Por Lívia Mendes Pereira
Convergências entre África, Brasil e Portugal estão presentes em obras contemporâneas
Atualmente o português é língua oficial de aproximadamente 260 milhões de pessoas, considerada a quarta mais falada no mundo. Alçada à língua literária desde Camões, de Portugal atravessou oceanos e se transformou em “línguas portuguesas”, no plural, e hoje expressa a produção literária de diversos países lusófonos, incluindo seis no continente africano. Essa expressão artística lusófona na África é objeto de várias pesquisas no Brasil, que identificam profundas relações entre os países.
A língua torna-se pátria por sua importância na constituição dos sujeitos sociais de uma comunidade. Ela é parte importante da unificação de uma nação, associada sempre a outros elementos, como a questão histórico-social ou o espaço geográfico. Funcionando como um objeto simbólico, que precede os sujeitos e os constituem, também é um importante elemento caracterizador da cultura letrada de uma nação, ou seja, marca principal da constituição de uma literatura nacional. A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa é constituída por Portugal, Brasil, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste. Dos nove países, seis estão no território africano e compõem entre si um grupo de cooperação regional denominado Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (Palop), que se organizam diante de várias temáticas como cultura, educação e economia.
A língua portuguesa enquanto expressão literária passou por diferentes contextos históricos nas nações africanas, dado o longo período de colonização, por mais de 500 anos. Apesar de se constituírem em comunidades étnico-linguísticas totalmente diversas, depois de livres algumas optaram pelo português como língua oficial por uma questão política, de possibilidade de unidade nacional ou cooperação técnico-científica e cultural com os outros países lusófonos.
Como apontado em entrevista por Eliana da Conceição Tolentino, professora da Universidade Federal de São João del-Rei, “as literaturas africanas escritas em língua portuguesa são literaturas africanas”, ou seja, utilizam a língua do colonizador para se expressarem artisticamente e, sendo a língua expressão de culturas, esses países promovem intervenção e mesmo subversão nessa língua. A professora lembra que há um tempo algumas editoras com maior acesso ao mercado brasileiro usavam do recurso do glossário no final dos livros, o que atualmente não vem mais acontecendo. Dessa forma, “a intervenção ou subversão na língua já se configura como uma proposta de problematização história-ficção, afinal, é na língua que o povo se apresenta e se expressa”, enfatiza.
Diante da tríade história-teoria-ficção, Eliana recomenda que os pesquisadores busquem “a compreensão da cosmogonia das Áfricas”, pois a leitura teórica dos textos de ficção “necessita de um diálogo com teóricos que tenham seu lugar de fala e de origem nas Áfricas” e que voltem o seu olhar “para as questões das consequências de colonizações de culturas antes hegemônicas”.
Mulheres escritoras
Um ponto de contato interessante entre as literaturas africanas lusófonas com sua ex-metrópole, Portugal, é destacado por Larissa Fonseca e Silva, doutoranda em Literatura Portuguesa na USP, a partir de seus estudos da literatura escrita por mulheres que nasceram ou viveram na África, mas se definem como escritoras portuguesas. Em livros como O retorno (2012), de Dulce Maria Cardoso (que passou parte da infância em Angola), e em duas obras de Isabela Figueiredo (nascida em Moçambique), Caderno de memórias coloniais (2009) e A gorda (2016), é possível visualizar a figura dos “retornados”, termo que identifica os ex-colonos portugueses que, com as retaliações e guerras civis que se seguiram às guerras de libertação, procuraram abrigo em Portugal.
Larissa destaca que no romance A gorda, por exemplo, há uma discussão sobre o machismo e a gordofobia entremeada pela existência retornada em Portugal, na figura da protagonista Maria Luísa. Segundo a pesquisadora, nas três obras há o retrato do “entrelugar dos retornados”, depreciados no que se convencionava chamar a metrópole, mesmo que boa parte dessa depreciação partisse também do racismo daqueles que não saíram de Portugal. Ela reforça que esse contraste entre a cultura africana e a portuguesa pode ser observado a partir de símbolos, como a imagem da “mancha”, questão discutida em artigo escrito por ela e por Tolentino.
Relações com o Brasil
Esse percurso marcado pelo processo de descolonização presente na literatura africana lusófona relaciona-se também com o contexto brasileiro. Como indicado por Jorge Valentim no livro Pelas margens do Atlântico e do Índico: ensaios sobre as literaturas africanas de língua portuguesa (UEA, 2012), a “margem” presente nessas literaturas são expansíveis e recuperam um contato físico entre territórios e oceanos que as circundam, a partir de um contato reflexivo entre as produções literárias em África, Ásia e América do Sul. Nelas estão manifestas uma frágil tentativa de equilíbrio entre modernidade e tradição, diante da necessidade de se repensar as identidades culturais.
Dois autores africanos lusófonos, por exemplo, possuem atualmente notável relação com o Brasil: o escritor e jornalista angolano José Eduardo Agualusa, colunista do jornal O Globo, e o escritor e poeta moçambicano Mia Couto, agraciado com o Prêmio Camões em 2013.
Segundo Danuza de Lima, professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP – Avaré), boa parte das produções de Agualusa “tem a história e a identidade como questões fulcrais”. Danuza observou em suas pesquisas de mestrado e doutorado que Agualusa promove em suas obras “uma identidade cultural heterogênea, multifacetada, mestiça e crioula”. Daí surge o conceito de “crioulidade angolana” que, segundo a pesquisadora, levanta diversas questões sociais que atravessam o território angolano, ou seja, “relações rácicas e políticas advindas dos conflitos históricos em torno do colonialismo”. “Agualusa não ameniza o processo de violência das hibridações das culturas em Angola durante o processo da colonização, pelo contrário, em seus enredos essas questões aparecem constantemente figuradas e interferem diretamente em suas construções de histórias, personagens e espaços”, diz.
Esse processo histórico também não fica de fora dos enredos de Mia Couto, que esteve recentemente no Brasil lançando seu novo livro de contos, As pequenas doenças da eternidade. Em seu romance Terra Sonâmbula, Mia explora a diversidade linguística de Moçambique, país com mais de trinta línguas faladas no cotidiano, e as representa como uma espécie de sonambulismo, uma viagem permanente entre entidades diversas.
Em conferência na 22ª Feira do Livro de Ribeirão Preto, mediada pela escritora Aline Bei, Mia contou muitas histórias ligadas a seus enredos pessoais e familiares e de outros moçambicanos, sempre enaltecendo sua terra natal. A professora de língua inglesa e mestra em linguística Lia Pucci esteve no evento e relatou como ficou evidente na fala do escritor a importância dos elementos da natureza na construção de suas narrativas e na cultura moçambicana.
Chamou a atenção da linguista a lembrança do poeta brasileiro Manoel de Barros pelo autor moçambicano, ao enfatizar que para ele: “ver a beleza da vida nas miudezas do cotidiano é o que podemos fazer de mais assertivo durante nossa existência terrestre”. Essa percepção das miudezas da vida passa evidentemente pela linguagem, que é diversa e múltipla, tanto em Moçambique quanto nas nações africanas lusófonas. Como evidenciou Mia, essa mistura de idiomas é a chave para sua percepção da vida, da poesia e das histórias.
Lívia Mendes Pereira é doutora em linguística (Unicamp) e cursa especialização em jornalismo científico pelo Labjor/Unicamp