Massacre covid: suicídio como esporte e distração

Por Roberto Romano [Ilustração de Céllus Marcello Monteiro instagram celluscartum twitter @Cllus1]

Voici le temps des assassins (Rimbaud)

A coletânea de escritos apresentados agora pela revista ComCiência tem como alvo discutir o conceito e a prática ligados à distração. Meu intento é modesto: desejo indicar elementos para o debate sobre semelhante atividade humana. Começo com um espanto. Hoje, “distração” adquire semântica quase neutra. Não era assim na cultura romana que nos deu a língua e a maioria dos costumes. Distractio no vocabulário do Império significava “separação”, divisão, desavença, discórdia. Distractor era o indivíduo que puxava os demais para as mais diversas partes, causando a quebra da unidade social. Distractus seria a pessoa impelida para uma ou outra facção.

O vocábulo também designa o sujeito esquartejado. Distraho enuncia o ato de puxar e destruir um todo, rasgar, romper, separar. Em Cícero, Distrahere societatem é desfazer um coletivo, desuni-lo. E ademais Distrahere aliquem ab aliquo é afastar alguém de alguém. Quase todos os termos remetem para uma atividade perniciosa, bélica, subversiva da correta existência em sociedade.

Num ajuntamento social como o romano fazia sentido falar assim da distração. Afinal, o Coliseu acolhe espetáculos onde gladiadores arrancam peças de corpos alheios, seres humanos são jogados às feras para terem os membros despedaçados. Uma sociedade guerreira e conquistadora designa suas façanhas como distração de si mesma ou de outros povos.

Talvez algo similar – no pleno uso da mídia eletrônica – pode ser encontrado nas “redes sociais”. Há uma crônica tétrica de jogos que geram mortes em usuários da internet. Brincadeiras levam crianças e adolescentes ao suicídio programado, bulling, fake news, calúnias, tudo o que surge na palavra “ódio” é visto por muita gente como divertido. Tais práticas dissolvem laços societários, instilam pavor e desconfiança mas reivindicam o álibi de serem “engraçadas”. “O jogo é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência de ser diferente da ‘vida cotidiana’”.[1]

Tais enunciados de J. Huizinga indicam – penso nas brincadeiras letíferas da internet – que o impulso para atos cruéis se encontra em algo próximo da essência humana. Jogar integra a forma e o conteúdo da humanidade. O que torna o jogo terrível é o fato d’ele ser “um fim em si mesmo”. Não é preciso assumir logo de início a definição de I. Kant sobre a pessoa moral cujo fim está nela mesma. Ela interdita o uso de alguém como instrumento de outrem. O homem, diz Kant, “pode dispor de tudo o que pertence à sua pessoa, mas não dela mesma”. Tal dignidade obriga ao respeito. Não existe pessoa moral sem liberdade e respeito.

Ora, no jogo que tem o fim em si mesmo tudo pode ser usado, inclusive o ser dos outros. É o que assistimos ao longo da história e, hoje, nas “redes sociais”. Concedamos a Huizinga a naturalidade trazida no jogo. Mas acrescentemos que ele é limítrofe, não poucas vezes, da indignidade cruel trazida pelo mal radical também descrito por Kant. Sem esquecer, claro, o juízo de Maquiavel sobre os seres humanos. Estes, em grande parte, jamais são plenamente bons (buoni) ou péssimos (tristi), pois preferem a via mediana, a qual é “danosíssima” (Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, capítulos XXVI e XXVII). Os medíocres causam as piores moléstias ao Estado e à sociedade porque são covardes e desprovidos de aguda inteligência.

Tal situação humana foi descrita no século XX por Heiddeger em Ser e tempo. A descrição da mediania feita pelo filósofo foi apropriada na dissertação de H. Arendt sobre a “banalidade do mal”[2]. Eichmann foi monstro, carrasco e genocida. Ele era uma pessoa mediana, “normal” como burocrata que sempre ruma para o seguro mundo das “ordens superiores”.

Entre as “distrações” que ensinam o pior temos os jogos de guerra[3]. Eles surgem com a transformação do Estado em grande fábrica de controle político. Se a burocracia é o destino do mundo, a razão calculadora toma posse da política e da economia. A lógica que gera o Estado máquina – burocracias civis e militares modernas – inventa os jogos de guerra no século XVII. Eles foram produzidos para dar aos cadetes das academias o modo certeiro de se mover no espaço em tempo rápido e destruir inimigos. O cálculo e os instrumentos são o essencial, a natureza inteira é pensada como obstáculo ou meio para destruir vontades adversas.

Os liberais clássicos, sobretudo os do século XIX, defendem a separação entre mundo civil e universo militar. Engano. A ordem militar reside no cerne da sociedade industrial. Não é possível pensar a segunda sem a primeira. O que servia para a educação do oficial militar nos séculos XVII e XVIII tornou-se no XX fenômeno de massa, o jogo na sociedade ocidental. Com a internet os jogos de guerra subiram ao plano de uma visão de mundo guerreira. Nela, crianças e adultos aprendem as artes do aniquilamento. A mídia ajuda a tarefa, bem como Holywood, em cujos filmes heróis matam pretensos ou reais inimigos da “civilização cristã e ocidental”[4].

Nos war games um cenário determina o jogo, construído segundo o paradigma hipotético (se ocorre X, então Y deve acontecer). A estrutura une atores que movem forças, motivos e regras. Existe o alvo: objetivos primários e secundários com meios adequados. Depois, temos o mapa, o espaço guerreiro cartesiano: geométrico, sem vida e sem resíduos (ou ruídos de sentido biológico, ético etc.). Somem as experiências humanas que definem sentidos: medo, fuga, heroísmo, sacrifício. Todos esses pontos perdem sentido, são “apenas interferências irracionais com as quais não se sabe o que fazer. É significativo o status que os jogos de guerra reservam aos civis: nenhum” (E. Pozzi).

O espaço é pura geometria e o tempo entra numa sucessão cronológica também pura onde contam os segundos. O tempo se resume a uma somatória de átomos temporais parceláveis quase ao infinito. O tempo abstrai o vivido. Temos uma atividade educacional planetária que ensina as regras da razão técnica cujo alvo é a morte de milhões, sem que nela exista sangue, excrementos, dor, paixões, vida.

Chego, no trabalho de Pozzi, ao item “Esporte, guerra e festa degradada”. É preciso definir os nexos entre distrações e revolução industrial. É comum unir-se o mercado e o esporte moderno. Este último seria a redução dos corpos à forma mercadoria, em consonância com a universalidade racional burguesa. Mas a tese possui um senão: o esporte moderno não foi inventado pela burguesia, mas pelos aristocratas. Para eles o esporte era forma sublimada da guerra, modalidade lúdica das virtudes guerreiras. O culto aos esportes foi um lado da ética que apresentava os seus praticantes como “superiores” aos demais, não submetidos às leis vigentes para as pessoas comuns. “A guerra se coloca no centro da ordem burguesa, como constitutiva de sua visão de mundo e de construção da realidade (…) A sociedade militar produziu em parte a sociedade industrial, e uma arqueologia do saber militar deve reconstruir este papel decisivo e escondido” (Pozzi).

A “distração” experimentada por bilhões de seres humanos os prepara para o papel de assassinos ou vítimas. Existe algo comum entre o jogo e o desejo de mando e a tendência a ferir o próximo em proveito próprio. Nos dois casos, temos outro segmento de ética distorcida a que os gregos chamam kakourgia: o gosto de fazer e observar o mal. Plutarco, no De curiositate expõe o gozo erótico de quem se diverte espalhando o mal. As chamadas “redes sociais” são constructos técnicos que efetivam a ferocidade humana. Elas não causam mas impulsionam a kakourgia, o fazer o mal cujo fim é o prazer de fazer o mal, como no jogo exposto por Huizinga. Plantar mentiras é algo presente em profundas fibras do corpo e da alma. As redes sociais nos aproximam, mas raramente nos unem e auxiliam. E abrir o computador para saber quem é a vítima da hora e dela escarnecer torna-se distração estratégica no domínio de massas perversas e pervertidas.

Tudo nos leva ao diagnóstico efetuado por Blaise Pascal sobre a diversão. Embora ele seja muito citado, pouco se leva em conta seus termos. Pascal, como seus pares de Port-Royal, segue Santo Agostinho. O De Magistro se refere aos defeitos da linguagem chamados “distração”. A primeira forma da distração é falar de algo pensando em outra coisa. É o caso do lapsus: a falta de atenção provoca o uso involuntário de palavras que não correspondem ao pensamento que se deseja transmitir[5].

Indo além, indico que o maior lapso humano residiu na falta de atenção que levou o primeiro homem a trocar o ser divino pelo nada, distração que introduziu o mal nos atos e palavras. E na consciência humana surgem então vários aspectos da finitude, como o tempo. Este último é distensio (distração) e deixa de ser apenas algo próprio ao kosmos[6].

A passagem da cosmologia à antropologia no pensamento agostiniano não se faz, como ocorre no Renascimento, para exaltar o humano. Pelo contrário. Consciente de sua maldade, o pecador tudo enxerga a partir de si mesmo, o ego torna-se a medida de tudo, mas o todo o ameaça com a morte. Ser o lugar onde se chocam infinito e finito dá ao homem o pavor da morte e do silêncio. Todas as palavras suas apenas o distraem de semelhante angústia. Vejamos o trecho famoso de Pascal. Peço desculpar pela tradução imperfeita de um soberbo autor.

“Quando me coloquei às vezes a considerar as diversas agitações dos homens e os perigos e dores a que eles se expõem na corte, na guerra, de onde nascem tantas querelas, paixões, empreendimentos ousados e não raro péssimos etc., digo com frequência que toda a infelicidade humana vem de uma só coisa, a de não saber ficar em repouso num quarto. Um homem que possui bens suficientes para viver, se soubesse permanecer em casa com prazer, não sairia para ir ao mar ou à sede de uma praça. Só se compra um cargo tão caro no exército porque se consideraria insuportável não sair da cidade. E só se procura conversas e divertimentos dos jogos porque não se consegue ficar com prazer em casa. Etc. Mas quando pensei de mais perto e após ter encontrado a causa de todas as nossas infelicidades quis descobrir a sua razão, e vi que existe uma razão bem efetiva a qual consiste na infelicidade de nossa fraca natureza e condição mortal. Ela é tão miserável que nada pode nos consolar quando nela pensamos mais de perto. Qualquer que seja a condição que imaginamos, ali onde se reúnem todos os bens que podem nos pertencer, o cargo do rei é o mais belo lugar do mundo. Mas o imaginemos acompanhado de todas as satisfações que podem a ele se relacionar. Se ele não é divertido e se consideramos refletir sobre o que ele é, esta lânguida felicidade não o sustentará. Ele cairá necessariamente nas visões que o ameaçam com revoltas possíveis e enfim com a morte e doenças inevitáveis. De modo que se ele não tem o que se chama divertimento, ei-lo infeliz e mais infeliz que o menor de seus súditos, o qual joga e se diverte. Daí vem que o jogo e a conversa das mulheres, a guerra, os grandes empregos sejam tão procurados. Não se trata aqui de um efeito da felicidade, nem se imagina que a verdadeira beatitude seja possuir o dinheiro ganho no jogo ou na lebre que corre (...) Não é tal uso mole e prazeroso que nos deixa pensar em nossa condição infeliz nem os perigos da guerra nem a pena dos empregos, mas é o incômodo que nos desvia de nela pensar e nos diverte.”

A impressão diante do trecho pascalino acima é a de que ele foi escrito em 2020 durante a pandemia do coronavirus. Multidões ensandecidas voam para os bares, avenidas, praias, igrejas assim que autoridades relaxam quarentenas. Elas não suportam ficar “em repouso no seu quarto”. E não bastam empregos prestigiosos porque a eles, em condições de moléstia coletiva, faltam atrativos e diversão. Claro, existem governantes cheios de nulidade que não hesitam em se divertir andando a cavalo entre seguidores ou de jet sky quando a morte ronda.

A rotina administrativa apavora tais mentes miúdas e delas faz impiedosas instigadoras de guerra, mesmo que virtual, para apaziguar sua impossível convivência nas situações desesperadas. Massas e dirigentes não conseguem suportar a presença da morte e sua distração (Santo Agostinho) reside no ato de espalhar o nada em outros entes humanos, por contágio. O divertido é zombar da morte… alheia, mantendo a ilusória confiança na própria sobrevivência.

O diagnóstico da distração feito por Pascal é terrificante? É errôneo? Talvez. Mas quem segue a história das epidemias, desde a que levou as aspirações dos atenienses de poder imperial ao túmulo, às várias “pestes” que dizimaram milhões na Europa e no mundo, percebe um fato macabro. Quando a dor se torna insuportável e não há socorro à vista, sequer e principalmente o divino, indivíduos e grupos jogam-se na tentativa desesperada de encontrar uma diversão que os retire do pavor. A dança durante a peste é evidência de loucura e imprudência dos que têm medo de morrer.

Retomemos o testemunho de David Specklin, engenheiro e arquiteto que morava em Estrasburgo em 1518, tempo de peste: ” A dança tomou conta de pessoas jovens e velhas. Elas dançaram dia e noite até cair de esgotamento. Mais de cem pessoas dançavam ao mesmo tempo em Estrasburgo. Colocaram à sua disposição certo número de fogões corporativos […] foram empregadas pessoas que deveriam dançar ao som dos tambores e dos pífanos. […] Muitos dançaram até a morte”[7].

Sydney Pollack dirigiu certo filme apavorante para ilustrar uma forma de pandemia, a depressão mundial após a quebra da bolsa em Nova York. Os pares dançam até os limites da morte para conquistar um prêmio irrisório que poderia lhes dar alguns dias de alimento. A dança se transforma: da figura leve e divertida ela passa a ser um sabbath mecânico. Os dançarinos são peças gastas que repetem gestos cansados. Os órgãos humanos falecem, a música berra, a morte é soberana[8].

A distração afasta o pavor, mas aumenta o contágio letífero. Somem na epidemia o respeito, a amizade, o amor, a fé, a confiança, os bons modos, tudo o que marca uma sociedade humana. A ilusória sobrevivência é seguida pela certeza absurda da incolumidade. A doença ataca “apenas os outros, porque eu tomo providências contra ela”. Eu me divirto espalhando a morte.

Nem toda filosofia tem uma visão assim dantesca do ser humano, visão que justifica o juízo negativo de T. Hobbes sobre nossa espécie. Leibniz, atacado levianamente por Voltaire, propôs um sistema de pura diversão a partir dos engenhos técnicos subjacentes às máquinas do que viria a ser conhecido como “parque de diversão”. Suponhamos, diz Leibniz, “que algumas pessoas de consideração, entendidas nas belas curiosidades, e sobretudo nas máquinas, estejam de acordo e unidas para delas fazer representações públicas”. Tais divertimentos seriam movidos por matemáticos, engenheiros, arquitetos, músicos, poetas, tipógrafos, gravuristas etc. “As representações seriam por exemplo lanternas mágicas (poderíamos começar por aí), voos, imitações de meteoros, todo tipo de maravilha ótica, fogos de artifício, jatos d’água… representações de atos guerreiros. Fortificações elevadas feitas de madeira sobre o teatro, caridade, crueldade (…) teatro da natureza e da arte. Lutar. Nadar…”. A justificativa de Leibniz era a de atrair a atenção das massas e governantes para as técnicas e as ciências, ajudando na edificação de um mundo sábio e divertido. Não continuo a citação de nosso pensador porque os leitores têm o direito de admirar o pequeno texto de Leibniz[9].

No pensamento filosófico posterior Leibniz foi criticado pelos princípios mesmos da monadologia e dos Ensaios de Teodicéia[10]. O mal seria um fenômeno ótico: “O mal ocorre com mais frequência quando as inteligências ou seus pequenos mundos se chocam. O homem se encontra no mal na medida que ele está errado; mas Deus, por uma arte maravilhosa, transforma todos esses defeitos dos pequenos mundos em um grande ornamento de seu mundo grande. É como nas invenções da perspectiva em que alguns bons desenhos parecem confusos até serem relacionados ao seu verdadeiro ponto de vista, ou que eles sejam olhados por meio de uma lente ou espelho. É os colocando e deles servindo-se como é preciso que os fazemos se tornar ornamentos de um gabinete. Assim as deformidades aparentes de nossos pequenos mundos se reúnem em belezas no grande, e nada têm que se oponha à unidade de um princípio universal infinitamente perfeito. Pelo contrário, eles aumentam a admiração de sua sabedoria, que faz servir o mal para o maior bem”[11].

Se explica, portanto, o entusiasmo de Leibniz pela diversão: ela é propedêutica para um olhar que domina as anamorfoses, não tomba nas ilusões do mal, acredita na ciência, nas técnicas e nas artes. Há muito de Francis Bacon na Encyclopédie diderotiana. Mas também nela temos a presença de Leibniz. A ciência é o antídoto da cegueira que gera a ilusão do mal metafísico. Este não possui o matiz melancólico que lhe emprestam Hobbes, Pascal e uma plêiade de pensadores. Mas no fundo do projeto enciclopedista, na figura de um grande colaborador de Diderot, ressoa a concepção “pessimista”: “Diversão, segundo a ideia que dela me faço ainda, trata das ocupações fáceis e agradáveis que assumimos para evitar o tédio, para pensar menos em nós mesmos” (Jaucourt, eu sublinho, RR).

A lógica exposta por Hobbes e Pascal sobre o bem e o malefício é sintetizada por Diderot no espantoso Sobrinho de Rameau. Ir ao zoológico é uma diversão. Mas se levamos para aquele lugar “um jovem provinciano, e ele por tolice mete a mão para além das barras, na jaula do tigre ou da pantera; se o jovem deixa seu braço na garganta do animal feroz, quem está errado? Tudo isto está escrito num pacto tácito. Pior para quem o ignora ou esquece”. A ciência ajuda a domesticar o bicho humano. Mas ele continua, no fundo, terrível perigo: “Parecemos alegres; mas no fundo temos péssimo humor e grande apetite. Lobos não são mais esfaimados; tigres mais cruéis. Devoramos como lobos, quando a terra foi há bom tempo coberta de neve; estraçalhamos como tigres tudo o que é bem-sucedido”.

O Sobrinho de Rameau, entre muitas coisas, narra as desgraças de um intelectual fracassado e cheio de ressentimento. Ele diverte ricos e poderosos, mas sabe que eles também servem aos piores deboches. “Todos que precisam de um outro são indigentes e assumem uma posição. O rei assume uma posição diante de sua amante e de Deus; ele dá seu passo de pantomima. O ministro dá seu passo de cortesão, de bajulador, de criado ou mendigo diante de seu rei. A massa dos ambiciosos dança vossas posições de cem maneiras, umas mais vis do que as outras, diante do ministro.” A dança dos loucos é polissêmica e milenar, nada de original existe nas baladas dos assassinos que hoje espalham uma doença planetária.

Diversão, teu nome é violência e fracasso da vida em sociedade. Termino com um trecho ferino de Hobbes sobre o tema. “Se as reuniões ocorrem por causa da diversão que nelas se recebe, notem, peço por favor, como cada um se apraz sobretudo com as coisas que causam riso; e isso sem dúvida afim de que o indivíduo possa (tal é segundo meu juízo a natureza do ridículo) ter maior complacência para as suas belas qualidades, pela comparação que se faz com os defeitos e enfermidades de qualquer outro do grupo.  Mas embora tal pequena satisfação seja com frequência inocente, é claro: quem a aprecia adora a glória […]. De resto, em tais reuniões os ausentes são retalhados, toda sua vida é examinada, todos os seus atos são postos em evidência, deles é feito objeto de zombaria, suas palavras são descascadas, eles são julgados e condenados com demasiada liberdade. Os da mesma roda não são poupados e desde que viraram as costas recebem o mesmo tratamento que deram aos outros: o que me faz aprovar totalmente o conselho daquela pessoa que sempre era a última a se retirar de uma reunião. Tais são as delícias da sociedade” (De cive). Tal é a prática de todas as diversões que fazem dos iguais ridículos inferiores. Rir da alteridade é forma gêmea dos piores preconceitos e dos mais abjetos modos de ser em sociedade.

Para semelhante associação seguem, céleres, os parasitas da cultura impregnados da ânsia de diversões. O termo próprio para eles no caso da atual pandemia é relaxamento. Empresários capitalistas que só enxergam o lucro e desprezam a existência humana exigem relaxamento. Governantes cúmplices do genocídio perpetrado em nome das bolsas de valores berram por relaxamento. Pastores e padres sócios da morte, quando deviam proclamar a vida, esperam dízimos e relaxamento. Fracos, covardes, eles e a massa que os apoia nada temem quando reunidos. Como não conseguem conviver consigo mesmos, unem-se aos seus espelhos e buscam apagar a vida alheia transmitindo o vírus da morte. É assim que hoje, nos Estados Unidos da América e no Brasil, presidentes da república são divertidos. De modo igual eles divertem os seguidores, retomam o papel do flautista de Hamelin: todos seguem dançando e rindo para o vale do horror.

Roberto Romano da Silva é professor titular aposentado do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Autor de vários livros, entre eles Brasil, Igreja contra Estado (Editora Kayrós, 1979), Conservadorismo romântico (Editora da Unesp), Silêncio e ruído, a sátira e Denis Diderot (Editora da Unicamp), Razão de Estado e outros estados da razão (Editora Perspectiva).

[1] Huizinga, J.. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva.2014, p. 33

[2] Eichmann in Jerusalem. A report on the banality of evil (Penguin Books, 2006)

[3] Pozzi, E.: “Giochi di guerra e tempo di pace”. La critica sociologica, 67, 1983, páginas 42-55

[4] Parte das passagens acima foram extraídas de uma conferência que proferi para a Associação de Pós-Graduação em Educação Física com o título de “Ética, guerra, esporte” http://oapolitico.blogspot.com/2007/02/tica-guerra-e-esporte.html

[5] Kambale Migheri, J-B.: Langage et interpretation, de l ‘intériorité du ‘Verbum’ chez Saint Augustin à l ‘universalité de l ‘Herméneutique chez H.G. Gadamer, (Ediciones Universida San Dámaso, 2015), p. 261

[6] Veillard Baron, J-L. “A propos de Saint Agustin”, Révue Philosophique de la France et de l’Étranger, 2009/3 (Tomo 134), pp. 355-368.

[7] “Avant le coronavirus, les épidémies ravageuses en Alsace : peste noire, choléra et danse de Saint-Guy” https://france3-regions.francetvinfo.fr/grand-est/coronavirus-epidemies-ravageuses-alsace-peste-noire-cholera-danse-saint-guy-1804980.html

[8] They Shut horses, don’t they ? – O filme é de 1969, logo após a onda de beleza e culto da liberdade pelos movimentos de19 68, incluindo o flower power. Trata-se de uma película atualíssima para os nossos dias.

[9] Gottfried Wilhelm Leibniz Drole de pensee touchant une nouvelle sorte de representations. Leibnizens nachgelassene Schriften physikalischen, mechanischen und technischen Inhalts, Texte établi par Ernst Gerland, B. G. Teubner, 1906 (p. 246-252). O texto pode ser lido aqui

[10] Não tenho espaço para analisar o conceito de distração, tal como pensado por Pascal, presente em Leibniz e importante em Fichte. Remeto o leitor interessado ao livro de Alexis Philonenko: Métaphysique et politique chez Kant et Fichte (Paris, Vrin, 1997), p. 471.

[11] Leibniz: Essais de Théodicée, Segunda Parte, (Paris, Garnier-Flammarion, 1969), pp. 199-200.