Por Carlos Vogt
O mal é o tema e o fardo dessa trajetória, desse percurso que, a todo momento, indaga desconfiado se, pela ausência, não estará o bem à espreita para o bote que, com esperança, derrubará a insanidade perversa, já uma vez derrotada na história, e que é preciso conclamar o seja novamente.
Publicado, originalmente, como prefácio ao livro de João Carlos Salles: Ernst Cassirer e o Nazismo, e outros textos sobre A Proximidade do Mal. Editora Noir Ltda, São Paulo, 2022, p. 7-11.
Este é um livro que você não pode deixar de ler!
Pela atualidade do tema, pela oportunidade das formas com que é tratado, pelo tratamento filosófico, conceitual, analítico, prático, teórico e militante, que recebe do professor João Carlos Salles, nos ensaios e artigos que o compõem.
O autor é filósofo, com trabalhos importantes na área de filosofia da linguagem, o que se faz notar logo na “Apresentação” do livro, dividida, paradigmaticamente, entre presença e ausência do signo, numa oposição cara a Ferdinand de Saussure, citado em epígrafe, e determinante na sua organização distribuída entre “Dos textos que não estão aqui” e “Dos textos que estão aqui”.
O leitor logo se dará conta da familiaridade do autor com a linguística, além da filosofia, e com a tradição do pensamento que se articula no jogo de oposições e de combinações que constitui a linguagem e o processo de formação dos conceitos.
Mas não nos iludamos com o dito e o não-dito, porque o jogo de luz e sombra, de claro e escuro, de explícito e implícito na escrita de João Carlos Salles revela uma dialética de contrários não contraditórios em que a síntese unifica, mas não exclui a negação, uma espécie de dialética da separação, para usar uma categoria rica e fecunda da filosofia de Émile Bréhier.
Por isso, “a gramática não aproxima iguais. Ela inventa, ou aceita uma liga entre diferenças”, como escreve o autor, logo na abertura do livro.
A linguagem é o que ela não é. Na diferença ela encontra sua plena realização como semiósis. A sua materialidade, sonora, ou gráfica constitui uma estrutura recorrente de alternâncias e combinações que engendra, infinitamente, signos de alteridade: com o mundo, com as pessoas, com as pessoas no mundo, com o mundo das pessoas.
Essa presença/ausência do signo marca a construção dos textos de João Carlos Salles e, no intervalo dessa oposição, traça uma trajetória singular e inventiva que vai, ela própria, alternando o filósofo, o professor, o dirigente universitário, o militante institucional, preparando-lhes o encontro-síntese com o poeta dos dois últimos artigos: “Sou quase normal” e “Cabeça de Minotauro”.
O mal é o tema e o fardo dessa trajetória, desse percurso que, a todo momento, indaga desconfiado se, pela ausência, não estará o bem à espreita para o bote que, com esperança, derrubará a insanidade perversa, já uma vez derrotada na história, e que é preciso conclamar o seja novamente.
O ensaio “Ernst Cassirer e o nazismo” dimensiona o fundo e a forma dos escritos que compõem o livro por dois caminhos principais: o primeiro, pelo seu pensamento que estende a crítica kantiana a todas as formas do simbólico, à linguagem, à cultura, à estética, ao mito, à religião; o segundo, pela atitude histórica do homem e do cidadão que se recusa a continuar professor de filosofia em Hamburgo, quando se dá a ascensão do nazismo ao poder, em 1933, contrapondo-se ao comportamento de outro grande filósofo, seu contemporâneo, Martin Heidegger, a quem admirava, e que permanece atuando como reitor, afastando-se, inclusive, de Husserl, seu mestre amigo, por ser este judeu.
É, como se sabe, um momento de definições para a sociedade e para a cultura ocidentais, aquele momento em que é posto no ninho o ovo da serpente, para lembrar, aqui, o título assustador e o filme impactante de Ingmar Bergman, de 1977.
Como escreve João Carlos Salles, isso ilumina o palco e o cenário histórico e intelectual em que se dá a atuação do homem, do cidadão e do filósofo nesse instante divisor de águas dos valores éticos, sociais, culturais e políticos da Alemanha e de todo o Ocidente:
A obra de Cassirer adquire outro contorno e alcance, se a pensamos contra esse pano de fundo. Creio mesmo que se mostra mais atual e inspiradora, mesmo que não concordemos com análises específicas ou tenhamos diagnóstico diverso das razões (na expressão de Wittgenstein) para as trevas de nosso tempo. Ou seja, a obra parece ter outro viço, se disposta contra o fundo de sua história. Longe então de ser um laborioso exercício escolar, internamente acadêmico, sua estratégia de trabalho se mostra deveras fecunda e, ademais, crítica, estando ligada ao particular destino da Europa e denotando sua resistência pessoal (mais ainda, uma resistência de princípio), como filósofo e também como judeu, ao obscurantismo autoritário do nazismo.
A luz que João Carlos Salles faz incidir sobre Cassirer ilumina, assim, o contexto histórico de sua obra e, ao mesmo tempo, deixa iluminar a direção que o seu texto deverá seguir, guiando o leitor pelas nuances de um passado cujo traçado, pleno de atualidade, aponta para um presente carregado com as sombras de um presságio acabrunhador: nosso presente.
Desse modo, a leitura que o autor faz de Cassirer não altera, é claro, os fatos do passado, mas redimensiona as relações constitutivas que permitem redistribuir as medidas das ideias, dos conceitos, das afeições e sentimentos que lhe dão a consistência etérea de formas simbólicas pesadas e evanescentes.
É do mal que se trata.
É do racionalismo cruel da maldade e dos meios utilizados para a finalidade irracional da destruição, do desprezo, do abandono, do escárnio, da indiferença.
Nesse sentido, há no livro a ocorrência, não casual, por mais uma vez, na citação de um texto balizador de Theodor Adorno, extraído de uma palestra proferida em 1967, na qual reflete, com preocupação crítica, sobre o retorno de movimentos nazistas da Alemanha:
Não se deve subestimar esses movimentos (...) devido ao seu baixo nível intelectual e devido à sua ausência de teoria. Creio que seria uma falta total de senso político se acreditássemos, por causa disso, que eles são malsucedidos. O que é característico desses movimentos é muito mais uma extraordinária perfeição de meios, a saber, uma perfeição em primeiro lugar dos meios propagandísticos no sentido mais amplo, combinada com uma cegueira, com uma abstrusidade dos fins que aí são perseguidos.
O mal tem muitas insinuações e, como escrevi no poema “Gramatiquinha”,
Onde vai o bom vai também o mau onde cabe o bem cabe bem o mal
No ensaio “Nota breve sobre o mal tamanho”, aprendemos com o autor a enxergar a simulação e a dissimulação do mal, com a desconfiança crítica de quem o vê como um fato moral concreto, mas duvida de seu poder explicativo como categoria sociológica.
Em qualquer hipótese, ele está aí a pautar a superfície dos fatos, onde se esconde, nos rituais perversos das Câmara dos Deputados, agenciando um golpe parlamentar contra a presidente e contra a república, propiciando um elogio a torturadores, produzindo cizânia e medo, escorrendo pelo ridículo como uma tolice, uma estultice, uma bufonaria, uma pantomima, uma catástrofe disfarçada em mal menor.
O mal em caricatura, pela tirania do disfarce, é impositivo e destruidor da sociabilidade, cuja defesa e preservação dinâmicas requerem medidas urgentes das formas democráticas de representação e da liberdade, em todo o alcance de seu gesto, de seu voo, de sua expressão.
O mal se naturaliza, é insidioso, tem o objetivo da barbárie, qualquer que seja justificativa retórica de sua obsessão; se esconde em mesuras e poses calculadas de afetação e simpatias populistas, é mesquinho, quando parece elegante, é traiçoeiro, quando parece sincero, é deselegante, por ser mesquinho.
Não é uma entidade física ou metafísica, mas é um valor arraigado no seu agente e é uma categoria social com poder de não apenas receber, mas de dar ordens e de ordenar a ordem de seu recebimento.
O mal afasta, mas aglutina aqueles que por eles são afastados, os maledicentes, os provocadores da discórdia, o melífluo, o arrivista, o tirano, o urdidor de intrigas, os bem intencionados das causas escusas e das salvações de auditório.
O mal é cruel na sua banalidade e banal na sua crueldade!
Lendo estes escritos de João Carlos Salles é impossível não pensar no livro Eichmann em Jerusalém – uma reportagem sobre a banalidade do mal, de Hanna Arendt.
O que ele acrescenta – e não é pouco – é esta percepção de que se está em um outro estágio da maldade contingente e substantiva, aquele em que da banalidade do estado alegado do cumprimento de ordens superiores se passa para o exercício debochado do prazer de cumpri-las.