Mineração urbana, uma forma de economia circular, pode diminuir a demanda por recursos da natureza

A reciclagem do lixo eletrônico contribui para a preservação de meio ambiente

Por Job Batista Filho

Equipamentos eletrônicos como TVs, computadores, celulares e monitores demandam grande quantidade de metais raros na fabricação de seus componentes. E após uma vida útil – que pode ser bem breve – seguem para descarte, gerando um grande problema ambiental. Em 2022 foram gerados 62 milhões de toneladas de lixo eletrônico no mundo, um aumento de 82% em relação a 2010, aponta relatório do Monitor Global de Lixo Eletrônico da ONU de 2024.

Uma alternativa é a reciclagem desses equipamentos para obtenção de metais e outros materiais, como o plástico e vidro. É a chamada mineração urbana, técnica com potencial de diminuir a demanda de matéria-prima de origem natural, desincentivando a superexploração de jazidas minerais, e reduzindo os impactos socioambientais.

“Há 50 vezes mais ouro numa pilha de lixo eletrônico [ou e-waste] do que numa jazida de ouro”, afirma o engenheiro Pablo Teófilo, que defendeu dissertação sobre o tema na UFF (Universidade Federal Fluminense) na Faculdade de Engenharia de Produção.

Placa de circuito impresso. Fonte: Imagem de monica749 por Pixabay

Para se ter uma ideia, o ouro com maior quantidade aproveitável em rocha e solo no Brasil tem teor médio aproximado de 4,2 g/t, segundo o Anuário Mineral Brasileiro 2022, e é encontrado no Pará. Isso significa que em uma tonelada de rocha ou solo se obtém 4,2 gramas do minério. Além do baixo rendimento, quase a totalidade da rocha fonte vira rejeito caso não seja reaproveitada ou contenha outros minerais também comerciais. No caso do e-waste, estima-se que esse número seja 70 vezes maior para determinados componentes.

A quantidade de minerais críticos e estratégicos presentes no lixo eletrônico depende de alguns fatores. Isso varia de acordo com o tipo de produto (computador, celular, tablet ou outros), fabricante, ano de fabricação e modelo. “Ouro e outros metais preciosos são encontrados quase que exclusivamente nas placas de circuito impresso (PCI). Assim, muitos estudos quantificam o teor desses elementos nas PCI e não em relação à massa total do equipamento”, explica Hugo Veit, chefe do Departamento de Engenharia de Materiais da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). “Uma faixa de concentração bastante realista do teor de ouro presente em PCI é de 0,03 a 0,07%. Para a prata é cerca de 10 vezes maior, ou seja, na média de 0,3 a 0,5%”, diz Veit, que também é e membro do Laboratório de Corrosão, Proteção e Reciclagem de Materiais (Lacor). Esses 0,03% em peso equivalem a 300 g/t – ou seja, muito acima das 4,2g/t encontradas na natureza.

Máquina de geração de resíduos

“Os resíduos do lixo eletrônico são, nos dias atuais, considerando a última década, o fluxo que mais se avoluma no mundo, com um crescimento exponencial que acompanha o avanço tecnológico. Cerca de 30 a 50 milhões de toneladas de e-waste são gerados anualmente, contando com uma taxa de aumento estimada de 3 a 5% para cada ano”, defendeu Pablo Teófilo em sua pesquisa. Valor que “equivale a quase 4.500 torres Eiffel colocadas lado a lado”, compara.

No continente, o Brasil é o segundo país que mais produz lixo eletrônico: foram 2,4 milhões de toneladas em 2022, atrás apenas dos EUA, o maior gerador (7,2 milhões de toneladas), o triplo do Brasil. A China produziu 12 milhões de toneladas, e a Índia 4 milhões, conforme relatório da ONU

O mineral mais descartado no mundo é o ferro: foram 24 milhões de toneladas calculadas em 2023. No caso dos minerais mais valiosos, foram estimadas 270 toneladas de ouro e 1,2 mil toneladas de prata.

Para comparar, a demanda mundial total de ouro em 2023 foi de aproximadamente 4,8 mil toneladas, a mais alta já registrada, mesmo com o preço em elevação, segundo relatório do Conselho Mundial do Ouro (World Gold Council). Os maiores compradores são bancos centrais e joalherias, enquanto o setor de tecnologia demandou 298 toneladas. O preço atual do grama do ouro está em aproximadamente R$ 501 – ao fim de 2023 estava aproximadamente R$ 378.

Dificuldades para reaproveitamento

 Só 20% dos metais preciosos foram recuperados pela mineração urbana e a reciclagem. No caso de ferro e outros metais mais abundantes como alumínio, cobre e níquel, esse índice pode chegar a 60% de recuperação. “O lixo eletrônico está aumentando cinco vezes mais rápido do que a reciclagem documentada de resíduos eletrônicos” aponta o site da Unitar, instituto da ONU para treinamento e pesquisa. “Embora o e-waste seja um problema muitas vezes classificado apenas como desperdício de recursos, a geração descontrolada desse tipo de resíduo representa riscos à saúde e ao meio ambiente. O e-waste pode ser tóxico, não biodegradável, acumulando-se no meio ambiente, no solo, ar, água e seres vivos”, escreve Teófilo.

No Brasil ainda não há empresas que fazem a reciclagem desses metais raros e preciosos. Aqui é feita a coleta e a separação dos resíduos, que depois são vendidos para outros países que já fazem essa recuperação. “Eu diria que a Europa está bem mais avançada nesse sentido, em especial Alemanha, Bélgica, Suíça, Suécia, Noruega, Dinamarca e Holanda. Fora da Europa, podemos citar o Japão também”, afirma o professor Hugo Veit. EUA e China foram também citados como possíveis recicladores por pesquisadores.

Outro problema relacionado à questão é quanto ao potencial de contaminação dos resíduos eletrônicos, uma vez que “a maior parte do lixo eletrônico é gerenciada fora dos padrões formais de coleta e reciclagem. Como resultado disso, 58 toneladas de mercúrio e 45 mil toneladas de plásticos são lançados no meio ambiente todos os anos junto com esses materiais. Isso tem um impacto direto e severo no meio ambiente e na saúde das pessoas”, alerta o relatório da ONU. A Europa foi o continente que mais gerou resíduos eletrônicos (17,5 kg/per capita), mas também é onde mais se recicla, segundo o relatório.

Apesar das inúmeras vantagens econômicas e ambientais da mineração urbana, o professor Luiz Fernando Kitajima, do UDF (Centro Universitário do DF) e da FCNA (Faculdade da Confederação Nacional da Agricultura) alerta que “é bom lembrar que a mineração urbana também gera resíduo do material que sobra após a extração do ouro e do método utilizado. Por exemplo, na hidrometalurgia, utiliza-se muito ácido, e isso gera muito resíduo tóxico, que é preciso neutralizar. Por isso estão sugerindo fazer extração mecânica a seco, física”.

Quanto à possibilidade de lucro com a mineração urbana, Kitajima salienta que “para extração de matérias-primas como ouro, índio, germânio e gálio, é possível que se tenha lucro, mas requer infraestrutura adequada e cadeias logísticas ajustadas. Isso sem falar em questões como licenças ambientais, entre outras”. Para o professor, é impossível substituir totalmente a mineração tradicional, mas pode-se reduzir a pressão sobre as minas ou recursos ainda a serem descobertos. “Metais como alumínio e ferro, devido ao seu amplo uso em uma grande quantidade de aplicações, dificilmente vão substituir a mineração tradicional, mas pode-se reduzir a demanda pelo metal extraído na mineração”, afirma.

“No caso de outros metais base, como o cobre, podem ter sua demanda reduzida. Para os metais preciosos, o reuso pode aumentar a oferta de ouro e metais preciosos, cuja extração muitas vezes é feita de forma clandestina, incentivando assim a compra a partir de empresas de reciclagem ao invés de origem ilegal e não certificada. Isso pode desestimular a mineração clandestina (garimpos ilegais)”, afirma o professor da FCNA.

Com a necessidade de certificações ambientais exigidas principalmente por multinacionais europeias, a rastreabilidade tem se tornado fundamental para o controle da origem de algumas commodities, como carnes, madeira e até minérios. A rastreabilidade do ouro e de outros minerais raros deve ser uma importante inovação no combate ao comércio ilegal.

Economicamente é um grande desperdício não reaproveitar os minerais e outros materiais como plástico ou vidro presentes nos eletrônicos. “A principal proposta da economia circular é dissociar o desenvolvimento econômico da necessidade de consumo de recursos finitos, a mineração urbana seria uma das ferramentas para viabilizar a recuperação de matéria-prima secundária, a partir de produtos e materiais pós-consumo”, concluem Lúcia Helena Xavier e Marianna Ottoni, organizadoras do livro Mineração urbana: conceitos e análise do potencial dos resíduos eletroeletrônicos.