Por André Ramos
Dentre os conceitos estabelecidos e popularizados pela ciência do século XX, o DNA, também conhecido como ácido desoxirribonucleico ou “molécula da vida”, é um dos que exerce maior fascínio sobre a sociedade contemporânea. Seja pela estética inigualável de sua dupla hélice ou pelos “misteriosos” efeitos que exerce sobre todos os seres vivos do planeta, a verdade é que o DNA caiu no gosto popular. Sua imagem seduz milhões de consumidores pelo mundo, através de filmes, revistas, noticiários e materiais publicitários, enquanto seu nome, abreviado em três letras, tornou-se sinônimo de “identidade”, em assuntos que vão da ciência à política, passando pelo futebol.
Na edição comemorativa de uma revista brasileira de cerca de 20 anos atrás (cuja referência infelizmente eu perdi, na transição entre as eras impressa e digital), quando solicitado a fazer previsões sobre os principais desafios da ciência do século XXI, o grande geneticista Francisco Mauro Salzano, falecido no ano passado, apostou no aprofundamento das relações, ainda pouco compreendidas, entre DNA e cérebro. Ah, o cérebro! Outro “objeto do desejo” científico que, de tão misterioso e sedutor, chegou a merecer uma década só para ele, entre 1990 e 2000 (conhecida como “a década do cérebro”). Essa sofisticada estrutura de nossa anatomia não chega a ficar para trás do DNA em termos de popularidade. Ambos parecem tão importantes quanto complexos e, talvez por isso, estimulem tanto nossa imaginação. O fato que observamos empiricamente é que a interação entre esses dois símbolos da ciência moderna encanta a todos, leigos e cientistas. Afinal, como não ter aguçada a curiosidade diante de perguntas do tipo:
Nós herdamos de nossos pais nossa maneira particular de pensar, sentir e agir?
Transtornos psicológicos passam de pai para filho? E, se passarem, podemos fazer algo para evitá-los?
Os cientistas já encontraram, ou encontrarão um dia, os genes da inteligência, da agressividade ou do talento para jogar futebol?
Qualquer tentativa honesta de se responder a essas e outras perguntas similares requer dois cuidados básicos: primeiro, evitar as conclusões fáceis, mesmo que pareçam óbvias; segundo, o desapego da visão dicotômica, do tipo “é isso ou aquilo”. Afinal, o interminável debate sobre o instinto versus o aprendizado (nature vs nurture), que foi em parte estimulado pelos próprios “pais da etologia” (a ciência que estuda o comportamento), Niko Tinbergen e Konrad Lorenz, em meados do século passado, faz cada vez menos sentido no século em que vivemos hoje. Herança e aprendizado, hoje sabemos bem, são inseparáveis biologicamente, mesmo que possam, às vezes, serem separados estatisticamente, em experimentos bem controlados, envolvendo medidas quantitativas tomadas ao longo de várias gerações de animais ou pessoas.
Para resistir à tentação de nos perguntarmos, inutilmente, se determinado comportamento é causado por nossos genes ou pelo ambiente em que vivemos, é preciso antes que compreendamos, de forma realista (ainda que superficial), o que são os genes e como eles agem. Caso contrário, cairemos numa lógica ingênua que tem suas raízes na forma como nasceu e se disseminou o próprio conceito de gene, há mais de cem anos. Uma entidade inicialmente abstrata, de composição e estrutura desconhecidas, que determinava de forma misteriosa uma caraterística hereditária específica, normalmente de variação binária, como por exemplo, a textura das famosas ervilhas de Mendel, que podiam ser simplesmente lisas ou enrugadas.
O gene e o DNA: dois famosos mal compreendidos
Certa vez fui procurado em minha sala, no Laboratório de Genética do Comportamento da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), por um procurador (desculpem-me pelo trocadilho involuntário) do Ministério Público Estadual. Jurista experiente, ele queria saber quanto tempo ainda levaríamos para a identificação dos genes responsáveis pela agressividade excessiva, aquela que leva pessoas a se tornarem assassinas. Explicou-me: certos criminosos violentos usam, em suas defesas perante a corte, o argumento de que sua psicopatia tem origem genética, ou seja, de que matar, nos seus casos pessoais, não é propriamente uma escolha livre e consciente. Advogados e juízes veem-se, então, diante da difícil (se não impossível) tarefa de buscar indícios objetivos de que o suposto determinante biológico de fato existe e, se ele existe, que é de fato o responsável pelo comportamento do réu. Ou seja, a grande pergunta colocada naquele momento era: Quando teríamos um “marcador” de agressividade inata, que pudesse ser detectado fielmente através de um exame laboratorial, a ponto de “provar” que o autor de determinado crime fora levado a cometê-lo, de forma inexorável, por seu DNA?
Antes de responder “não tão cedo” ou “provavelmente nunca”, eu procurei avaliar o grau de compreensão que meu interlocutor tinha a respeito do funcionamento do material genético. Compreensão esta que, conforme constatei, não era maior do que a que eu próprio possuía sobre tantos assuntos como, por exemplo, as ciências jurídicas.
Comecei então com o básico. Nossas moléculas de DNA, que passam de pais para filhos, são como longos (e finíssimos) trilhos de trem, que atravessam muitos países, por milhares e milhares de quilômetros. Tudo isso, bem entendido, a título de analogia, pois estamos tentando descrever fenômenos celulares microscópicos. Voltando aos “trilhos de DNA”, o que muda ao longo de sua extensão seriam aquelas barras transversais distribuídas ao longo de todo o trilho que, simbolicamente, poderíamos considerar como se fossem de quatro cores diferentes. A ordem dessas cores, que ocorrem em inúmeras combinações possíveis, assim como as letras que compõem a escrita, é capaz de conter informação.
Tal informação, que é herdável, não equivale, como muitos pensam, à receita para uma característica física ou psicológica qualquer, mas sim à receita para outros tipos de moléculas ou “produtos” microscópicos, chamados pela ciência de proteínas e de RNA (ou ácido ribonucleico). Esses produtos, resultantes da decodificação da informação contida no DNA, atuam dentro de nossas células como se fossem pequeninas máquinas. A cada receita, que se localiza fisicamente em um determinado trecho do longo trilho, corresponde um produto específico, que, devido à sua estrutura detalhada no “projeto” de nosso DNA, exerce uma função celular específica. Vistos desta forma, os genes nada mais são do que “receitas” ou “projetos” de máquinas moleculares, resultantes de bilhões de anos de evolução que as tornaram extremamente eficientes.
Nesse ponto da conversa, surge uma pergunta bastante pertinente: Mas o que nossas características físicas e psicológicas têm a ver com tais máquinas diminutas? Felizmente, a resposta não é tão complicada como se poderia crer, desde que compreendamos, em linhas gerais, que somos feitos de células e que somos, portanto, o resultado do funcionamento de cada uma delas. Logo, se as propriedades de uma célula qualquer, que compõe nosso ser, dependem do correto funcionamento de uma enorme quantidade de minúsculas máquinas, com suas múltiplas formas, tamanhos e cores, e se a receita para tais máquinas está gravada em nosso DNA, que é herdável, temos aí uma visão panorâmica da biologia molecular, celular e da genética.
Mude-se um dos milhões de barrotes distribuídos ao longo dos “trilhos” de nosso DNA e teremos uma potencial mudança na receita, que corresponde a um determinado produto. Alterado o produto, é possível (embora não garantido) que sua função seja afetada, afetando, assim, a célula que dele depende e, por consequência, alterando algum aspecto de nós mesmos. É fácil perceber que cada um de nós não é um agrupamento aleatório de células e moléculas. Tais componentes de nosso corpo têm formas e funções definidas. No entanto, esta definição varia de pessoa para pessoa, pois cada um de nós contém uma combinação única de informações, ou seja, de moléculas de DNA ligeiramente distintas. Introduzimos assim as noções de variabilidade genética e biodiversidade.
Genes do comportamento: crença ou evidência?
A essa altura, estamos aptos a compreender, ao menos em linhas gerais, de que forma os genes (que nada mais são do que pequenos segmentos de nossa imensa “ferrovia” de material genético) afetam nossa forma de pensar, sentir e agir. Para isso, só precisaremos refletir sobre mais um aspecto de nós mesmos: nada do que fazemos, sentimos ou fazemos independe de nosso sistema nervoso e, em última análise, de nosso cérebro.
Da mesma forma que células compõem nossa pele, coração e fígado, nosso cérebro também é feito de células, que, por sua vez, são feitas de moléculas altamente especializadas e organizadas, cuja “receita” está no DNA. No caso do diálogo mencionado acima, com nosso amigo procurador, senti que, nessa parte da conversa, ele relutava em aceitar que simples moléculas de proteínas pudessem de fato influenciar nossos sentimentos e nosso humor. Nesse impasse, uma analogia pode ser bastante útil. O senhor aceitaria, disse eu, o fato de que um composto químico, como o álcool, uma droga ou um medicamento antidepressivo pode afetar substancialmente nossas percepções, sensações e, consequentemente, nossas atitudes? Se a resposta for “sim”, então por que nossa mente não seria igualmente afetada por substâncias produzidas por nosso próprio organismo?
Este raciocínio, por si só, deveria ser suficiente para nos levar a aceitar um fato de nossa biologia: o DNA que herdamos de nossos pais influencia, através de processos químicos, entre outras coisas, a química de nosso cérebro. Logo, não existe função cerebral que não dependa, em maior ou menor grau, da ação de parte de nossos genes. Isso inclui a fome, a sede, o sono, a visão, a audição, o olfato, os sentimentos e todas aquelas ações resultantes dos inúmeros músculos de nosso corpo.
Portanto, da mesma forma que uma lesão física em nosso cérebro pode afetar nossa função cognitiva (e isso todos compreendem bem), assim também pode afetá-la uma lesão gênica, resultante de uma mudança aleatória ou até mesmo programada do DNA, como se observa em inúmeros experimentos com animais de laboratório.
O outro lado da moeda
Compreendidas e aceitas as evidências de que nosso DNA, que é herdável, influencia nosso cérebro através de uma complexa rede de processos químicos que são apenas parcialmente conhecidos pela ciência, precisamos remover uma outra importante pedra no caminho: o determinismo genético.
Não é incomum vermos, em diversos setores da sociedade, inclusive no sistema jurídico, o uso do raciocínio que acabamos de desenvolver acima, para tentar justificar uma percepção equivocada (mas profundamente cristalizada em nosso imaginário): a de que nós somos, afinal das contas, o inevitável produto de nossos genes. Nada mais ilusório. Nenhum gene, nem tampouco seu produto (seja ele RNA ou proteína), atua num vácuo de fatores ambientais, fatores estes oriundos de dentro ou fora da célula.
Conforme explicado em um artigo intitulado “Chimpanzés, pessoas e cobras” (Ramos et al., 2015), que tive a honra de publicar em parceria com alguns dos mais renomados geneticistas brasileiros (incluindo o saudoso e já mencionado professor Salzano), a ação dos genes sobre qualquer característica fenotípica está intimamente relacionada com a ação do ambiente externo. Este é um dos pilares da genética, estabelecido pelo dinamarquês Johansen, no começo do século XX (Hirsh, 1997). Portanto, até por uma questão de formação, geneticistas jamais poderiam ser deterministas. Eles têm a obrigação de não serem.
Como argumentamos no artigo citado acima, “nenhum ser humano, nem tampouco algum outro animal, se comporta de forma programada ou totalmente determinada por seus genes, que se perpetuam de geração em geração. Todo comportamento, assim como toda característica biológica, é produto de uma complexa rede de fatores genéticos e não genéticos. Tal rede é tanto maior, mais complexa e imprevisível, quanto maior for a complexidade do fenótipo, ou, neste caso, do comportamento”.
Adiciono aqui mais uma pitada de complexidade: a epigenética! Depois de décadas de uma visão biológica na qual o DNA, que transmitíamos aos nossos filhos através dos gametas, era transferido “limpinho”, isento e inalterado por qualquer experiência que tenhamos tido durante toda a vida, descobriu-se que o DNA que os bebês recebem dos pais, na verdade, carrega em si uma quantidade de informações que foram moldadas pelas experiências das gerações passadas. Em nossa metáfora do trilho, a sequência de cores dos barrotes não teria sido alterada por tais experiências de vida, mas o estado em que o trilho se encontra, aqui ou ali, sim. Este pode ter sofrido alterações ambientais, o que poderia influenciar, eventualmente, o deslocamento de um ou outro vagão de trem por cima desses trechos específicos de ferrovia.
Portanto, não apenas nós sofremos constante influência de nosso DNA e do ambiente em que vivemos, como também a própria forma com que o DNA se expressa (ativando um trecho aqui e desligando outro ali) varia em função das condições externas. E tal variação pode, em certos casos, ser transmitida de pais para filhos.
Que relevância isso teria para o comportamento? Muita. Já sabemos, por exemplo, que certos tipos de memória em um pequeno molusco chamado Aplysia, podem ser “transferidos” de um animal para outro pela transferência de moléculas de seu RNA, cuja produção depende, essencialmente, das experiências vividas por cada indivíduo (Bédécarrats et al., 2018). Em mamíferos, já está bem estabelecido o fato de que a relação afetiva entre mães e filhotes pode alterar a expressão de genes importantes para o controle das emoções, e que tal alteração pode atravessar gerações (Meaney e Szyf, 2005). Em humanos, descobriu-se recentemente que mudanças epigenéticas (ou seja, alterações no estado do DNA, mas não na sua sequência de bases, ou “cores”) podem estar relacionadas, enquanto causa, ao maior ou menor consumo de álcool, e, como consequência, ao desejo de se consumir álcool, avaliado em “bebedores” com hábitos alcoólicos mais ou menos exagerados (Gangisetty et al, 2019).
DNA e futebol
Chegamos então ao nosso último desafio, o de compreender porque não chegaremos à identificação “do gene” para a inteligência, a agressividade ou o talento para jogar futebol. A resposta é surpreendentemente simples: porque os genes nunca agem sozinhos. Acabamos de demonstrar acima que genes e seus produtos não atuam no vácuo. Suas ações dependem, entre outras coisas, de energia, de elementos químicos fornecidos pela alimentação e de estímulos ambientais externos, como temperatura, luz, umidade, pressão atmosférica, estresse etc. Resolvido o problema da compreensão da permanente interação que existe entre genes e fatores ambientais, só nos falta refletir sobre o grande número de genes que atuam em uma dada célula em um determinado momento.
Considerando-se a totalidade de nosso DNA, o número de genes presentes no ser humano aproxima-se de 30 mil. Nem todos eles estão ativos ou “ligados” ao mesmo tempo, ou em todas as células. No entanto, milhares deles se expressam em nosso cérebro simultaneamente, implicando numa infinidade de interações possíveis entre eles próprios. Ou seja, a ação de cada gene ocorre de forma orquestrada com a ação de muitos outros genes. Portanto, mais do que um simples somatório de efeitos, nosso cérebro, assim como todas as partes de nosso corpo, está constantemente sujeito a uma complexa rede de efeitos genéticos. Por isso suas propriedades, ações e reações se tornam, em grande medida, imprevisíveis, principalmente quando se trata de eventos futuros.
A título de ilustração, pensemos no futebol. Um simples jogo, mesmo para os maiores conhecedores desse esporte, tem resultado sempre imprevisível, ainda que conheçamos detalhadamente as condições físicas de cada jogador, o histórico de cada time e, até mesmo, o histórico de jogos entre os dois times em questão. São vinte e dois jogadores interagindo de forma complexa entre si, sendo que qualquer alteração em apenas um deles (digamos, um dos atacantes que tenha uma queda de desempenho durante a partida) pode afetar, não apenas o desempenho de sua própria equipe, como também da equipe adversária e, consequentemente, do placar final. Não fosse assim e os bolões do escritório seriam sempre bem menos emocionantes.
Se imaginarmos que cada jogador representaria aqui o efeito de um gene, teremos uma metáfora simples para dizer que, com um sistema biológico que dependesse de apenas 22 genes, o que é bem pouco, ainda assim teríamos pouco controle sobre o desempenho desse sistema como um todo, em qualquer ponto no tempo, mas principalmente em um futuro distante.
Consideremos agora que o resultado da partida não depende apenas dos jogadores, mas também da equipe técnica, do juiz, das condições do tempo, do gramado e, é claro, dos milhares de torcedores presentes no estádio, sendo que cada um deles, em nossa simbologia, poderia representar um gene ou ainda um fator ambiental. Transponhamos agora a situação de um único jogo de 90 minutos para um sistema ainda mais complexo: um torneio ou campeonato de vários meses de duração!
Retornando à questão inicial, de identificarmos um dia o gene responsável por tal e tal característica psicológica (ou psicopatológica), isso corresponderia a nos perguntarmos sobre qual o jogador, de todos os que participaram naquele ano, foi o verdadeiro responsável pela conquista do Corinthians no campeonato brasileiro de 2015. Pense agora em nossa mente. Ela não seria mais complexa que o somatório de muitos campeonatos de futebol?
André Ramos é professor de genética da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), tem mestrado pela Dalhousie University, no Canadá, e doutorado pela Université de Bordeaux II, na França. Especialista em genética neurocomportamental, coordena o projeto Imagine, de popularização científica (projetoimagine.ufsc.br), que atua em comunidades rurais e indígenas.
Referências
Hirsch, J. “Some history of heredity-vs-environment, genetic inferiority at Harvard and the (incredible) bell curve”. Genetica, 99: 207–224, 1997.
Meaney, M.J.; Szyf, M. “Maternal care as a model for experience-dependent chromatin plasticity?”. Trends in Neurosciences, 28: 456-463, 2005.
Ramos, A.; Salzano, F.M.; Schneider, H.; Hofmann, P.R.P.; Hotzel, M.J.; Izidio, G.S.; Muniz, Y.C.N. “Chimpanzés, pessoas e cobras”. Jornal da Ciência, 1-8, 10 de abril de 2015.
Bédécarrats, A.; Chen, S.; Pearce, K.; Cai, D.; Glanzman, D.L. “RNA from trained Aplysia can induce an epigenetic engram for long-term sensitization in untrained Aplysia”. eNeuro, 5 (3) 1-13, 2018.
Gangisetty, O.; Sinha, R.; Sarkar, D.K. “Hypermethylation of Proopiomelanocortin and Period 2 genes in blood are associated with greater subjective and behavioral motivation for alcohol in humans”. Alcoholism: Clinical and Experimental Research, 43 (2), 212-220, 2019.