Por Ignacio Amigo
Mesmo que muitos elementos da música possam ser analisados por uma perspectiva matemática, a forma como a percebemos é altamente subjetiva
Existem poucas coisas mais cotidianas e indefiníveis que a música, presente em todas as culturas, sob uma infinidade de formas. Essa indeterminação a situa nas interseções entre ciência e arte, racionalidade e irracionalidade. Mesmo que seja possível formalizar matematicamente vários de seus componentes, como ritmo e frequência, muitos elementos da percepção musical ainda estão longe de serem esclarecidos.
De acordo com uma definição clássica, a música é “som estruturado”, diferentemente do ruído, que é som sem estrutura definida. É, portanto, uma vibração. Todos os instrumentos musicais contêm um elemento que vibra, seja ele a corda de um violão, a coluna de ar de uma flauta ou as cordas vocais de uma cantora. As ondas geradas por essa vibração têm uma série de elementos mensuráveis, como frequência e amplitude. Esses elementos são os que nos permitem identificar tanto as notas que são tocadas como o som caraterístico de cada instrumento.
O ruído também é formado por uma mistura de ondas de diferentes frequências. Mas enquanto no ruído temos um contínuo de frequências sem que nenhuma delas seja dominante, na música as ondas têm frequências específicas (discretas), que mantêm relações matemáticas simples entre elas.
Essa visão da música como “som estruturado” começou a ser desafiada a partir do século XX. Um exemplo é a peça 4’33’’, do compositor norte-americano John Cage. Composta em 1952, o tema consiste em quatro minutos e trinta e três segundos durante os quais o intérprete não faz nada além de abrir e fechar a tampa do teclado do piano para sinalizar o começo e o final dos três movimentos que compõem o tema. O resultado da interpretação varia em cada apresentação, incorporando os sons do ambiente no qual a peça é interpretada.
O conceito de música ampliou-se significativamente nas últimas décadas, incluindo sons atonais e ruído, e as fronteiras entre música e outros sons são cada vez mais porosas.
A percepção humana da música
Alguns trabalhos sugerem que os circuitos neuronais envolvidos na decodificação da mensagem musical estão também envolvidos no processamento da linguagem. Em termos evolutivos isso pode ser interpretado de duas formas: ou o organismo reutilizou os circuitos da fala para apreciar a música, ou a capacidade para apreciar a música tenha sido precursora do desenvolvimento da linguagem.
Esse vínculo entre as palavras e a música tem sido aproveitado pelos cientistas. “Sabe-se que percepção musical é um preditor de uma série de habilidades importantes no desenvolvimento da criança, por exemplo, habilidades de leitura”, diz Hugo Cogo-Moreira, pesquisador da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Assim, a dificuldade com a música pode indicar que a criança terá problemas posteriores no aprendizado. Com a vantagem de a música ser algo não-verbal e, portanto, mais universal”.
Cogo-Moreira publicou, no ano passado, um estudo no qual participaram mais de 1000 crianças de escolas públicas e particulares do Brasil. O intuito era desenvolver um teste musical que permitisse diagnosticar problemas de aprendizado em crianças menores de 10 anos.
Durante o teste, duas sequências musicais são apresentadas, e as crianças têm que dizer se elas são iguais ou diferentes. Uma das novidades em relação a testes anteriores de percepção musical é que os estímulos não são só de natureza tonal, isto é, com frequências definidas, mas também sons atonais ou derivados de ruído. O teste, portanto, se baseia em um conceito de música mais contemporâneo e abrangente.
Na primeira parte do trabalho a equipe desenvolveu uma medida, batizada de “fator-m”, que permite quantificar a percepção musical de forma robusta. Os próximos passos consistem em levar o teste para o contexto clínico, usando-o para prever problemas de aprendizagem.
A percepção musical é universal?
No contexto da música ocidental, muitos dos princípios harmônicos, isto é, de como os ouvintes interpretam diferentes notas tocadas ao mesmo tempo, podem ser explicados pela física. Por exemplo, notas cujas frequências combinadas formam padrões regulares são comumente percebidas como agradáveis quando tocadas simultaneamente.
Essa ideia de que a música pode ser explicada através da matemática une sensações subjetivas (se uma combinação de notas é agradável ou não, por exemplo), a medidas objetivas (a relação matemática entre as notas).
A realidade, porém, é mais complexa, e existem inúmeros exemplos nos quais matemática e percepção diferem. Um dos casos é o do trítono, uma combinação de notas altamente dissonante em termos físicos. Ele foi evitado – quando não proibido – até o começo do século XX, recebendo inclusive o nome de “diabolus in música” desde o século XVIII. Atualmente é encontrado em acordes associados ao jazz e o blues, entre outros.
Os estudos para compreender se a percepção musical é universal, ou se, pelo menos, tem bases biológicas, são cada vez mais difíceis de serem desenvolvidos. É raro encontrar populações isoladas, que não tenham tido contato com o conceito de consonância e dissonância, fundamental para a música ocidental, e, portanto, assimilado inconscientemente os princípios nos quais se baseia. Mas em 2016, pesquisadores norte-americanos e chilenos conseguiram achar uma dessas populações em um pequeno povoado chamado Santa Maria, na floresta amazônica boliviana.
Os habitantes de Santa Maria, pertencentes ao grupo dos Tsimané, têm uma cultura musical sem harmonia, isto é, as pessoas cantam ou tocam instrumentos de forma individual, e não em conjunto. Essa ausência de harmonia, unida ao fato de a população ser relativamente isolada, forneceram aos pesquisadores as condições ideais para testar se combinações de notas consonantes e dissonantes são percebidas como agradáveis ou desagradáveis de forma inata.
Os resultados da pesquisa sugerem que não existe nada inato que determine se um som é agradável ou não. Para os Tsimané, tanto combinações de notas consonantes como dissonantes são percebidas de forma similar. Quando o mesmo experimento foi repetido em outros grupos humanos, os resultados indicaram que quanto maior é o contato de uma população com o mundo ocidental, maior é a tendência a classificar sons consonantes como agradáveis e dissonantes como desagradáveis.
Quer isso dizer que a percepção musical é puramente cultural? Não está claro. Outro estudo recente avaliou a capacidade de pessoas de 60 países para classificar músicas de 86 culturas minoritárias de todo o mundo. Os participantes tiveram que ouvir trechos das músicas e dizer se elas eram músicas feitas para dançar, ninar, curar ou expressar amor.
Se a percepção musical fosse puramente cultural, seria impossível fazer essa classificação sem conhecer a sociedade de onde a música veio. Os resultados, porém, mostram que esse conhecimento não é necessário para identificar corretamente a temática relacionada com cada uma das músicas.
O sentido da música
A professora Lia Tomás, especialista em estética musical da Unesp, considera que essas questões sobre a universalidade da música só têm sentido desde uma perspectiva ocidental.
“A música ocidental sempre se pautou sobre um sistema organizado matematicamente”, explica Tomás. “E essas questões da consonância e a dissonância sempre foram assuntos que permearam a discussão, tentando chegar a um determinado nível desse sistema em que essas questões fossem dizimadas, e as consonâncias sempre prevalecessem”.
Para ela, a música não é autorreferencial, isto é, não tem significado. “O que não quer dizer que ela não possa significar”, esclarece. De fato, Tomás tem estudado como regimes autoritários cooptam a música e o imaginário musical para seus fins políticos. A preferência dos ditadores pela música não é trivial.
“A música nos chega por um veículo sobre o qual nós não temos grande controle, o ouvido. Você pode não querer escutar uma coisa, mas você não tem como não escutar. O som tem uma questão interessante: ele é o mais intangível dos sentidos, mas também é o mais invasivo”.
Tema inesgotável, tudo aponta a que a música continuará oferecendo perguntas interessantes ainda por muito tempo. Mas é possível que nunca sejamos capazes de apreender esse elemento mágico da música. Porque, como dizia o músico Frank Zappa, escrever sobre música é como dançar sobre arquitetura.
Ignacio Amigo (@IgnacioAmigoH) é doutor em biologia molecular e aluno do curso de especialização em jornalismo científico do Labjor/Unicamp