Sophia La Banca de Oliveira e Eduardo Cruz Moraes
As bactérias que carregamos no intestino atuam até no desenvolvimento de transtornos psiquiátricos – tanto de maneira positiva quanto negativa
Não é novidade que situações de estresse ou ansiedade possam gerar algum tipo de desconforto abdominal, sejam as “borboletas no estômago” de quando se está apaixonado ou dores antes de uma prova. No entanto, estudos recentes têm revelado cada vez mais que a relação entre o cérebro e o sistema gastrointestinal é bem mais sofisticada, e que a população de microrganismos intestinais pode afetar o bem-estar emocional e o surgimento de transtornos psicológicos e psiquiátricos.
Estima-se que a população de microrganismos do intestino seja de cerca de 100 trilhões de bactérias, número dez vezes maior do que o de outras células no corpo, e que corresponde a algo entre 2 e 3 quilos. A este grupo, atribui-se o nome de microbiota. Ela é estabelecida no nascimento e se modifica ao longo da vida, de acordo com os hábitos alimentares.
Microbiota e transtornos comportamentais
A comunicação entre o cérebro e o intestino é feita nas duas direções: o comportamento altera a flora intestinal, e esta altera o comportamento.
Camundongos sem microrganismos no intestino (germ free) permitiram a cientistas avaliarem os efeitos dessa ausência (que pode ser causada, por exemplo, pelo uso de antibióticos), e da posterior povoação com uma microbiota saudável. Os animais apresentavam inicialmente comportamento de ansiedade e estresse, estado que foi revertido após transplante de fezes, obtidas de camundongos com microbiota saudável.
É possível que haja influência da microbiota na integridade das amígdalas cerebrais, na mielinização do córtex pré-frontal. As amígdalas são uma região relacionada ao comportamento social, ansiedade e medo, enquanto o córtex pré-frontal está envolvido em várias desordens psiquiátricas como depressão, esquizofrenia e transtorno do espectro autista (TEA). Em uma análise com mais de 100 mil crianças, foi observado mais problemas intestinais, tais como constipação, diarreia, intolerância ou alergias naquelas diagnosticadas com TEA.
Pessoas com depressão possuem flora intestinal diferente daquelas que não possuem depressão. Em um estudo, camundongos germ free (sem microbiota) que receberam transplante fecal de camundongos deprimidos passaram a apresentar esses sintomas também.
Alimentação e a microbiota
Dada as recentes descobertas sobre a influência da microbiota no comportamento, grande atenção tem sido direcionada às dietas com pré e probióticos que estimulem o crescimento de uma flora intestinal saudável. Prebióticos são alimentos tais como frutas, verduras e outros materiais ricos em fibras não digeridas, que propiciam o crescimento de microrganismos benéficos. Já probióticos são alimentos que contêm os próprios microrganismos, como iogurtes e bebidas lácteas fermentadas.
A inclusão desse tipo de alimento na dieta tem grande impacto na microbiota, como explica Hellen Maluly, professora da pós-graduação em segurança e qualidade de alimentos da Faculdade Oswaldo Cruz: “Uma dieta desbalanceada, monótona e pobre em frutas e verduras pode influenciar o desenvolvimento de uma microbiota que não irá proteger o organismo de possíveis danos externos, como, por exemplo, bactérias e vírus”. Porém, não é possível apontar cardápios para serem seguidos: “Não há uma dieta específica, pois é difícil estabelecer padrões frente às diversidades culturais. Pode-se sugerir dietas que contenham diversidade de frutas e verduras, que são ricas em fibras – ou seja, prebióticos – que auxiliam o crescimento de microrganismos”.
Os efeitos terapêuticos de probióticos em desordens gastrointestinais já são bem descritos. No entanto, com o surgimento de estudos sobre o eixo cérebro-intestino, passou a ser investigado se eles também têm efeito sobre o sistema nervoso. Como, por exemplo, ajudando pacientes com depressão. Estudos com camundongos mostraram que houve redução de hormônios ligados ao estresse e sintomas de ansiedade e depressão com o uso desses alimentos.
Alterações na microbiota intestinal podem facilitar ou dificultar a absorção de triptofano, aminoácido obtido pela alimentação e necessário para produzir serotonina. O sistema gastrointestinal produz 95% da serotonina, neurotransmissor ligado ao bem-estar e com papel destacado em casos de depressão e ansiedade.
Bebidas alcoólicas também afetam a microbiota e, por consequência, o comportamento. O consumo frequente de álcool muda a composição da flora intestinal. Além disso, o álcool aumenta a permeabilidade da mucosa intestinal a toxinas e outras substâncias produzidas pelas bactérias, permitindo que elas afetem o organismo de maneira mais direta. Essas alterações podem estar relacionadas à ansiedade, depressão e abstinência em pessoas que sofrem de dependência de álcool.
O primeiro alimento que afeta a microbiota é o leite materno, e bebês alimentados com fórmula infantil têm menor diversidade de bactérias intestinais. Segundo Livia Hecke Morais, doutoranda na University College Cork, “a ascensão da microbiota durante os primeiros anos de vida coincide com o desenvolvimento do sistema nervoso central, sistema imune, sistema endócrino e gastrointestinal, os quais são essenciais para um bom funcionamento fisiológico. Se algo entrar em desequilíbrio neste estágio do desenvolvimento, todos os sistemas serão afetados e, por consequência, o comportamento e o estado mental”.
O aleitamento materno provê altos níveis de um anticorpo que garante a imunidade da mucosa intestinal, e baixos níveis de uma molécula pró-inflamação (interleucina 6). Em bebês amamentados, há também mais bactérias do gênero Bifidobacterium, que está envolvida na produção de um neurotransmissor de efeito ansiolítico.
Comunicação através do eixo intestino-cérebro
Vários mecanismos tentam explicar como os microrganismos do intestino alteram o comportamento. Esses mecanismos não são necessariamente excludentes, podendo ocorrer em conjunto e explicar os diferentes aspectos do fenômeno.
O intestino possui aproximadamente 500 milhões de neurônios, que compõem o chamado sistema nervoso entérico (SNE). Ainda que este número seja muito inferior ao de neurônios do cérebro (na casa de dezenas de bilhões), rende o título de “segundo cérebro”. Esses neurônios são capazes de coordenar tarefas de maneira independente do sistema nervoso central, como, por exemplo, a função motora do trato gastrointestinal.
Descobertas recentes mostram possibilidades de tratamento, pois há uma íntima relação entre a microbiota intestinal e a modulação dos neurônios do SNE através da produção de determinadas substâncias como butirato, propionato e acetato. O butirato, por exemplo, possui efeitos promissores no tratamento de doenças como obesidade, diabetes, doenças inflamatórias do intestino e também desordens neurológicas.
Outra abordagem possível é através do nervo vago. Quando esse nervo é cortado em ratos, cessam algumas das alterações comportamentais causadas pela microbiota, como estresse e ansiedade. Como esse nervo pode estar envolvido em outras mudanças causadas pela microbiota, ele pode ser a chave para tratamentos de outras doenças, como explica Linda Rinaman, professora do Departamento de Neurociência da Universidade de Pittsburgh: “As funções vagais incluem o controle cardiovascular, imune, pulmonar e até vocal. Existem evidências de que a microbiota intestinal pode contribuir para problemas cardíacos e para transtornos imunes, como a esclerose múltipla”.
Sophia La Banca de Oliveira é formada em ciências farmacêuticas (UFPR), mestre em bioquímica (USP) e doutora em psicobiologia (Unifesp). É aluna do curso de especialização em jornalismo científico Labjor/Unicamp e bolsista Mídia Ciência (Fapesp).
Eduardo Cruz Moraes é formado em ciências biológicas (Unicamp), com mestrado e doutorado em biologia funcional e molecular (Unicamp). É aluno do curso de jornalismo científico do Labjor e bolsista Mídia Ciência (Fapesp).