Por Jens Ried
Medidas adotadas para enfrentar transgressões no campo científico ou evitá-las ainda são ineficientes. Um motivo para isso, certamente, deve-se ao fato de que a fraude na ciência ainda é entendida como um problema de integridade pessoal do cientista, e não como um fenômeno que tem, sobretudo, causas estruturais.
Há, sem dúvida, uma percepção crescente do problema de fraude no meio científico, bem como esforços para estabelecer e adaptar regras e códigos para boas práticas científicas. Exemplos na Alemanha são dados pela Sociedade Alemã de Amparo à Pesquisa (DFG) e, no Brasil, pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
No entanto, as medidas adotadas até então para enfrentar transgressões no campo científico ou evitá-las ainda são ineficientes. Um motivo para isso, certamente, deve-se ao fato de que a fraude na ciência ainda é entendida como um problema de integridade pessoal do cientista, e não como um fenômeno que tem, sobretudo, causas estruturais.
Não se trata de diminuir a responsabilidade pessoal de cada um dos pesquisadores e pesquisadoras, mas são as fraquezas no sistema científico que permitem as transgressões ou que possibilitam que elas apareçam como uma possível opção para atingir determinados objetivos. A falha de conduta é, portanto, também uma questão de responsabilidade pública; em um estado democrático, todos somos, sem dúvida, corresponsáveis pela forma como o sistema científico é organizado. Nesse contexto, a responsabilidade da ciência como sistema tem especial importância uma vez que, em sociedades e economias baseadas no conhecimento, a credibilidade e a confiança na pesquisa e na ciência são a base para a estabilidade não só do desenvolvimento econômico.
A multiplicidade da transgressão no campo científico
Fraudes e casos de má conduta no campo científico são múltiplas. Incluem desde a fabricação completa ou parcial de dados – como o recente trabalho da bióloga japonesa Haruko Obokata – , manipulação de resultados, pesquisas sem padrões adequados de execução e documentação, premiação ou aceitação de títulos ou financiamento sem os pré-requisitos correspondentes, plágios, autorias presenteadas, publicações duplicadas sem citação e referência à pesquisa de terceiros sem mencionar a literatura original.
Até o momento, sabe-se pouco sobre a frequência com que essas transgressões e fraudes acontecem na ciência. Estudos feitos até então sugerem que a problemática tenha considerável relevância. A pesquisa de Fang et al de 2012, que também é comprovada por outras análises (Steen et al., 2013; Moyland&Kowalczuk, 2016), traz alguns detalhes interessantes: nos últimos 40 anos, o número de publicações suspeitas de fraude e que, por esse motivo, precisaram ser retiradas, aumentou dez vezes. Contudo, esse aumento deve-se principalmente a métodos aprimorados para a identificação de fraude e à atenção dada ao assunto.
O tamanho do problema é evidente no cenário científico atual. De um total de 2.047 artigos que puderam ser incluídos no estudo, mais de dois terços (67.4%) foram cancelados por fraude ou suspeita de fraude (além de erros não intencionais e outros motivos). A maior parte dos casos vem dos EUA, Alemanha, Japão, China e Inglaterra – o que não é surpreendente quando se considera que esses também são os países com os sistemas científicos mais robustos. É importante destacar a tendência de que as retrações devido à suspeita de fraude se acumulam em revistas com alto fator de impacto (FI). Já em revistas com menor FI, as publicações duplicadas foram, na maioria das vezes, o motivo para retirada de artigos.
Fatores sistemáticos como catalisadores de transgressões no campo científico
A busca pelas causas das falhas de conduta e fraudes na pesquisa e na ciência torna-se reduzida quando fundamentada apenas na integridade dos pesquisadores e pesquisadoras. Fatores estruturais também têm um papel igualmente decisivo como catalisadores ou causas de má conduta no meio científico. Em primeiro lugar, está a pressão para publicação de artigos com resultados inovadores e excepcionais.
À medida em que a carreira acadêmica e a própria reputação científica ficam cada vez mais dependentes do número de publicações de peso e da soma de pontos FI, aumentam também a expectativa e a pressão para publicar de forma promissora, principalmente entre pesquisadores e pesquisadoras jovens. Resultados inequívocos, hipóteses não verificáveis ou outros fatores que façam com que pesquisas realizadas pareçam mal-sucedidas devem ser evitados para se alcançar as publicações de alto nível. Somada a esses aspectos está a insegurança econômica e social em diversas áreas do meio científico – entre cientistas, uma ocupação adicional é garantida somente para os casos de maior sucesso. Aqueles com um trabalho temporário devem não apenas fazer uso eficiente de seu tempo, mas também fornecer resultados positivos e relevantes para que consigam permanecer no campo científico.
Um fator que ganha cada vez mais importância é a rede de pesquisas. Quanto mais se pesquisa em redes internacionais cada vez maiores, menor é o senso crítico em relação aos parceiros de cooperação, pois os pesquisadores passam a depender uns dos outros para que obtenham sucesso. Além disso, a confiança aumenta à medida em que os cientistas realizam mais trabalhos em conjunto e estão academicamente familiarizados, o que diminui a crença de que alguém do grupo possa cometer erros de conduta e fraudes. Mesmo quando há suspeitas, essas situações são ignoradas, em vez de investigadas. Quando se considera ainda o aumento em valor econômico no campo científico (“economização”), há uma mistura de fatores que contribuem para que pesquisadores e pesquisadoras cometam transgressões e fraudes deliberadamente – conduta que é não aceitável, mas pelo menos compreensível em sua gênese.
Autorregulação do sistema científico
Além de focar em cientistas individualmente, o tratamento de casos de má conduta e fraudes no sistema científico é orientado por mais um requisito que necessita verificação: em geral, todas as organizações científicas acreditam que a prevenção e o esclarecimento de transgressões e fraudes podem ser melhor resolvidos pela autorregulação do sistema científico. Mas se essas falhas também têm causas sistêmicas, faz-se necessário questionar o alcance das competências do autogerenciamento da ciência para lidar com a situação nesse contexto.
Um olhar sobre um caso que aconteceu há poucos anos pode ilustrar esse aspecto. (cf. Bornemann-Cimenti et al., 2016). Scott S. Reuben, especialista reconhecido mundialmente pelo tratamento de dores pós-operatórias, precisou admitir em 2009 que 21 casos de estudos clínicos e projetos de pesquisas para os quais recebeu investimento e publicou resultados entre os anos de 1996 e 2008, na verdade, nunca foram realizados. Como consequência dessa revelação, 25 artigos foram cancelados. No entanto, a maior gravidade está no fato de inúmeros pacientes terem sido tratados com base nos dados fictícios publicados por Reuben.
Quanto às consequências científicas num sentido restrito, é preocupante que, cinco anos mais tarde, em 2014, cerca de metade dos artigos cancelados ainda eram citados. A invalidade do artigo foi apontada em somente um em cada quatro casos. É verdade que o número de citações diminuiu bastante e não é mais possível encontrá-las em revistas especializadas da área. Todavia, disciplinas correlatas que lidam com questões semelhantes obviamente nunca se deram conta de que a pesquisa publicada por Reuben nunca foi realizada e que, por esse motivo, não pode ser considerada como ponto de referência sob qualquer hipótese. Essa situação mostra que a autorregulação do sistema científico, sem dúvida, tem alcance limitado. Pesquisadores, revisores, sequer editores de diferentes revistas específicas parecem ter atentado para esse fato.
O que fica notório a partir desse caso é que o autogerenciamento, por si só, não é suficiente para lidar com a problemática das transgressões e fraudes. Isso fica ainda mais evidente quando novas formas de má conduta estão no foco da atenção e não envolvem a própria pesquisa em si, mas servem unicamente para o descrédito proposital de cientistas e seu trabalho.
A “tirania da opinião dominante“
O filósofo britânico John Stuart Mill identificou em sua obra On liberty que uma das grandes ameaças à liberdade – inclusive no mundo acadêmico – é a tendência para o mainstreaming. Em suas palavras: a tirania da opinião dominante:
(… ) há necessidade de proteção também contra a tirania da opinião e do sentimento dominantes; contra a tendência de a sociedade impor, por outros meios que as penalidades civis, suas próprias ideias e práticas como regras de conduta sobre aqueles que dissidem; para restringir o desenvolvimento e, se possível, impedir a formação, de qualquer individualidade que não esteja em harmonia com os seus padrões, e compelir todos a se moldarem na forma estabelecida”. (Quarto parágrafo).
Seguindo essa linha, alguns estudos recentes mostram que, no meio científico, novas formas de má conduta são encontradas diretamente contra demais cientistas que trabalham com ideias, métodos e teses bastante não-convencionais. (cf. Cabolet, 2014). Além da depreciação direta do trabalho de outros, até então rara, principalmente a unilateralidade está presente nas avaliações de manuscritos propostos. Essas, por sua vez, contribuem para que pesquisas fora do mainstream científico, ou explicitamente contra percepções dominantes, dificilmente sejam realizadas com sucesso e posteriormente publicadas com a excelência adequada.
A crítica é um elemento essencial da ciência, ela precisa e deve ser exercitada no contexto do trabalho de outros cientistas. No entanto, os critérios estabelecidos devem ser transparentes e discutidos em todos os casos. Uma “cultura de feedback” adequada, como acontece entre “amigos”, deveria ser natural, mas parece ser atualmente muito pouco estabelecida. Além disso, geralmente há pouco tempo disponível para análise de propostas e manuscritos, e uma padronização ou controle de qualidade ainda não estão em prática nessas ocasiões.
Conclusão
A autorregulação da ciência e a prevenção de casos de má conduta no meio científico necessitam de profissionalização, institucionalização e padronização. Além das organizações científicas, as autoridades públicas e atores políticos devem intervir ativamente nesse processo e garantir, entre outras coisas, transparência no debate sobre os fundamentos e a importância da ciência em sociedades baseadas no conhecimento.
Casos de transgressões e fraudes precisam ser amplamente documentados e divulgados, pelo menos os projetos de pesquisa maiores devem ser acompanhados por um comitê de ética responsável também pelo cumprimento dos padrões científicos.
Além de medidas para a prevenção de má conduta científica, também é necessário transparência nos processos para lidar com as fraudes reveladas. Exatamente nesse quesito, muitas organizações e pareceres ainda estão bem longe de uma regulamentação significativa.
Jens Ried é diretor executivo e coordenador do Center for Management, Technology and Society, Campus of Technology, Friedrich-Alexander-University Erlangen-Nuremberg, Alemanha.
Referências bibliográficas
Bornemann-Cimenti, H.; Szilagyi, I.S.; Sandner-Kiesling, A. (2016). “Perpetuation of retracted publications using the example of the Scott S. Reuben case: incidences, reasons and possible improvements“. Science and Engineering Ethics 22, 1063-1072.
Cabbolet, M. (2014). “Scientific misconduct: Three forms that directly harm others as the modus operandi of Mill’s tyranny of the prevailing opinion“. Science and Engineering Ethics 20, 41-54.
Fang, F.C.; Steen, R.G.; Casadevall, A. (2012). “Misconduct accounts for the majority of retracted scientific publications“. Proceedings of the National Academy of Sciences 109, 17028-17033.
Moylan, E.C.; Kowalczuk, M.K. (2016). “Why articles are retracted: a retrospective cross-sectional study of retraction notices at BioMed Central“. British Medical Journal Open 6, e012047.
Steen, R.G.; Casadevall, A.; Fang, F.C. (2013). “Why has the number of scientific retractions increased?“. PLoS One8. e68397.