Por Emanuel Galdino e Fernanda Pardini Ricci
O diagnóstico de uma doença, a infertilidade ou a quebra da perspectiva de uma vida idealizada podem gerar um luto que não é reconhecido pela sociedade
O bebê dorme no colo da mãe enquanto Diego Ormundo, fonoaudiólogo, analisa com cuidado os traçados na tela do exame que está realizando. Os eletrodos posicionados nas orelhas e testa da criança revelam que se trata de um teste eletrofisiológico, que mede as respostas elétricas geradas no tronco encefálico (entre a medula espinhal e o cérebro) a partir da estimulação sonora. Esse exame é utilizado no diagnóstico de perda auditiva na infância e, inclusive, foi tema da pesquisa de Ormundo em seu mestrado pela PUC-SP.
Em sua rotina profissional, Ormundo lida com expectativas e a construção de mundos presumidos e sonhados por esses pais para a vida futura dos seus filhos. Por conta disso, o diagnóstico talvez seja a parte mais difícil do seu trabalho. “Quando noto no exame que há algo alterado, eu já vou pensando em como falar com a família. Tento ser o mais sutil possível. Quero que entendam a complexidade da informação, mas sem assustá-los. Sento e vou explicando e conduzindo a conversa até que eles próprios sinalizam verbalmente que seu filho possui uma perda auditiva”, comenta.
A partir desse momento o profissional começa a observar algo que já foi muito descrito na literatura da área da saúde, tanto para a surdez infantil como para os casos de autismo, que é o luto do pós-diagnóstico, uma espécie de luto não reconhecido. “O luto começa na minha frente. O olhar da mãe para a criança muda instantaneamente. Eu vejo a criança “morrer” para a mãe ali nos braços dela. Apesar de ser fundamental, o diagnóstico é muito doloroso para a família”, conta o fonoaudiólogo.
A ideia de luto não reconhecido pode ser aplicada para diversas situações nas quais há um sentimento de perda não reconhecido socialmente. Pode envolver situações que não estão diretamente relacionadas à morte, mas que geram um trauma semelhante. Também pode se referir à morte de uma pessoa que não era um parente próximo, como um amigo, um colega de trabalho, um paciente, um terapeuta, ou até um animal de estimação. Muitas dessas situações interrompem uma realidade presumida, ou seja, algo esperado que não poderá mais acontecer, como a impossibilidade de ter filhos; um diagnóstico de uma doença que resulta na perda de habilidades como andar, falar, escutar; ou uma demissão ou aposentadoria após muitos anos de trabalho em um mesmo local. O problema da falta de validação é que a formalização e os rituais associados ao luto contribuem para a elaboração da situação, e sua ausência pode tornar esse processo muito mais difícil.
O termo foi estabelecido na década de 1980, nos Estados Unidos, pelo professor de psicologia e especialista em luto, Kenneth J. Doka. Após ouvir um depoimento de uma senhora sobre as dificuldades em lidar com a morte de seu ex-marido, Doka começou a ouvir vários depoimentos de pessoas com queixas semelhantes. A senhora em questão relatou que, embora estivesse profundamente sensibilizada por essa morte, as pessoas não reconheciam sua dor. Achavam que ela estaria feliz, ou se sentindo vingada, já que a separação tinha envolvido uma traição por parte de seu ex-marido. Para poder comparecer ao funeral foi necessário que ela tirasse uns dias de férias, pois não havia nenhuma política na empresa que permitisse a ausência para o funeral de um ex-marido.
Não apenas oficialmente, mas também socialmente, somente a morte de um parente próximo justifica a ausência no trabalho e o recebimento de apoio e consolo de amigos e parentes mais afastados. Na prática, as pessoas formam vínculos emocionais que se expandem muito além desse pequeno círculo. De acordo com a psicóloga Juliana Correia, “há lutos que são reconhecidos, que são esses que a nossa sociedade dá espaço, valida e diz ‘é justo que você sofra por isso’. Os lutos não reconhecidos são os que não têm lugar para ter voz, que são minimizados porque a gente não entende que se fala de uma perda”.
Luto da infertilidade
Para Correia, o luto está associado à quebra de um mundo presumido. A psicóloga, co-criadora do blog Quando a árvore não dá fruto, que tem o objetivo de apoiar e orientar mulheres que não podem engravidar, explica que, no caso das mulheres, desde muito cedo são socializadas na expectativa de serem mães. A própria ideia de feminilidade está culturalmente associada à de fertilidade. Assim, a incapacidade de engravidar rompe com essa expectativa. Isso pode levar a uma raiva contra o próprio corpo, uma sensação de falha. Muitas vezes esses sentimentos não são compreendidos, ou são minimizados pelas outras pessoas que, tentando ajudar, podem acabar aumentando a culpa com frases do tipo: “não era para ser”; “quando você relaxar acontece”; “tem tanta criança precisando ser adotada”.
Atualmente, as inúmeras possibilidades de fertilização artificial podem ser uma solução, mas também uma forma de prolongar esse processo caso a gravidez não se concretize. Nesses casos, é importante o acompanhamento de um psicólogo para ajudar a decidir quando parar. Mesmo que se opte por adotar uma criança, ainda é necessário elaborar o luto de não gerar um bebê, de não ter aquela criança idealizada com as características dos pais. Em todos os casos, é sempre importante fornecer a oportunidade para essas mães e pais expressarem sua dor, suas angústias, que vão variar a cada caso.
“A primeira coisa que trabalhamos no luto não reconhecido é justamente validar que isso é um luto, para que a pessoa enfim encontre um lugar para essa dor. Porque, até então, ela se sente completamente sozinha”. Para a psicóloga, uma das consequências do não reconhecimento do luto é que, no funcionamento psíquico, é muito difícil uma pessoa se permitir sentir algo quando acha que não há uma razão para tal. Com isso, ficam soltos, sem direção, todos esses sentimentos de falha, de frustração e de culpa. Isso pode causar desamparo, angústia, depressão e, dependendo da situação, acabar virando uma doença. A mesma lógica pode ser aplicada ao luto de uma mãe que perde um bebê durante a gestação.
Um dilema cíclico
Quando o fonoaudiólogo Diego Ormundo fecha o diagnóstico de surdez da criança, inicia uma conversa breve com a família sobre o tratamento e possíveis caminhos. Nesse processo, podem se deparar com o trabalho realizado pelo Instituto Escuta, uma ONG especializada em fazer o acolhimento e intervenção na família. A psicóloga Carla Rigamonti é diretora clínica do Escuta e analisa que, segundo a literatura científica, o diagnóstico da deficiência é quase sempre acompanhado por um trauma, seguido pela necessidade de elaboração desse luto. Segundo Rigamonti, é um momento para entender e processar que o filho desejado e sonhado, para quem a família fazia planos para o futuro, possui uma deficiência e que será preciso olhá-lo na condição em que ele está atualmente, com projeções ou expectativas adequadas.
“É quase uma saudade de uma possibilidade. Uma idealização do que teria sido”, reflete Rigamonti. “Mas a negação também pode ocorrer, uma dificuldade de se apropriar. Nesse caso não há luto porque a família não está trabalhando com a realidade. E como a gente faz o manejo desse luto? Eu diria que é respeitando o momento da família”, analisa a psicóloga.
Rigamonti ressalta que uma das características desse luto é que ele reaparece ciclicamente na vida das famílias de crianças surdas. Esses episódios, no qual o luto volta, ocorrem geralmente em diferentes fases do desenvolvimento dos filhos. “Eventualmente a criança está em um momento em que há dificuldade, como o da alfabetização, por exemplo, ou o momento do desfralde, em que volta essa questão na família”, exemplifica.
Também pode ser uma questão social
As projeções e expectativas em relação aos filhos são contrariadas em casos do diagnóstico de alguma deficiência ou patologia, mas também são contestadas por motivos sociais, como o preconceito, o machismo e a perpetuação de padrões heteronormativos, por exemplo. Essa é uma experiência comum dentro da comunidade LBGTQIA+ que sente uma forma de luto por não se encaixar em padrões sociais hegemônicos. Vinicius Schumaher de Almeida é psicólogo e um dos autores do capítulo “O luto em famílias de indivíduos que fogem aos padrões heteronormativos”, do livro Luto por perdas não legitimadas na atualidade. Almeida analisa que é preciso prestar atenção a esse luto porque, em primeiro lugar, essas pessoas já vivenciam processos complexos de definição de sua identidade.
Almeida analisa que esses indivíduos vivem em uma perda ambígua. O termo perda ambígua foi cunhado na literatura científica do luto pela pesquisadora Pauline Boss e representa “um conjunto de sentimentos que ocorrem quando perdemos alguém de quem gostamos e não há qualquer tipo de resolução ou desfecho possível para esses sentimentos”, explica o psicólogo. O que ocorre, no entanto, segundo Almeida, é a perda da identidade heteronormativa para posterior nascimento da pessoa LGBTQIA+. “Muitas vezes o mundo psíquico dos indivíduos LGBTQIA+ não corresponde àquilo que ele idealizou ou que a sociedade heteronormativa validou ou reconheceu para ele. Ele se sente diferente e precisa passar por um processo de aceitação e de entendimento da sua sexualidade”, explica Almeida.
No caso das famílias, a idealização em relação ao gênero começa já nos hoje populares chás de revelação, na escolha das primeiras roupinhas que serão usadas ao sair da maternidade (azul ou rosa?) e até mesmo na escolha da futura profissão (jogador de futebol, por exemplo). De acordo com Almeida, trata-se da padronização heteronormativa.
Os pesquisadores do campo também distinguem o luto, do preconceito. Segundo Almeida, o luto trará reações esperadas para uma situação de rompimento, como a quebra da expectativa sobre um filho idealizado. Quando há preconceito, por outro lado, não há diálogo, a família não quer ter contato com o tema.
Para lidar com a situação, o psicólogo aposta nas redes de apoio mais fortalecidas e em uma melhor compreensão da sociedade sobre esse processo. “Normas e regras engessam, paralisam e invalidam a dor de todo esse processo”, avalia Almeida. Para ele, “ser e estar em um mundo onde eu me sinto minoria, desprotegido e minha dor não é validada é ainda mais doloroso. Estar junto, validar a dor, chancelar as diversas formas de amar fazem com que o indivíduo evolua e se expresse, se tornando um ser humano permeado por toda sua dignidade e aceito tal qual ele é. Dessa forma, o processo de luto será muito melhor elaborado”.
Emanuel Galdino é jornalista, mestre em ciências humanas e sociais, doutorando em sustentabilidade (USP). É aluno da especialização em jornalismo científico (Labjor/Unicamp)
Fernanda Pardini Ricci é bióloga, mestre em educação (USP). É aluna da especialização em jornalismo científico (Labjor/Unicamp)