Moda como cultura no Brasil: descolonizar o olhar é preciso

Por Hanayrá Negreiros

Foto: Silvana Mendes | “Atlânticos – Kamafêu de Oxossí” (2019)

O vestir para além das roupas e das tendências das passarelas, quase sempre inalcançáveis pelo grande público, está cada vez mais sendo repensado. Arrisco dizer que a moda, para alguns campos e linhas de pensamento, já está posta em um lugar para se pensar história, cultura e sociedade. Gilda de Mello e Souza[1] em o Espírito das roupas: a moda no século dezenove, de maneira pioneira e amparada pelos conhecimentos da Estética e da Sociologia, nos conduz a ampliar o conceito de moda, nos possibilitando entendê-la como um valioso dispositivo para compreendermos relações de classe e gênero na patriarcal e colonial sociedade euro-norte-centrada do século XIX, dentro e fora do Brasil.

Seguindo os caminhos apontados por Gilda, podemos ampliar ainda mais o olhar e pensar a moda como uma possível ferramenta decolonial, que passa a ter mais sentido quando pensamos as roupas e as maneiras de vestir como propulsores de uma compreensão de diversas culturas e modos de ser e estar em comunidade. Porém, outras discussões e linhas devem ser adicionadas nessa costura. De qual moda e de quais pessoas estamos falando, quando “colocamos na mesa” a proposta de refletir sobre esse assunto?

Se voltarmos nossas atenções para o Brasil, podemos constatar que o vestir, como campo de conhecimento, vem sendo abordado ainda de maneira limitada nas faculdades e cursos de moda pelo país. É recorrente encontrar pessoas que estudam moda nos cursos superiores reclamando que a moda que é ensinada é a de origem branca, quase sempre europeia e que faz jus a corpos quase sempre magros e igualmente brancos, como universal e única moda possível, representando o norte global e recusando as epistemologias do Sul, parafraseando Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula Meneses[2].

E a moda e/ou maneiras de vestir dos povos originários da América Latina? E as muitas estéticas, adornos e cosmologias dos povos indígenas brasileiros? Entram nas caixinhas do exótico, muitas vezes sendo estudadas em aula como estéticas e jeitos de vestir do “outro”, do que não é europeu e consequentemente civilizado. Esse fenômeno acontece também com as muitas negras maneiras de vestir brasileiras, latino-americanas e africanas que, quando pouco estudadas, não são exploradas e discutidas em suas potências máximas, visto que, para se falar desses assuntos, é necessário e urgente que se fale também sobre racismo, colonialismo e epistemicídio, que consiste na morte simbólica do conhecimento, como nos conta Sueli Carneiro[3].

Mas a costura desses fios não para por aqui. Questões que envolvem a sustentabilidade das peças e da indústria, assim como o consumo destrutivo e capitalista, também são pautas levantadas.

Além da falta de abordagem de outras modas e maneiras de se entender o vestir na sociedade brasileira, é importante pautar também quem pode falar, ensinar e trazer à tona esses conceitos todos. Impossível não lembrar dos apontamentos de Beatriz Nascimento[4] em entrevista ao documentário O negro da senzala ao soul (1977), produzido pela TV Cultura, refletindo sobre a história do Brasil ser contada somente por mãos brancas, uma clara referência à cor das pessoas que possuem mais espaço e poder de enunciação em instituições de ensino, publicações de livros e narrativas audiovisuais. Às perguntas de Beatriz podemos adicionar os questionamentos de Gayatri Spivak em Pode o subalterno falar? [5], no qual a autora questiona também a ideia de quem tem o poder de fala e enunciação em nossa sociedade, partindo de estudos sobre poder, intelectualidade e subalternização de povos colonizados.

Grada Kilomba, em seu livro Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano, recorre aos pensamentos de Spivak para sublinhar que “essa ausência simboliza a posição da subalterna como sujeito oprimido que não pode falar porque as estruturas da opressão não permitem que essas vozes sejam escutadas, tampouco proporciona um espaço para articulação das mesmas” [6].

Boa parte das enunciações sobre moda ainda são feitas por pessoas brancas, porém esse campo tem se revelado cada vez mais em disputa, quando pensamos que as pessoas subalternizadas estão ocupando, graças a políticas públicas, mais espaços acadêmicos e também utilizando de brechas e frestas institucionais para contarem as suas próprias histórias, chamando a atenção para a necessidade de outras narrativas e pontos de vista. Se ainda não são faladas de maneira ampla em cursos e espaços tradicionais de moda e arte, as modas, e aqui é importante ressaltar o plural, feitas e vestidas nas periferias e bordas de todo o país, por exemplo, ganham mais visibilidade e alcance com as possibilidades das redes sociais (para quem tem acesso à internet). Cursos online em tempos de pandemia, ministrados sobretudo por mulheres negras, atualmente estão sendo vistos como territórios férteis para se discutir outras maneiras de vestir, alçando a moda e a feitura das roupas como possibilidades para se pensar política, gênero, raça e classe, parafraseando Angela Davis[7].

Moda também é o que aprendemos em casa com os nossos familiares, talvez os responsáveis pelas nossas primeiras informações de moda. Mulheres negras e indígenas brasileiras estão cada vez mais retomando estéticas de suas ancestrais, revisitando histórias – nem sempre fáceis e permeadas por violências, apagamentos e rastros muitas vezes fracos de memória – para conhecerem mais sobre as suas próprias culturas e referências nacionais. O estudo dessas memórias e culturas se mostra valioso também para as pessoas que criam modas – estilistas e modistas – possibilitando maior criatividade e diversidade na elaboração das peças. Os desfiles também se tornaram territórios em disputa, onde outros corpos, chamados de dissidentes, tencionam e ocupam as passarelas, com outros tons de pele, tamanhos e formas variados, que extrapolam o branco e magro de outrora.  Mas é claro que ainda falta bastante.

Práticas decoloniais podem ser feitas no cotidiano, no resgate das histórias mal ou não contadas, das memórias adormecidas e das costuras que não cabem mais nos moldes europeus dos séculos passados. Seguimos na disputa do campo de ensino de moda no Brasil, nas frestas institucionais e no entendimento de que a moda pode ser um valioso dispositivo para pensarmos arte, cultura e sociedade, alçando o vestir como expressão identitária e marcador de uma época. Estamos alinhavando outras histórias da moda nesse país e não é de agora.

Alguns fragmentos do presente artigo foram outrora desenvolvidos no breve ensaio “Por outras histórias da (e na) moda...”, publicado em 24 de junho de 2020 na ELLE Brasil.

Hanayrá Negreiros é mestre em ciência da religião pela PUC-SP, pesquisa e ensina moda de maneira independente e como professora convidada no MASP Escola e Adelina Instituto. Atualmente é colunista na ELLE Brasil, onde escreve sobre negras maneiras de vestir, memórias de família e futuros possíveis. E-mail: hanayra@outlook.com

Leia também o Dossiê Moda da revista ComCiência (outubro de 2018)

[1] Souza, Gilda de Mello e. O Espírito das Roupas: a moda no século dezenove. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

[2] Santos, Boaventura de Sousa; Meneses, Maria Paula. (Orgs.) Epistemologias do Sul. São Paulo; Editora Cortez. 2010.

[3] Carneiro, Aparecida Sueli. “A Construção do Outro como Não-Ser como fundamento do Ser”. Feusp, 2005. (Tese de doutorado).

[4] Maria Beatriz Nascimento (1942-1995), foi uma historiadora e intelectual sergipana e moradora do Rio de Janeiro que dedicou parte dos seus estudos a pensar a história dos quilombos no Brasil, tendo participação ativa em ações do Movimento Negro Unificado de São Paulo, durante as décadas de 1970 e 1980. Foi roteirista e narradora do filme Ôrí (1989), dirigido por Raquel Gerber.

[5] Spivak, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goulart Almeida; Marcos Pereira Feitosa; André Pereira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

[6] Kilomba, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Trad. Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Editora Cobogó, 2019.

[7] Davis, Angela. Mulheres, raça e classe. Trad. Heci Regina Candiani – 1ª ed – São Paulo: Boitempo, 2016.