Por Marcelo Fischborn
Quando um atleta tenta saltar sobre uma barra, dois fatores são cruciais para determinar se o salto será bem-sucedido: a altura em que a barra está posicionada e a capacidade de salto do atleta.
Perguntar se os seres humanos têm livre-arbítrio é como perguntar se são capazes de saltar sobre o que podemos chamar de uma “barra da liberdade”. Para saber se somos capazes de saltar sobre essa barra, precisamos saber a que altura se situa e quão alto somos capazes de saltar.
A história da filosofia – e a história recente da psicologia e da neurociência – é repleta de disputas sobre nossa capacidade de saltar sobre a barra da liberdade. Algumas dessas disputas se dão entre os que buscam elevar ou abaixar a barra. Outras delas se dão entre os mais e os menos otimistas a respeito do potencial de salto humano. Um veredito, mesmo que preliminar, sobre se temos ou não livre-arbítrio, depende de considerar em algum detalhe esses dois tipos de discussão.
Discussões sobre a altura em que a barra da liberdade deve ser posicionada dizem respeito ao significado da palavra “livre-arbítrio”, às condições que uma pessoa precisa satisfazer para que suas decisões e ações contem como “livres”. Dependendo de quão exigentes são essas condições, a barra da liberdade é situada a uma maior ou menor altura.
Um exemplo ajudará a identificar algumas das condições que tendem a elevar a barra da liberdade. Imagine que, numa certa manhã, eu receba uma mensagem de meu serviço de e-mail dizendo que seus servidores foram atacados e que, por isso, uma atualização de minha senha de acesso é recomendável. Eu recordo que li uma notícia sobre o roubo de grandes quantidades de dados de várias empresas do setor e, por prezar por minha privacidade, concluo que seria bom atualizar minha senha. Assim, sigo as instruções da mensagem e sou redirecionado a uma página em que informo a senha antiga e crio uma senha nova. Imaginemos, no entanto, que haja um detalhe oculto na história. Sem que eu pudesse suspeitar, a mensagem que recebi era fraudulenta. Sua origem não era meu serviço de e-mail, mas um golpista que desejava obter minha senha atual para propósitos escusos. E, assim, o que de fato fiz não foi atualizar a senha, mas entregá-la ao golpista.
Deveríamos dizer que, no caso imaginado, entreguei minha senha ao golpista livremente? Essa pergunta ajuda a pensar sobre alguns dos requisitos que decisões e ações precisam satisfazer para contarem como livres. Por exemplo, não parece razoável dizer que forneci minha senha ao golpista livremente, pois parece que a ação fugiu ao meu controle. Afinal de contas, só fiz o que fiz devido ao sucesso da manipulação a que fui submetido. Ao acreditar no que me induziu a acreditar, parece que ele teve um controle maior do que eu mesmo tive sobre a minha ação. Assim, que o agente tenha, ele mesmo, algum grau de controle sobre sua ação (e não algum agente externo) parece ser uma primeira condição que ações e decisões precisam satisfazer para serem livres.
A situação imaginada também permite pensar sobre uma segunda exigência da liberdade. Podemos dizer que eu não estava ciente de que se tratava de uma tentativa de roubar meus dados – eu não tinha consciência de que, ao atualizar a senha, estava na verdade fornecendo minhas informações a alguém mal-intencionado. Em outras palavras, minha ação de entregar os dados ao golpista não parece ter sido livre porque eu não estava ciente de que estava justamente entregando os dados a ele. Assim, além do controle sobre a própria ação, a consciência dos fatos relevantes parece ser um requisito adicional da liberdade.
Voltando à metáfora do salto em altura, as exigências de que o agente controle a ação e tenha consciência de fatos relevantes empurram a barra da liberdade para cima. Elas exigem mais daqueles que pretendem saltar sobre a barra e, por isso, aumentam as chances de fracasso. Na disputa sobre onde a barra deve ser posicionada, no entanto, também atuam considerações que empurram a barra para baixo. Essas considerações giram em torno da responsabilidade moral.
Contrariamente ao controle e à consciência, que tornam mais difícil alcançar a liberdade, a responsabilidade moral aproxima a barra da liberdade de nós. Comumente, entendemos o livre-arbítrio como algo que é uma condição necessária para a responsabilidade moral. Em outras palavras, a liberdade é algo que permite que seja adequado responsabilizar alguém por suas ações. Sendo assim, se for, em geral, adequado responsabilizar-nos pelo que fazemos, o livre-arbítrio precisa ser algo que esteja, em geral, ao nosso alcance. Isso equivale a dizer, seguindo nossa analogia, que a marca da liberdade não pode ser mais alta do que a marca da responsabilidade.
Se uma pessoa é moralmente responsável por uma ação, então é adequado responder-lhe de algumas maneiras características que dependem do valor de sua ação. Por exemplo, imaginemos que alguém coloque para tocar uma música em volume alto, às 5h30 da manhã de um domingo, quando sabe que a maioria de seus vizinhos está dormindo. Dizer que essa pessoa é responsável por ter feito o que fez implica que seus vizinhos estão autorizados a expressar desaprovação: um vizinho estaria legitimado a pedir que a pessoa desligue a música (talvez com indignação) e um síndico estaria justificado a emitir uma notificação ou mesmo uma multa pelo ocorrido. Essas reações não pareceriam adequadas se a pessoa não fosse moralmente responsável pela ação – as mesmas reações não seriam aceitáveis, por exemplo, se a pessoa fizesse o alarme de seu carro disparar acidentalmente, ainda que isso ocorresse no mesmo horário e perturbasse igualmente seus vizinhos. Ser moralmente responsável também envolve poder ser elogiado ou gratificado por boas ações. Por exemplo, agradecemos quando um vizinho nos ajuda a abrir a porta para que passemos carregando nossas compras ou quando nos avisa que esquecemos os faróis do carro acesos.
O fato de que estejamos prontos para agradecer, elogiar, criticar, condenar, repudiar e mesmo exigir a punição de outras pessoas indica que estamos dispostos a encará-las como moralmente responsáveis por suas ações. Assim, se só é adequado responsabilizar quem agiu livremente, também temos de estar dispostos, sob pena de sermos incoerentes, a encarar a maior parte das pessoas como capazes de exercer o livre-arbítrio. Essas considerações, portanto, parecem implicar que a barra da liberdade tem de estar situada a uma altura que nos seja alcançável, pelo menos em boa parte das circunstâncias em que realizamos escolhas e ações.
Deixemos de lado por um momento a barra da liberdade e concentremo-nos em nós próprios, isto é, naqueles que precisam saltar sobre ela. Quão alto somos capazes de ir? Esta questão é uma segunda fonte de discussão sobre se temos ou não livre-arbítrio.
Alguns resultados em psicologia e neurociência parecem sugerir que temos capacidades limitadas de controle e consciência sobre o que fazemos. Consideremos o chamado “efeito do observador”. O efeito do observador, em sua versão original, prevê que, em uma situação em que alguém precise de ajuda (por exemplo, por estar sofrendo um ataque), a nossa propensão a ajudar será inversamente proporcional ao número de pessoas que pensamos também estarem cientes do ocorrido. É como se a presença de observadores reduzisse nossa propensão a ajudar, fazendo com que a disponibilidade de mais pessoas diminua, ao invés de aumentar, as chances de que alguém necessitado receberá ajuda. Estudos mais recentes retratam uma situação mais sutil e complexa, dizendo que, de fato, a presença de mais pessoas diminui a propensão a ajudar, mas que essa redução é pequena no contexto de emergências graves. Assim, podemos imaginar que, com mais gente por perto, uma pessoa necessitada teria maiores dificuldades para receber ajuda para atravessar a rua do que para se defender de um assaltante. Dito de outro modo, o efeito do observador existe, mas é mais fraco em alguns contextos do que se pensou inicialmente.
O efeito do observador, a despeito de sua abrangência e força, é apenas um dos muitos estudos empíricos que sugerem que nossas capacidades de controlar conscientemente nossas decisões e ações são mais modestas do que poderíamos esperar. Esses estudos sugerem que fatores que nos são externos influenciam nossas escolhas e ações sem que tenhamos consciência de sua atuação. Assim, dado que o controle e a consciência são alguns dos requisitos para o exercício do livre-arbítrio, os resultados desses estudos são a origem de suspeitas sobre nossa capacidade de alcançar a marca da liberdade.
O terreno, no entanto, é novamente fértil para disputas. Pois há também vários estudos que evidenciam nossa capacidade de exercer controle consciente sobre nossas ações. Um exemplo são as descobertas sobre as intenções de implementação. Quando consideramos um objetivo –digamos que seja realizar exercícios físicos regularmente – podemos desenvolver a intenção de realizá-lo. Essa intenção talvez nos apareça como uma frase mental “Pretendo realizar exercícios físicos”. Esse é um tipo convencional de intenção. Acontece que também podemos formar intenções de um tipo mais sofisticado, intenções que detalham as circunstâncias e a maneira em que o objetivo será realizado. Seguindo com o mesmo exemplo, uma intenção de implementação poderia expressar-se como “Quando chegar a manhã de sábado, colocarei a roupa adequada e sairei para uma caminhada”. Estudos sobre as intenções de implementação dão indícios fortes de que, ao vincularem a realização do objetivo com o contexto de sua realização, elas são muito mais efetivas em levar à realização da ação planejada do que intenções convencionais. Um desses estudos teve como participantes mulheres que desejavam realizar o autoexame de câncer de mama. No intervalo de um mês, todas as participantes que foram instruídas a formar uma intenção de implementação fizeram o autoexame. Em contraste, apenas a metade das participantes que formaram apenas uma intenção convencional realizaram o autoexame.
Em oposição ao efeito do observador, o estudo das intenções de implementação sugere que nosso esforço mental consciente pode aumentar o controle que exercemos sobre nossas ações. Assim, enquanto o efeito do observador sugere que nossa capacidade de saltar sobre a barra da liberdade está diminuída em alguns casos, as intenções de implementação sugerem que tal capacidade está aumentada em outros. Seguindo com a analogia do salto em altura, intenções de implementação podem funcionar como um treinamento físico, que aumenta o potencial de salto do atleta e, consequentemente, suas chances de saltar sobre uma dada marca.
Temos ou não livre-arbítrio, afinal de contas? O exercício reflexivo empreendido até aqui pode não nos dar uma resposta definitiva, mas ajuda a mostrar o que está em jogo na tarefa de responder à pergunta. Assim como o saltador pode falhar tanto em virtude de suas habilidades de salto como da altura a que a barra está situada, também nós podemos ser incapazes de alcançar o livre-arbítrio tanto em virtude da altura em que o colocamos quanto das capacidades que nós mesmos temos. A disputa sobre se temos livre-arbítrio é tão fértil à controvérsia porque resulta da confluência de duas outras disputas, uma sobre quais são os requisitos para a liberdade e outra sobre nosso potencial de satisfazê-los.
Apesar das disputas permanecerem, é importante que não foquemos apenas naquelas considerações que afastam a liberdade de nós. Ao contrário do que a divulgação da pesquisa sobre o assunto costuma enfatizar, temos boas razões para pensar que há uma capacidade digna do nome “livre-arbítrio” que estamos em condições de exercitar. Em primeiro lugar, estamos interessados em um tipo de liberdade que seja um requisito para que as práticas de responsabilização sejam moralmente aceitáveis; é a isso, pelo menos, que os teóricos almejam. E, dado que não consideramos as práticas de responsabilização completamente imorais – ao contrário, entendemos que sejam parte integral da busca por justiça – resta-nos situar a barra da liberdade em um nível que não seja inalcançável para a maioria de nós. Em segundo lugar, apesar da investigação empírica mostrar que temos limitações, ela também indica caminhos para superá-las e mesmo para aumentar o controle que exercemos sobre nossas próprias ações. Assim, estamos autorizados a pensar que o livre-arbítrio está ao nosso alcance – ou, ao menos, para pensar que esta possibilidade segue viva na discussão.
Marcelo Fischborn é professor de filosofia do Instituto Federal Farroupilha, Campus Uruguaiana. Realizou sua formação na Universidade Federal de Santa Maria (licenciatura, mestrado, doutorado e pós-doutorado em filosofia) e na Florida State University (doutorado sanduíche). Este trabalho foi escrito durante o estágio pós-doutoral, que foi financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (Fapergs).