Renan Oliveira Corrêa e José Luís Fachi
Para manter uma boa saúde e qualidade de vida, devemos ter com a microbiota o mesmo cuidado que temos com o restante do corpo, pois ela faz parte do que nos define. Estudos mostram que determinados perfis bacterianos no intestino se relacionam, inclusive, com desordens psíquicas e psiquiátricas. Nossa relação com esse mundo microscópico que habita o corpo é tão intrínseca que recentemente passamos a enxergá-la com um “órgão esquecido”.
Na última década, a ciência vem redescobrindo a importância da nossa microbiota, elucidando a cada dia novas relações entre essa população de milhões de bactérias, vírus, protozoários, fungos e arqueais, com o nosso organismo hospedeiro. De fato, nossa microbiota é parte essencial do que somos. Ela nos acompanha ao longo de toda a vida, sendo moldada, com o passar dos anos, por diversos fatores como carga genética, idade, estilo de vida, dieta, exercícios, hábitos de higiene, estresse, poluição, tabagismo, uso de antibióticos, e outros.
Uma ferramenta bastante utilizada na ciência para estudar a importância de algum objeto de interesse é simplesmente retirá-lo de cena. Isso é feito para diversas moléculas, genes, proteínas, receptores, células, e até com a microbiota. Os camundongos denominados de germ-free são animais mantidos em condições estéreis, que passam a vida toda sem entrar em contato com microrganismos, literalmente vivendo em uma bolha, onde tudo que entra e sai é estritamente controlado e esterilizado.
Analisando a fisiologia desses animais, estudos nos mostram que a ausência da microbiota altera significativamente o trato gastrointestinal, com redução da taxa de proliferação celular no intestino, da composição do muco, da atividade de enzimas digestivas, da espessura da musculatura intestinal, da vascularização, além de enfraquecer a barreira epitelial, encolher as placas de Peyer (locais onde o sistema imune se organiza no intestino) e reduzir a quantidade de anticorpos no sangue.
Na tentativa de entender como o intestino imaturo de recém-nascidos se adapta à colonização por microrganismos após o nascimento, um grupo americano da Universidade de Michigan infectou organoides intestinais com Escherichia coli, uma bactéria comumente encontrada na microbiota de bebes saudáveis. Organoides intestinais nada mais são que mini-intestinos mantidos estéreis em cultura celular. Essas estruturas contêm todos os principais tipos de células encontrados no órgão original, mimetizando também sua arquitetura e funcionamento. Com isso, este estudo mostrou que a atividade metabólica das bactérias no intestino reduz os níveis de oxigênio no tecido (estado de hipóxia), o que estimula uma rápida proliferação celular e a produção de muco e moléculas antimicrobianas (por alterar a expressão de diversos genes).
Isso significa que toda a estruturação intestinal necessária para seu bom funcionamento é, em parte, desencadeada pela presença da microbiota, pois esta vai estimular o órgão a criar mecanismos de defesa para evitar possíveis danos que possam ser causados pelas bactérias ali encontradas.
No entanto, apenas a presença de microrganismos muitas vezes não garante resultados, por si só, satisfatórios. Um fator bastante importante para o nosso bem-estar é a composição da microbiota. Sabemos que a população de bactérias no nosso corpo é bastante heterogênea: são mais de 2 mil espécies pertencentes a 12 filos diferentes, sendo Firmicutes, Bacteroidetes, Proteobacteria e Actinobacteria os mais abundantes. Alterações no balanço entre esses filos podem acarretar em uma menor produção de compostos importantes para o nosso organismo.
Um exemplo desses metabólitos liberados pela microbiota são os chamados ácidos graxos de cadeia curta (acetato, propionato e butirato), produzidos durante a fermentação bacteriana das fibras alimentares que o corpo não consegue digerir sozinho. Esses pequenos compostos são captados pelas nossas células e possuem inúmeras ações dentro do organismo. Nosso metabolismo é ainda favorecido pela microbiota intestinal pela liberação de vitamina K, vitamina B7 e B9, cálcio, ferro, magnésio, dentre muitas outras moléculas.
A literatura científica já nos mostra que, ao atuar como fonte energética para as células epiteliais intestinais, o butirato modula o metabolismo destas células, fazendo com que elas consumam mais oxigênio – sobrando menos para as outras células. Assim, com menor disponibilidade de oxigênio local, genes são ativados para que a célula se adapte a essa nova condição (hipóxia). Dentre eles, genes que aumentam as junções célula-célula, fortalecendo o epitélio intestinal.
Todo esse processo acaba sendo revertido, por exemplo, com o uso excessivo de antibióticos, que diminui o número de bactérias produtoras de butirato na microbiota, como as da classe Clostridia. Com menos butirato, menor o metabolismo celular, mais oxigênio fica disponível, não há ativação dos genes mencionados acima, e mais fracas ficam as junções celulares e o epitélio como um todo. Isso sem contar que esse aumento de oxigênio no intestino pode ainda favorecer a proliferação de bactérias aeróbias, como a Salmonella, que irão proliferar nesse ambiente já debilitado, podendo causar infecções graves.
A alimentação pode ser considerada como um dos fatores comportamentais que mais influencia a qualidade de vida das pessoas, a composição da microbiota e o ambiente intestinal. Já é sabido que indivíduos obesos possuem a microbiota intestinal diferente da de indivíduos magros. Esses possuem prevalência de bactérias do filo Bacteroidetes, enquanto aqueles apresentam aumento de bactérias dos filos Firmicutes e Actinobacteria.
Estudos ainda nos mostram que uma dieta rica em gorduras aumenta a taxa de proliferação das células-tronco intestinais e concede características destas células às células não-tronco, favorecendo, assim, a formação de tumores. Além disso, já foi comprovado que níveis elevados de glicose no sangue (quadro de hiperglicemia) observados em pacientes obesos, diabéticos ou portadores de outras síndromes metabólicas modificam o metabolismo e a expressão gênica das células epiteliais intestinais, enfraquecendo a barreira epitelial e facilitando a entrada e dispersão de agentes patogênicos.
Além da nutrição, o trato gastrointestinal também precisa defender-se da invasão de uma gama de microrganismos hostis, prontamente preparados para atacar o nosso organismo. Em condições fisiológicas, a colonização por diversos microrganismos patogênicos e oportunistas no intestino é restringida pela presença da microbiota intestinal, uma vez que as bactérias benéficas competem por espaço e nutrientes com os patógenos ali presentes, diminuindo a sua proliferação e impedindo a sua instalação. Este controle biológico descreve um poderoso mecanismo ecológico que, em associação com os mecanismos de defesa mecânicos, químicos e imunológicos, nos protegem contra à invasão por agentes infecciosos.
Todavia, diversos são os fatores que desencadeiam um desequilíbrio na relação entre os microrganismos benéficos e patogênicos. Denominamos esse processo de “disbiose”. Esta, por sua vez, pode acarretar na síndrome de hiper-permeabilidade intestinal, permitindo a passagem, para dentro do nosso corpo, de diversas partículas e/ou microrganismos não desejados. Isso dispara uma reação imunológica intensa, com um quadro inflamatório na mucosa intestinal. Com o passar do tempo, leva à desnutrição crônica e ao desenvolvimento de infecções, bem como afecções autoimunes ou alérgicas.
Com o uso abusivo de antibióticos, há um desequilíbrio drástico da população de bactérias presentes na mucosa intestinal, podendo haver o crescimento exponencial de outros microrganismos resistentes, os quais proliferam e provocam doenças inflamatórias diversas, como na infeção por Clostridium difficile. Esta bactéria, especificamente, é encontrada como componente da microbiota intestinal de adultos saudáveis (0-17% dos indivíduos). Após o início da disbiose, ela se prolifera e passa a produzir toxinas. O epitélio do cólon é o principal alvo dessas toxinas, levando à ruptura da barreira epitelial, abrindo as junções entre as células epiteliais e gerando quadros de diarreia aquosa.
Esta condição é caracterizada por uma inflamação intensa, com formação de múltiplas placas amareladas aderentes à superfície da mucosa do cólon. Cada placa compreende uma pseudomembrana composta de fibrina, muco, células epiteliais necrosadas e células imunes, cobrindo boa parte da mucosa e dificultando a absorção de nutrientes – aumentando a agressividade da doença pela desnutrição do paciente. Os sinais e sintomas mais comuns incluem diarreia, febre e dor abdominal. Complicações graves como desidratação, hipotensão e redução do volume de sangue circulante, bem como insuficiência renal, perfuração intestinal, síndrome da resposta inflamatória sistêmica (sepse) e morte também podem ocorrer, de acordo com a idade e estado imunológico do paciente. Recorrências da doença podem ocorrer em até 50% dos casos, sendo mais evidente se o indivíduo continuar hospitalizado.
O tratamento dos pacientes com infeção por C. difficile não é simples, e se direciona principalmente à resolução dos sinais e sintomas clínicos, incluindo a reposição adequada de líquidos e eletrólitos perdidos durante os quadros diarreicos. Como a doença está associada ao uso de antibióticos, quase sempre se inicia durante o tratamento de alguma outra moléstia. Nesse caso, sempre que possível, o antibiótico deve ser interrompido com início da colite.
Evidenciando a importância da proteção do organismo por bactérias da microbiota e seu papel na infecção causada por C. difficile, um estudo inglês liderado por Van Nood (2013) demonstrou que a administração de fezes de doadores saudáveis a pacientes com infecção recorrente por C. difficile foi significativamente mais eficaz no tratamento da doença do que o uso de antibióticos e lavagens intestinais, procedimentos frequentemente empregados nos hospitais. Este transplante garante a recolonização da microbiota intestinal com uma mais saudável.
Atualmente, existem muitas informações sobre o papel da dieta e dos pré- ou probióticos na qualidade de vida e da microbiota intestinal. É fato que uma boa dieta é a melhor forma de se contornar a disbiose e restabelecer a composição saudável da microbiota intestinal. Os prebióticos são fibras que possuem a capacidade de reequilibrar a flora microbiana do intestino, pois são substratos da fermentação de microrganismos benéficos. Atualmente são encontrados diversos alimentos enriquecidos com essas fibras, sendo mais conhecidas a inulina e o FOS (frutooligosacarídeos).
Já os probióticos, por sua vez, são preparações alimentícias ou farmacêuticas com microrganismos vivos, capazes de resistir à acidez estomacal e chegar intactos ao intestino, permitindo uma recolonização intestinal benéfica, restabelecendo o equilíbrio da flora intestinal, a integridade da mucosa e, consequentemente, o equilíbrio funcional do organismo.
As bactérias não são inimigas que devem ser combatidas a todo custo. Precisamos desconstruir essa ideia do século passado, ainda muito presente nos dias atuais. De fato, menos de 1% de todos os microrganismos já descritos possui potencial de nos causar algum dano. Embora seja inegável que o uso de antibióticos é fundamental para salvar milhares de vidas, seu uso indiscriminado pode afetar negativa e profundamente a nossa saúde.
O que todos esses produtos de limpeza e de higiene, que prometem eliminar 99,9% dos microrganismos – para livrar você e sua família dos temidos germes – não te contam é que o grande problema está naquele 0,1% que é resistente e que consegue sobreviver, se estabelecer e proliferar no nosso corpo. Para nos prevenir e manter uma boa saúde e qualidade de vida, devemos ter com a microbiota o mesmo cuidado que temos com o restante do corpo, pois ela faz parte do que nos define. Estudos mostram que determinados perfis bacterianos no intestino se relacionam, inclusive, com desordens psíquicas e psiquiátricas. Nossa relação com esse mundo microscópico que habita em nosso corpo é tão intrínseca que recentemente passamos a enxergá-la com um “órgão esquecido”.
Renan Oliveira Corrêa é doutorando do Laboratório de Imunoinflamação do Instituto de Biologia da Unicamp
José Luís Fachi é doutorando do Laboratório de Imunoinflamação do Instituto de Biologia da Unicamp
Fontes:
- Hill, D.R. et al. “Bacterial colonization stimulates a complex physiological response in the immature human intestinal epithelium”. eLife, 6:e29132 doi:10.7554/eLife.29132. 2017
- Kelly, C.J. et al. “Crosstalk between microbiota-derived short-chain fatty acids and intestinal epithelial HIF augments tissue barrier function”. Cell Host Microbe, 17(5):662-71 doi:10.1016/j.chom.2015.03.005. 2015
- Stecher, B.; Hardt, W.D. “The role of microbiota in infectious disease”. Trends in microbiology, v. 16, n. 3, p. 107-114, 2008.
- Theriot, C. M. et al. “Antibiotic-induced shifts in the mouse gut microbiome and metabolome increase susceptibility to Clostridium difficile infection”. Nature communications, v. 5, 2014.
- Van Nood, E. et al. “Duodenal infusion of donor feces for recurrent Clostridium difficile”. New England Journal of Medicine, v. 368, n. 5, p. 407-415,