arbitrária de conteúdos tem gerado inúmeros debates, principalmente no que diz respeito à liberdade de expressão dos internautas.
Conselheiro do Comitê Gestor de Internet no Brasil, o pesquisador Rafael Evangelista afirma que “quando as redes sociais criam algoritmos nos feeds, elas deixam de ser um intermediário neutro, como o Marco Civil pensava”. Nesse caso, o problema aponta para a falta de transparência com relação ao viés dessa mediação.
Apesar disso, a proposta de Bolsonaro não corresponde a essas demandas. Pelo contrário, o interesse do governo em alterar o Marco Civil com o objetivo de proibir a moderação de conteúdo pelas plataformas é fortemente ligado a produtores de desinformação que estão conectados à base de apoio de Bolsonaro, comenta Rafael.
A justificativa fundada no ataque à liberdade de expressão, comumente articulada pela base bolsonarista, é apontada por Victor como falsa: “A moderação de conteúdo serve justamente para filtrar e excluir discurso de ódio e desinformação”. Além disso, a liberdade de expressão não deve ser entendida como ausência de responsabilidade. “Não quer dizer que você não pode ser punido pelo que fala, quer dizer que simplesmente você não precisa pedir autorização antes de falar”, declara Paulo.
Ao deslocar a atenção do problema legítimo da falta de transparência nos critérios utilizados na moderação de conteúdo para uma questão baseada em um ataque imaginário à liberdade de expressão dos usuários, o que pretende o PL de Bolsonaro é privilegiar interesses políticos imediatos, opinam os especialistas.
O que dizem os especialistas?
Fabrício Solagna, secretário-executivo da Coalizão de Direitos na Rede, afirma que “o PL quer justamente colocar uma iniciativa legislativa sem diálogo e tentar garantir que a desinformação continue circulando no Brasil”. Enquanto isso, Rafael Evangelista aponta, o governo defende principalmente youtubers que produzem conteúdo que pede golpe militar e indica uso de tratamentos ineficazes com relação à covid-19”.
Paulo comenta que há críticas: as plataformas estão, inclusive, moderando aquém do necessário, visto que diversas questões muito sérias dependem de atuação, para além das ilegalidades. “Aí a lei vem para coibir. Em vez de corrigir, racionalizar e fazer requisitos para não haver abusos, simplesmente proíbe”, diz.
“A avaliação que fazemos é que a proposta é uma catástrofe. Se for aprovada, será prejudicial em muitos aspectos”, afirma o consultor sênior. Paulo reitera que, no pior cenário possível, em que o projeto seja sancionado, ainda pode ser declarado como inconstitucional por juízes ou empresas, e que o maior risco reside em bagunçar a legislação, causar incerteza e insegurança no que diz respeito às definições de certo e errado em termos jurídicos.
O que há para ser feito
A desinformação como modelo de negócio e política no Brasil incentiva a circulação de conteúdos enganosos, que são permitidos de forma condescendente mesmo mediante a moderação das redes. “O que se tem feito de positivo, ainda que lentamente, é derrubar um pouco conteúdos de desinformação em relação à pandemia”, destaca Rafael.
Mundo afora, ainda não há um modelo de moderação de conteúdo, mas é consenso entre os especialistas que a manutenção do Marco Civil não pressupõe a alteração de suas bases, pelo contrário, requer complementação. “Complementar para melhorar, no sentido de transparência. Fornecer aos usuários informações transparentes sobre seus termos de uso, políticas da comunidade, fazer com que o usuário compreenda melhor como a plataforma trabalha”. Além da transparência, é preciso haver possibilidade de o usuário recorrer em caso de algum conteúdo ter sido injustamente excluído.
Dimítria Coutinho é formada em jornalismo (USP) e cursa especialização em jornalismo científico (Labjor/Unicamp)
Greta Garcia é formada em ciências sociais (Unicamp) e cursa especialização em jornalismo científico (Labjor/Unicamp)
Clique aqui para o índice do Dossiê Fake News, outubro de 2021