Por Juan Mattheus Costa
Percepção de que a planta produz substâncias e efeitos diferentes entre si precisa ser de entendimento da população, apontam cientistas.
Maconha é tabu. Poucos sabem, porém, que uma das substâncias extraídas da planta, o canabidiol, simplesmente não faz parte da convenção mundial sobre substâncias psicotrópicas, aquelas que alteram o comportamento do cérebro (não é o caso do THC, que produz efeitos acentuados). Portanto, a percepção de que a maconha produz substâncias e efeitos diferentes entre si precisa ser de entendimento da população. “Quando uma pessoa faz uso do canabidiol para tratar uma epilepsia, ela não pode ser vista como fazendo algo errado. O fato de ter ‘canabi’ no nome favorece o preconceito e o medo, além do aspecto social associado à planta, que é sempre do favelado, do pobre”, diz Cláudio Queiroz, pesquisador do Brain Institute da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Uma das tentativas de romper essa barreira de ignorância é a criação do laboratório de pesquisas sobre a substância canabidiol na Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto. De acordo com dados da instituição, o projeto é resultado de parceria entre a universidade e a companhia farmacêutica Prati-Donaduzzi. O centro já tem aprovado estudo do canabidiol em seres humanos e será realizado em mais de 120 crianças e adolescentes com epilepsia refratária.
De acordo com o artigo “Perfil antipsicótico do canabidiol”, a substância presente na planta da maconha não produz efeitos alucinógenos do composto tetrahidrocanabinol (THC). “Um conjunto crescente de evidências sugere que o canabidiol apresenta potencial terapêutico para o tratamento dos sintomas de distúrbios psiquiátricos, como a depressão, a ansiedade e as psicoses”, afirma um trecho do artigo.
Queiroz explica que esse efeito ocorre porque o canabidiol estimula um sistema de neurotransmissão chamado endocanabinóide. Esse sistema só foi descoberto graças à existência da própria Cannabis, que produz uma série de substâncias conhecidas como canabinóides – o canabidiol é uma delas.
De forma paradoxal, continua Queiroz, o corpo também utiliza substâncias químicas semelhantes aos canabinóides nas transmissões do dia a dia. “Em nosso corpo existem receptores nos neurônios capazes de reconhecer a substância. Se você pegar a história da farmacologia e das drogas utilizadas na confecção dos medicamentos, é perceptível que todas elas modificam as sinapses no cérebro”. É a partir da modificação da sinapse que os efeitos são sentidos. “A sinapse é a região de comunicação entre dois neurônios, o pré-sináptico e o pós-sináptico. Quando o primeiro libera uma substância química, o segundo o recebe. Os endocanabinóides, quando ingeridos, não importa se fumados ou de outra forma, atuam sobre os receptores do nosso corpo, e essa atuação vai modificar a atividade neuronal”, explica o pesquisador. E é justamente nessa modificação que os cientistas querem focar, pois é com esse resultado que há a melhora de diversos problemas neurológicos.
Um dos pioneiros no estudo do canabidiol no Brasil é o pesquisador da Escola Paulista de Medicina (EPM/Universidade Federal de São Paulo) Elisaldo Luiz de Araújo Carlini, que iniciou os estudos em 1952. Em entrevista dada à Unifesp, Carlini conta como foram os resultados da pesquisa. “Foi o primeiro trabalho no mundo feito com essa substância, há 40 anos, aqui na EPM. Foi feito com canabidiol isolado, extraído da planta pelo professor israelense Raphael Mechoulam (que enviou a substância ao Brasil), e também com canabidiol importado da Alemanha. Primeiro verificamos se no homem ele tinha efeito tóxico. Já tinha sido testado em animais de laboratório, e não conseguimos detectar nada. Então passamos a trabalhar com pacientes epiléticos e notamos efeitos positivos. Foi um estudo piloto com oito pacientes. Eles tinham, no mínimo, uma convulsão por semana, que não era neutralizada pelos agentes antiepiléticos da época. Quatro desses pacientes tiveram melhora total e ficaram quatro meses e meio sem nenhuma convulsão. Três apresentaram alguma melhora, mas abandonaram o tratamento no meio, e um não teve melhora”, afirma o pesquisador na entrevista.
A revista Economic Botany aponta a descoberta de treze pés de cannabis em um túmulo de mais de 2 mil anos na cidade de Turpan (China). No Brasil, a cannabis era vendida até meados de 1905. A propaganda dos cigarros Grimault indicava o uso para tratamento de “asthma, catarrhos, insomnia, roncadura, flatos”.
O artigo “A história da maconha no Brasil” explica que a repressão ao uso da maconha ganhou força após a participação do delegado brasileiro na II Conferência Internacional do Ópio, realizada em 1924, em Genebra, pela antiga Liga das Nações. “Constava da agenda dessa conferência a discussão apenas sobre o ópio e a coca. E, obviamente, os delegados dos mais de 40 países participantes não estavam preparados para discutir a maconha. No entanto o nosso representante esforçou-se, junto com o delegado egípcio, para incluí-la também”.
A parte do desenvolvimento biológico em si também é prejudicada por conta dessa pouca informação. Queiroz exemplifica ao dizer que Israel e Uruguai estão avançados nesse quesito. “Os israelenses possuem cepas da cannabis que são capazes de produzir óleos canabinóides com diferentes concentrações de canabidiol e até mesmo do THC. Essa é uma nação que, ao liberar o estudo e a investigação científica, coloca-se à frente tecnologicamente do Brasil”, explica. Já sobre o Uruguai, Queiroz aponta que a mudança de pensamento sobre a produção e comercialização da cannabis de certa forma vai atrair mais tecnologia, conhecimento e empresas do ramo farmacêutico, fomentando a economia do país.
Juan Mattheus Costa é jornalista pela Universidade Federal do Amazonas e especialista em jornalismo científico pela Unicamp. Atualmente é bolsista Mídia e Ciência com projeto na Faculdade de Educação da USP.