Por Mariana Hafiz
Para conquistar independência, países como a Nigéria viveram guerras civis que fizeram parte da população emigrar. Ainda hoje, protestos e busca por melhor qualidade de vida nas antigas colônias refletem esse histórico
No último dia 11 de outubro o presidente da Nigéria Muhammadu Buhari determinou o fim da Sars (esquadrão especial anti-roubo, em inglês) em meio a protestos do movimento contra a violência policial #EndSars. O Sars, criado em 1992, era para ser o esquadrão de elite da polícia nigeriana, mas a população defende que se trata de um esquadrão de medo e opressão. O último relatório da Anistia Internacional, publicado em junho, documenta 82 casos de abuso e mortes extrajudiciais pelo grupo entre janeiro de 2017 e maio de 2020.
O #EndSars acontece desde 2017 e tem juntado diferentes etnias e grupos da Nigéria na reivindicação pelo direito à segurança. Nos protestos dos últimos meses, houve morte de cerca de 50 pessoas e manifestações que aconteceram não só internamente, mas em países para onde a população migrou. Um deles foi o Brasil, onde em São Paulo a comunidade nigeriana foi às ruas no dia 23 de outubro pedindo pelo fim do esquadrão e da violência generalizada na Nigéria.
Joseph Obioma, residente nigeriano no Brasil, contou ao site MigraMundo que as manifestações globais e o ato em São Paulo são “formas de expressão de solidariedade aos povos nigerianos que são vítimas de força de segurança do governo nigeriano”.
Esse ativismo transnacional – que ultrapassa as fronteiras de seu território de origem – não é inédito em São Paulo. No caso específico da Nigéria, alguns grupos reverberam pela capital paulista há décadas criticando o estado nigeriano, homenageando seus mortos biafranos no “Biafra Heroes Day” e pedindo pela libertação de seu território. São lembranças dos desdobramentos da guerra civil de Biafra que aconteceu no país entre 1967 e 1970, quando um movimento separatista pedia pela independência do território de Biafra (região sudeste da Nigéria) ao passo que a comunidade daquela região não se identificava com o estado nigeriano.
Na época, os conflitos levaram a uma guerra que resultou em mais de um milhão mortos, o que fez com que o período fosse conhecido como o pior genocídio do país. O evento provocou o início de uma diáspora principalmente dos nigerianos da etnia igbo (existem cerca de 300 etnias na Nigéria), que migraram para vários países. Como resultado da guerra, Biafra foi reconhecida como uma república independente em 1967, mas depois voltou a ser incorporada à Nigéria em 1970.
Mesmo assim, há quem não se identifique como nigeriano em função da construção dessa nacionalidade, que se pôs a favor de certos grupos étnicos e em detrimento de outros. Alex André Vargem, doutorando em ciências sociais na Unicamp e membro da Comissão Assessora da Cátedra Sérgio Vieira na Unicamp analisa que o fenômeno não é coincidência: ele é fruto do histórico colonial.
“Quando as potências colonizadoras deixam fisicamente as ex-colônias, elas atribuem um grupo étnico local para ficar no poder da nação recém-criada”, explica. “A Nigéria foi colonizada pelos britânicos e é um país com centenas de grupos étnicos. Quando se formou o país Nigéria os iorubás ficaram no poder e outros grupos não se sentiram parte desse governo.” Alguns deles, portanto, migraram e reivindicam a independência de seu território mesmo de longe, como no caso de alguns dos biafranos em São Paulo.
Guerras e conflitos semelhantes ocorreram na retirada da colonização belga em Ruanda que provocou o conhecido genocídio de Ruanda em 1994 entre tutsis e utus, com mais de um milhão de mortes e muitos refugiados. No geral, esses processos seguem lógicas similares: há a colonização, posteriormente a guerra civil no pós-retirada dos colonizadores, seguida das mortes, violência e instabilidade que causam a migração.
“É um reflexo da colonização britânica”, afirma Alex. Na pesquisa que conduz atualmente, ele compartilha suas experiências ao acompanhar o ativismo de grupos imigrantes africanos no Brasil há mais de 20 anos. “Aqui em São Paulo há um grupo muito forte dos biafranos, que na verdade são nigerianos mas não se consideram nigerianos. Eles fazem marchas e vão à porta do Acnur (agência da ONU para refugiados) gritar ‘queremos a independência do nosso território’. Muitos não viveram a guerra de Biafra, mas é como eles dizem: ‘eles morreram para que nós pudéssemos sobreviver'”, lembra. Em função da guerra, são pessoas que, para sobreviver, tiveram que sair do país.
Desigualdade
Além da fuga da guerra e busca proteção e paz, existem outros fatores que motivam os fluxos migratórios de africanos pelo mundo. Esses movimentos, no entanto, são frequentemente vistos por lentes do preconceito, conforme lembra Jean Katuamba, refugiado da República Democrática do Congo no Brasil e diretor e fundador da ONG África do Coração. “A nossa Ong luta primeiro contra o preconceito e a discriminação, eles são a principal dificuldade dos imigrantes. A gente tem que mostrar que quem vem da África não está fugindo de fome, porque o Brasil também tem fome. Fome não fica num lugar, fica na barriga”, diz.
O que Jean diz é uma posição adotada pelos outros membros da África do Coração, de que migrar é um direito humano e, de fato, ele está previsto no artigo 14 da Declaração dos Direitos Humanos. No mesmo sentido, “a gente pode imaginar a migração como um exercício da liberdade: as pessoas desejam migrar”, diz Omar Ribeiro Thomaz, coordenador do Centro de Estudos de Migrações Internacionais da Unicamp (CEMI).
Existe uma complexidade nos movimentos populacionais contemporâneos já que são muitos os motivos que levam determinados grupos a emigrar. Neste sentido, conforme ressalta Omar, pessoas são forçadas a emigrar, seja de forma mais urgente ou menos: situações de guerra, perseguições ou condições de vida tão indesejáveis que não exista outra solução a não ser procurar melhores possibilidades em outro lugar. Mas também existem os grupos que buscam emprego ou melhor qualidade de vida no exterior e que não necessariamente se mobilizam diante de violências ou por fuga de situações específicas.
Independentemente do grau da insegurança, uma semelhança é que pessoas nessa situação geralmente migram para países da América do Norte e da Europa porque é onde se encontram acúmulo de riquezas e garantias. São lugares em que os “contextos nacionais ou supranacionais, como a União Europeia, garantem acesso a segurança, saúde, a um mínimo de bem-estar, à possibilidade de não ter fome, que não casualmente são as antigas metrópoles coloniais”, afirma Omar. “Os fluxos migratórios estão diretamente conectados a uma distribuição desigual das riquezas”.
Isso porque o mundo colonial – e domínio colonial significa que fontes de poder de uma nação se encontram fora de seu território político – é aquele que cria e hierarquiza pessoas em função do seu lugar de origem ou de uma noção de raça. Hoje em dia, no entanto, as riquezas são diferentes: podem ainda ser materiais, mas também acesso a trabalho e tecnologias.
Nesse sentido, sabe-se que para que essa configuração atual de potências econômicas fosse instalada foi preciso grande expansão industrial e crescimento econômico, que começam por meio da colonização. São nações colonizadoras que formaram suas colônias em locais de onde poderiam extrair matérias-primas para manufatura de seus produtos industrializados. Mesmo hoje em dia, o grau de industrialização de países pode ser avaliado pelas características das suas exportações: países desenvolvidos exportam tecnologias e produtos manufaturados, enquanto países em desenvolvimento exportam majoritariamente matérias-primas.
Conforme diz Omar, “a pobreza, a desigualdade não é uma coisa que sobrou da modernidade, ela é a própria modernidade. O que é constitutivo da modernidade é desigualdade, racismo e distribuição desigual das coisas e dos símbolos em função de noções como origem ou raça”.