Desde o século XIX, os museus cumprem a função de guardiões da memória coletiva, atuando como mediadores entre o passado e o presente por meio da conservação e exposição de acervos. Contudo, a ascensão das tecnologias digitais reconfigurou esse papel. Plataformas como o TikTok introduzem novas formas de mediação, nas quais obras históricas são traduzidas em narrativas audiovisuais fragmentadas, interativas e adaptadas à lógica do engajamento.
Por Jorge Abrão
O TikTok se tornou uma das plataformas digitais mais populares do mundo, influenciando a forma como interagimos com conteúdo cultural. Muito além de dancinhas e desafios virais, o aplicativo vem sendo explorado por museus que buscam novas maneiras de se conectar com o público. Essa migração para o ambiente digital, contudo, suscita questionamentos críticos: como a efemeridade inerente às redes sociais impacta a construção da memória cultural? É possível conciliar a linguagem ágil do TikTok com a missão educativa e preservacionista dos museus?
Para ilustrar essa discussão, analisaremos os perfis da National Gallery (@nationalgallerylondon). Rijksmuseum (@rijksmuseum), e das Galerias Uffizi (@uffizigalleries) no TikTok. Essas instituições adotaram abordagens distintas para divulgar seus acervos na plataforma, combinando humor, storytelling e interatividade para atrair um público diverso. O estudo dessas estratégias permitirá compreender como alguns museus utilizam a linguagem e os recursos do TikTok para transformar a experiência do espectador e promover a preservação da memória cultural.
National Gallery (@nationalgallerylondon): Storytelling e educação
A National Gallery de Londres adota uma abordagem diferenciada no TikTok, priorizando a dimensão educacional e informativa de seu acervo. Seu perfil combina storytelling com explicações detalhadas sobre a história da arte, destacando técnicas, artistas e interpretações das obras expostas no museu. O foco pedagógico da instituição se reflete na escolha de conteúdos que visam não apenas entreter, mas também a ampliar o conhecimento do espectador sobre as coleções do museu.
Os vídeos da National Gallery costumam seguir um formato estruturado, com cortes rápidos, legendas dinâmicas e trilhas sonoras modernas que mantêm a atenção do usuário. Além disso, a presença de curadores e especialistas nos conteúdos enriquece as postagens, oferecendo análises mais aprofundadas sobre as obras de arte. Essa estratégia contribui para que o TikTok funcione como uma extensão digital das exposições do museu, permitindo que o público acesse informações valiosas de forma acessível e interativa.
Outro diferencial do perfil da National Gallery é sua preocupação em equilibrar entretenimento e conhecimento. Em vez de recorrer exclusivamente a conteúdos virais ou humorísticos, o museu investe na produção de vídeos que contextualizam historicamente as obras, explicam aspectos técnicos e revelam curiosidades sobre os artistas. Esse equilíbrio faz com que o TikTok da National Gallery se posicione como um espaço de aprendizado, sem perder o dinamismo característico da plataforma. Dessa forma, a instituição explora o potencial das redes sociais para aproximar o público de seu acervo sem comprometer a profundidade de seu conteúdo educativo.
Rijksmuseum (@rijksmuseum): humor e trends
O Rijksmuseum, um dos mais renomados museus dos Países Baixos, tem utilizado o TikTok para criar uma ponte entre a arte clássica e a cultura digital contemporânea. Seu perfil se destaca pelo uso de narrativas visuais envolventes, que exploram detalhes pouco conhecidos das obras, curiosidades sobre técnicas artísticas e aspectos históricos dos artistas. A estratégia do museu no TikTok não se limita a uma simples adaptação de seu acervo para o ambiente digital, mas busca ressignificar a experiência do espectador por meio de formatos interativos e acessíveis.
Um dos elementos mais marcantes da presença do Rijksmuseum na plataforma é o uso do humor como ferramenta de engajamento. Os vídeos frequentemente adotam um tom descontraído, explorando expressões faciais curiosas de personagens retratados em pinturas ou comparando cenas clássicas a situações do cotidiano contemporâneo. Esse tipo de abordagem transforma obras tradicionais em conteúdos visualmente atrativos e fáceis de compartilhar, promovendo maior interação do público com o acervo.
Além disso, a interação com trends e desafios populares do TikTok permite que o conteúdo do museu ultrapasse a bolha dos entusiastas da arte e alcance uma audiência mais ampla e jovem. Por meio da apropriação de memes, músicas virais e efeitos visuais dinâmicos, o Rijksmuseum reforça a ideia de que a arte não é um campo distante e inacessível, mas um espaço aberto para o diálogo e a participação ativa do público. Esse uso criativo da plataforma amplia o impacto da instituição e sugere que o TikTok pode ser um meio eficaz para fomentar o interesse por arte e cultura em novos públicos.
Galerias Uffizi (@uffizigalleries): Memes e Renascimento
As Galerias Uffizi, em Florença, adotam uma estratégia singular no TikTok, mesclando irreverência e tradição para tornar a arte renascentista mais próxima da cultura digital contemporânea. Seu perfil se destaca pelo uso criativo de montagens, memes e edições dinâmicas, transformando obras clássicas em elementos visuais interativos e engajadores. Essa abordagem permite que o acervo do museu seja reinterpretado sob novas perspectivas, rompendo com a ideia de que o patrimônio artístico é algo distante do cotidiano do espectador.
Os vídeos do perfil frequentemente exploram expressões faciais das figuras retratadas em pinturas icônicas, criando associações bem-humoradas com situações comuns da atualidade. Além disso, o uso de tendências virais da plataforma, como dublagens e desafios, reforça a conexão entre as obras renascentistas e a linguagem digital contemporânea. Esse tipo de estratégia tem se mostrado eficaz para atrair a atenção de um público jovem e ampliar o alcance do museu nas redes sociais.
No entanto, a abordagem das Uffizi também gera debates sobre os limites entre a popularização da arte e a sua possível banalização. Enquanto alguns veem o uso do humor como uma maneira inovadora de democratizar o acesso ao patrimônio cultural, outros argumentam que esse tipo de adaptação pode simplificar excessivamente o significado das obras. Esse dilema reflete um desafio mais amplo enfrentado pelos museus no ambiente digital: como equilibrar acessibilidade e profundidade na comunicação com o público?
Apesar dessas questões, a estratégia das Galerias Uffizi no TikTok tem sido amplamente bem-sucedida em promover o engajamento com a arte renascentista. Ao se apropriar da cultura digital para reinterpretar seu acervo, o museu consegue despertar o interesse de audiências que talvez não se sentissem atraídas por uma visita física às suas exposições. Assim, sua presença na plataforma demonstra que o TikTok pode ser um espaço relevante para a mediação cultural e a preservação da memória, desde que utilizado com criatividade e estratégia.
Memória na terra do esquecimento
A presença dos museus no TikTok evidencia um movimento de adaptação às novas dinâmicas da comunicação digital, no qual a memória cultural se reconfigura em meio aos códigos de engajamento e de efemeridade da plataforma. Esse novo ecossistema digital propicia um espaço de experimentação onde museus podem testar e aperfeiçoar suas abordagens comunicacionais.
As iniciativas abordadas mostram que, embora o TikTok funcione sob uma lógica de consumo rápido de conteúdos, ele também pode ser um espaço de mediação cultural, capaz de estimular a curiosidade e o engajamento com o patrimônio artístico e cultural. O diálogo constante com o público, a análise dos feedbacks e o uso inteligente das tendências do aplicativo abrem possibilidades para que as instituições aprimorem suas estratégias de divulgação e educação.
No entanto, o uso da plataforma por instituições museológicas levanta desafios e dilemas, como o equilíbrio entre popularização e preservação da integridade das obras. Ao se adaptarem ao formato de vídeos curtos e altamente visuais, essas instituições correm o risco de simplificar narrativas complexas, reduzindo contextos históricos e artísticos a meras tendências virais. Essa busca pelo engajamento rápido pode comprometer a riqueza interpretativa e a contextualização necessária para uma compreensão aprofundada do patrimônio cultural. Ademais, a dependência dos algoritmos e das lógicas do consumo digital pode favorecer a homogeneização dos conteúdos, privilegiando a forma em detrimento da substância, e, assim, colocando em xeque a missão educativa e preservacionista que tradicionalmente norteia a atividade museológica.
A presença dos museus no ambiente digital não implica uma substituição de sua função original, mas sim uma ampliação de seus modos de interação com o público. Ao explorar as possibilidades do TikTok, essas instituições demonstram que a memória cultural não é estática, mas sim um processo vivo, que se transforma conforme os meios e as linguagens da época.
Jorge Abrão é doutorando em Comunicação e Práticas do Consumo pela ESPM/SP e mestre em Ciências da Comunicação pela ECA/USP.
Nota
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (Capes) – Código de Financiamento 001