Por Julia Bertino Moreira
Imagem: Mural do artista Eduardo Kobra
A discussão sobre o nexo entre migrações internacionais e questões de saúde global vem gerando importantes reflexões na atualidade[1]. Destacam-se aqui, em especial: a visão sobre o estrangeiro como o vetor de doenças epidemiológicas; as disparidades sociais e econômicas dentro de países e entre o norte e o sul global; e, ainda, políticas adotadas em relação a migrantes e refugiados. A proposta deste breve artigo é trazer esse debate para a análise da mais recente crise sanitária internacional provocada pelo novo coronavírus, considerada pela Organização Mundial da Saúde como “a maior da nossa época” (WHO, 2020).
No momento da redação do presente texto, os dados divulgados dão conta de quase 1,5 milhão de pessoas diagnosticadas com a doença covid-19, mais de 91 mil mortes, levando a uma porcentagem superior a 5% de letalidade, tendo sido praticamente todo o globo atingido pela pandemia[2]. Muito se tem falado a respeito dos impactos socioeconômicos desencadeados pelo método mais recomendado para combatê-la – o isolamento social –, assim como as desigualdades que distinguem grupos privilegiados capazes de cumpri-lo daqueles desassistidos, que morrerão se permanecerem em casa (El País, 2020). Dentro deste último grupo, pretende-se chamar atenção para a situação de refugiados e migrantes mundo afora e no Brasil, diante desse novo cenário de emergência sanitária global.
Num contexto marcado pela intensa mobilidade humana transnacional, o novo vírus vem sendo considerado como de altíssimo contágio. Originalmente detectado na China, mais precisamente em Wuhan, não tardou muito para que se espalhasse vertiginosamente para outros países, sejam vizinhos ou localizados no Ocidente (OPAS, 2020). Interessante notar que viagens a trabalho ou turismo – portanto de pessoas pertencentes à classe média alta e às elites – foram a mola propulsora para disseminação do vírus, passando ao estágio posterior de transmissão comunitária no interior de seus países de origem ou residência (Agência Brasil, 2020).
Igualmente rápidas foram as reações de caráter claramente xenofóbico em razão da associação da doença a uma nacionalidade específica. Vale registrar aqui a tentativa de um condomínio em São Paulo – metrópole cosmopolita, diga-se de passagem – de segregar chineses para “prevenir eventual transmissão” do covid-19. Flagrantemente ilegal, inexistindo comprovação de infecção por parte dos chineses que acessariam o prédio, este foi mais um caso de discriminação que tampouco se restringiu ao Brasil (BBC Brasil, 2020).
Do outro lado do condomínio, face a um vírus que se alastra muito facilmente, não é difícil imaginar como se encontrarão pessoas que vivem em condições precárias de enorme aglomeração, entre as quais podemos citar comunidades em favelas e nos campos de refugiados concentrados sobretudo no sul global. Sendo os idosos o grupo de maior risco ao coronavírus, há o fator adicional de como proteger pessoas dessa faixa etária em espaços caracterizados pela superlotação[3]. Emergem, assim, inúmeros desafios para tentar combater o contágio nesses ambientes de extrema precariedade, em que faltam saneamento básico, acesso à água potável e itens essenciais de higiene pessoal (ONU, 2020).
À guisa de ilustração, a fala da médica Hilde Vochten, coordenadora do Médicos Sem Fronteiras na Grécia, é bastante elucidativa: “(…) seria impossível conter um surto em locais como os campos de Lesbos (…). Até hoje, não vimos um plano de emergência viável para proteger e tratar as pessoas que vivem lá”. Na ausência desse planejamento para prevenção e controle das infecções pelo covid-19, a organização defende a evacuação dos campos como medida emergencial (MSF, 2020). Já no Brasil, em que populações refugiadas provenientes da Venezuela se aglomeram em moradias improvisadas especialmente em cidades da região Norte de nosso país, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados afirma estar distribuindo kits de higiene (com água sanitária, papel higiênico e sabão em pó, além de outros itens) às pessoas mais vulneráveis, dentre as medidas preventivas adotadas (Acnur, 2020).
Em paralelo à atuação da agência da ONU para refugiados, citada acima, outras ações relevantes foram encabeçadas por organizações não-governamentais no Brasil. Diante da possível quebra de pequenos negócios geridos por migrantes, como oficinas de costura, a ONG Alinha iniciou uma campanha para arrecadar fundos com vistas a ajudar as famílias impactadas. Por sua vez, o Abraço Cultural passou a oferecer cursos de idiomas ministrados por migrantes e refugiados em formato online. Esses são mecanismos de grande valia para garantir a manutenção da renda dessas pessoas no país durante a crise epidêmica (Migramundo, 2020).
Contudo, é preciso pensar em uma rede mais ampla de proteção a refugiados e migrantes em meio à pandemia que estamos enfrentando. Merece destaque, nesse sentido, a recente decisão do governo português, após pressão de entidades da sociedade civil, de regularizar migrantes e solicitantes de refúgio naquele país europeu. Como bem traduziu o ministro Eduardo Cabrita: “Assegurar o acesso dos cidadãos migrantes à saúde, à segurança social e a estabilidade no emprego e na habitação é um dever de uma sociedade solidária em tempos de crise” (Público, 2020). Na contramão de diversos países do norte global, que vêm seguindo a lógica da securitização das migrações, tal postura é emblemática de resgate do humanitarismo – de reconhecimento do outro como um igual – na Europa.
Transitando da hostilidade à solidariedade, perpassando pela extrema urgência, é nessa onda que a pandemia vai sendo tratada dentro e fora do Brasil. Apesar de ser um vírus que acomete a todas e todos sem distinção, é sabido que, num mundo marcado por privilégios e permeado por gritantes desigualdades, serão os mais pobres, os marginalizados – que são postos à margem da sociedade –, os mais vulneráveis – migrantes, refugiados, mulheres, indígenas, negros, idosos – a serem afetados. Se não houver políticas contundentes efetivadas por parte do Estado[4], além das importantes iniciativas de caráter não-estatal e em coordenação internacional, não resta dúvida de que assistiremos a um amontoado de corpos indesejáveis sendo descartados massiva e desumanamente.
Julia Bertino Moreira é professora de relações internacionais da
Universidade Federal do ABC.
Referências
Acnur. “Coronavírus no Brasil: o que estamos fazendo para proteger refugiados”. 20 mar. 2020. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/2020/03/20/coronavirus-no-brasil-o-que-estamos-fazendo-para-proteger-refugiados/
Agência Brasil. “Covid-19: governo declara transmissão comunitária em todo o país”. Disponível em: agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2020-03/covid-19-governo-declara-transmissao-comunitaria-em-todo-o-pais
BBC Brasil. “Coronavírus: condomínio em SP tentou segregar chineses como ‘medida de prevenção’”. 5 fev. 2020. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-51379835
El País. “Sem ações específicas, 86% dos moradores de favelas vão passar fome por causa do coronavírus”. 28 mar. 2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/sociedade/2020-03-28/sem-acoes-especificas-86-dos-moradores-de-favelas-vao-passar-fome-por-causa-do-coronavirus.html
Migramundo. “De campanhas a vídeo-aulas, ações visam ajudar imigrantes em SP e Rio em meio ao covid-19”. 26 mar. 2020. Disponível em: https://www.migramundo.com/de-campanhas-a-video-aulas-acoes-visam-ajudar-imigrantes-em-sp-e-rio-em-meio-ao-covid-19/
MSF. “Coronavírus torna mais urgente evacuação de campos de refugiados na Grécia”. 12 mar. 2020. Disponível em: https://www.msf.org.br/noticias/coronavirus-torna-mais-urgente-evacuacao-de-campos-de-refugiados-na-grecia
ONU. “No Dia Mundial da Água, Guterres lembra que cerca de 2,2 bilhões carecem de água potável”. 21 mar. 2020. Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2020/03/1708162
OPAS. Folha informativa covid-19 (doença causada pelo novo coronavírus). Disponível em: https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6101:covid19&Itemid=875
Público. “Governo regulariza todos os imigrantes que tenham pedidos pendentes no SEF”. 28 mar. 2020. Disponível em: https://www.publico.pt/2020/03/28/sociedade/noticia/governo-regulariza-imigrantes-pedidos-pendentes-sef-1909791
WHO. “Director-General´s opening remarks at the media briefing on covid-19”. 16 mar. 2020. Disponível em: https://www.who.int/dg/speeches/detail/who-director-general-s-opening-remarks-at-the-media-briefing-on-covid-19—16-march-2020
NOTAS
[1] Sugere-se como bibliografia dois artigos em particular da professora. Deisy Ventura: Ventura, D. “Mobilidade humana e saúde global”. Revista USP, São Paulo, n. 107, p. 55-64, 2015; Ventura, D. “Impacto das crises sanitárias internacionais sobre os direitos dos migrantes”. Revista SUR, São Paulo, v. 13, n. 23, p. 61-75, 2016.
[2] Dados obtidos pelo site Coronavirus Covid-19 Global Cases da Universidade Johns Hopkins: https://gisanddata.maps.arcgis.com/apps/opsdashboard/index.html#/bda7594740fd40299423467b48e9ecf6
[3] Consultar: https://www.acnur.org/portugues/2020/03/26/5-motivos-para-nao-esquecer-os-refugiados-na-luta-contra-a-covid-19/
[4] Foi aprovado pelo Congresso Nacional – e sancionado pelo Presidente da República com vetos – um auxílio emergencial de R$ 600 a 1.200 para pessoas de baixa renda a ser fornecido durante a pandemia. Vide: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/04/02/governo-sanciona-auxilio-emergencial-sem-mudancas-no-valor-ou-nos-criterios