Por Vivian Whiteman
Como funcionam os modos e moldes de naturalização do inaceitável?
Em abril de 2020 a revista Vogue Brasil publicou uma capa com a modelo Gisele Bündchen e a chamada “novo normal”. As imagens mostravam a top vestindo looks brancos de grifes famosas acompanhadas do texto “simplificar a vida e se concentrar no essencial são os caminhos para um futuro mais ético e saudável”.
A capa gerou reações acaloradas, mas entre o oportunismo e a hipocrisia dos debates que se seguiram, algo importante foi deixado de lado. Evidente que o conjunto inteiro pode ser questionado com algum proveito, visto que se trata de um título de presença internacional e bastante influente em seu nicho e arredores. Perguntas básicas primeiro: O que nessa imagem tem a ver com um pensamento pós-pandêmico? O que é ” simplificar” a vida? O que é essencial e para quem? O que nesse conjunto leva a pensar em novo?
Só que devemos ir mais longe, não nos deixando seduzir nem pela lorota do cancelamento virtual nem pelo argumento evasivo de que a moda é uma futilidade que não deve ser olhada com interesse.
A carta da futilidade é uma das mais preciosas para o mercado de moda. Carrega um certo desprezo protocolar que pode ser estrategicamente usado enquanto mantém o jogo intacto. Alguns dos grupos e dos homens mais ricos do mundo têm nesse mercado não só uma fonte multibilionária, mas base fundamental de seu leque de investimentos. Dali jorram dinheiro, símbolos de prestígio e status e mecanismos de controle extremamente sedutores, pelos quais milhões de pessoas têm verdadeira adoração. A carta da futilidade ajuda no sentido de cobrir tudo isso com o verniz de algo bobo, inofensivo, não raro conectado a uma certa ideia estereotipada e tola sobre o “feminino”. O famoso e condescendente “coisa de mulher”.
Assim, o mercado de moda pode ser economicamente agressivo, um dos mais poluentes do mundo, sexista, envolvido com denúncias sistemáticas de trabalho escravo e, ao mesmo tempo, um capricho feminino. Da mesma forma, pode seguir produzindo montanhas de lixo que já não têm escoamento nem podem ser recicladas (vide o lixão têxtil no deserto do Atacama) e ser “verde” ou “consciente”. Há em ação algo da ordem da perversão no sentido de um desmentido que não conhece limites.
Por mais que de fato haja aí iniciativas sérias em várias empresas, basta um olhar mais amplo para que as contradições caiam aos montes feito chuva ácida.
A situação do mundo está dada: se é que houve esforços sérios nos últimos 20 anos, eles sequer foram suficientes para arranhar o quadro da catástrofe climática que se apresenta. Além disso, é preciso dar as mãos também a um negacionismo social brutal para ignorar as relações entre desigualdade econômica/de direitos e o caos ambiental. A era do “faça a sua parte” só pode ser sustentada à base de doses avassaladoras de cinismo e crueldade.
Estamos, como escreveu o filósofo Slavoj Žižek em uma de suas pensatas recentes sobre a pandemia, diante da necessidade de uma mudança dupla. Objetiva e subjetiva. O que, não há dúvidas, tem a ver com os modos de produção e gestão, inclusive de sofrimento psíquico, engendrados pelo capitalismo.
E é precisamente aí que entra o novo normal. Por que no mundo atual o que é que faz norma senão o capitalismo e sua cartilha de perversões? Dizer novo normal equivale a dizer novo capitalismo. Uma nova encarnação do mesmo sistema, o que necessariamente pede que as subjetividades sejam impactadas por uma nova onda de naturalização objetiva.
Onovo normal, de partida, é para os sobreviventes. Sobreviventes esses que, se divididos por classe e raça, assim como os mortos, revelam o aprofundamento das desigualdades. Mais pobres e negros entre os mortos. Mais países pobres sem acesso à vacina. Acirramento da concentração de renda, aumento mundial da miséria. Para cada novo bilionário, milhões de pessoas entram na linha da pobreza ou passam fome.
O novo normal que está sendo construído pede adaptação de quem fica. Aceitação do inaceitável. Renovação de certos pactos de conforto. E nesse sentido a moda é culturalmente muito influente. Menos pelos produtos em si mas pela capacidade de vender uma sensação de estabilidade, de normalidade, de que apesar das mudanças há algo de garantido nisso que o mercado chama de “lifestyle”. Um certo emaranhado de coisas, palavras, imagens e ações que ajudam a criar um frame de segurança.
A moda não inventou isso, evidente. Boa parte da indústria cultural hegemônica funciona assim. E algo que está na base desse funcionamento rege e estrutura todo o resto.
Vejamos o exemplo da saúde mental. O “autocuidado” e saúde mental foram a nova menina dos olhos das marcas nos últimos dois anos. Uma série de iniciativas patrocinadas por grandes empresas, muitos cards, muitas lives, muitas dicas, campanhas em todas as mídias. Nenhuma conversa, no entanto, sobre segurança, benefícios, direitos trabalhistas versus ultraprecarização ou mudanças nas bases de entendimento disso que chamamos de trabalho.
Todos os top influenciadores abraçaram o tema, houve uma explosão de terapias ditas alternativas e de geração de conteúdo sobre saúde mental. Isso também é moda, no que ela mais se aproxima do conceito matemático, ou seja, daquilo que mais se repete dentro de um conjunto dado.
Embora haja um ganho em tese com a circulação de informação, nada leva a crer que isso trabalhe necessariamente a favor de uma transformação. Ao contrário, sugere uma onda de adaptação. De novo, a naturalização, o tal novo normal, cada vez pior. É esse, não outro, o objetivo dessa repetição programada.
Isso fica bem desenhado na inclusão do burnout como doença pela OMS, anunciada para 2022. O burnout nada mais é que um nome para um quadro de exaustão e apagão físico e psíquico diretamente ligado às condições e questões de trabalho. Sua “cura”, portanto, só pode de fato ser pensada por meio de mudanças radicais das relações trabalhistas e modos de produção.
Mas o que essa inclusão prevê é outra coisa. A mesma coisa que ocorreu quando do aumento mundial de diagnósticos de quadros de ansiedade e depressão. E o que seria isso? Mais do que dizer que o burnout será medicado, e será muito mais do que ja é, o burnout será incluído em uma estratégia que entende saúde mental como adaptação.
Está esgotado? Seja medicado, tire férias e retorne dias ou meses depois para o mesmo ambiente e relações sociais e econômicas que te deixaram doente. Se adapte.
Há um grande, necessário e ainda muito tímido debate sobre o quanto profissionais como psicólogos e psicanalistas jogam o jogo da adaptação. Uma discussão ética incontornável. Levada ao extremo, a questão aproxima esse quadro ao do médico que acompanha a tortura, cuja função é impedir que o torturado morra até que entregue tudo o que desejam os mandantes da tortura. Literalmente, algo que o adapte, no limite, a ser torturado, até que possa morrer.
Em artigo na revista Outras Palavras Žižek disse também que a pandemia impulsionou uma “nova ordem corporativa, em que novos senhores feudais como Bill Gates ou Mark Zuckerberg controlam cada vez mais nossos espaços comuns de comunicação e intercâmbio”.
E como isso se dá nas redes sociais senão pelas estratégias algorítmicas de repetição, influência e normalização?
De modo que, voltando à capa da Vogue podemos nos perguntar o que gerou tantas reações negativas à imagem de Gisele em seu vestido branco-pureza como se fora Réveillon?
Parte das pessoas talvez tenha mesmo sentido a urgência de mudanças tão radicais que sequer sabemos dizê-las. Algo que não pode se impor como novo normal porque trata de uma criação de novas coordenadas para o que chamaremos de novo e o que chamaremos de normal. Um embate entre aquela imagem fixada-repetida e o fato de que simplificar a vida e pensar em algo de essencial significará uma ruptura muito importante.
Outra parte, porém, deve ter se chocado com a verdade da capa e do que estava sendo dito cedo demais, abertamente demais e talvez de forma inconsciente em um momento em que o desmentido social não pôde operar com sua força máxima porque a morte chegou perto demais até mesmo dos privilegiados. A saber, o fato de que o novo normal do capital decide com cada vez mais poder quais vidas são “essenciais” e que irá “simplificar” o mundo (a precarização não é uma forma mais básica de relações trabalhistas que haviam evoluído na forma de direitos e organização sindical?) em seus próprios termos.
Vivian Whiteman é psicanalista, atuante no Núcleo de Estudos e Trabalhos Terapêuticos (NETT) e na Clínica da Cidade (psicanálise pública). É colunista de comportamento e cultura na revista ELLE. Foi colunista e editora de moda do jornal Folha de S.Paulo (2006-2013)