Por Carlos Vogt
O Brasil é um país de forte vocação internacional, tanto pelo que desperta no outro, no estrangeiro, quanto pelo que o outro desperta no nosso olhar: curiosidade, interesse, humildade formal, cordialidade e disponibilidade para a atenção e o apoio nas situações mais fáceis do cotidiano dos estranhamentos.
Tudo isso tem a marca da afeição apaixonada e quem diz paixão, diz, é claro, amor e ódio com a mesma intensidade, a mesma obstinação e, porque não dizer, a mesma volatilidade que caracteriza muitas vezes os impulsos derramados.
O homem cordial que Sérgio Buarque de Hollanda tão bem identificou em Raízes do Brasil não é, pois, portador do atributo de bondade substantiva com que o brasileiro passou a ser caracterizado na mitologia de nossa identidade.
A cordialidade, entretanto, é uma categoria sócio-psicológica que se opõe, num eixo à indiferença, em outro à particularidade da ocorrência do amor como simpatia, em outro ainda à particularidade negativa da ocorrência do ódio como antipatia e que é também implicada, como disjunção, pelas categorias universais do amor e do ódio, contrárias entre si.
Algo assim, que a figura abaixo, baseada no hexágono lógico de Robert Blanché representa:
O homem cordial é, assim, capaz do bem e do mal, impulsivos e apaixonados, da mesma maneira.
Essa impulsividade nos torna, pois, universais e particulares a um só tempo, sob a forma de um paradoxo que constitui, de certo modo, um paradigma de explicações de como nos olhamos, de como nos vemos, de como olhamos para o outro e de como gostaríamos de por ele ser olhados.
A universalidade do país é um predicado de qualidade que supõe a implicação de particularidades sobre as quais se assenta a sua identidade. A língua portuguesa é uma delas.
Falada em toda a extensão do território com grandes variações regionais, mantendo, contudo a sua identidade estrutural e lexical, a língua portuguesa é uma língua universal sendo também, em seu grau próprio, uma língua internacional.
O poeta Fernando Pessoa no livro Língua portuguesa faz a distinção entre línguas universais e línguas internacionais e, grosso modo, propõe essa diferença de qualidade que caracteriza as primeiras e de quantidade, as segundas. É a riqueza expressiva e cultural que torna as línguas universais; é a quantidade de povos e o sem-limite de fronteiras nacionais que as torna mais ou menos internacionais em diferentes momentos da história política e econômica de seus países de origem.
Hoje, a mais internacional das línguas é o inglês, mas já foi o francês, o alemão, o italiano, o espanhol, o latim. Há variações de grau, mas o que as caracteriza como internacionais é que são línguas de comunicação, línguas francas, línguas de comércio para os fins específicos dos intercâmbios necessários nos mais diferentes campos da atividade do homem. Constituem, nesse sentido, recortes pragmáticos da estrutura e do vocabulário, muitas vezes vastíssimo da língua universal, como é o inglês, que lhes deu origem.
O português é, pois, uma língua universal e, num certo grau, uma língua internacional falada em países de pelo menos três continentes por uma população de mais de 200 milhões de habitantes.
A língua portuguesa que por aqui já foi chamada de brasileira é um aspecto da internacionalidade do Brasil extremamente importante como marcador de condutas e de comportamentos intelectuais, institucionais e políticos de nossa brava gente.
Tanto é assim que é ela que nos tensiona de um lado em direção ao norte, apontando para Portugal, para nossas origens, para os totens de nossa afirmação e, de outro, para o leste, para a África, para a necessidade de atendermos ao apelo da consciência histórica que nos leva à busca constante da solução do dilema histórico da escravidão ainda não resolvido e para sempre inscrito como anátema de nosso próprio desterro dentro e fora de nós mesmos, fora e dentro de nosso próprio país.
É a língua portuguesa, assim internacionalizada, que produz, pela aproximação anelada, a estranheza de uma geografia internacionalmente estranhada na sua afirmação de cordialidade extrema e cujo nome é ardente de desejos de conteúdos: Palop.
Os países africanos de língua oficial portuguesa são, desse modo, um dos pontos imantados das relações internacionais do Brasil. Outro é Portugal, a França, a Europa, não necessariamente através do primeiro e por meio da língua que nos é comum.
Por imperativos econômicos e políticos o ponto cardeal de fixação da agulha da bússola dessas relações é, como para todos os países do mundo globalizado, os EUA. Também pelas mesmas razões, mas numa ordem de fatores diferente e que altera o produto, o continente latino-americano, em especial os países do Mercosul, Argentina principalmente, constituem outro foco das atenções internacionais do Brasil.
Mas voltando à língua portuguesa e ao seu papel constitutivo da universalidade e da internacionalidade da vocação brasileira de ser e não ser (tupi or not tupi) mais que o gigante adormecido em berço esplêndido, há episódios, – alguns recentes -, que ilustram bem as tensões marcadas pela língua na cultura de nossos desacertos.
Dois deles merecem atenção. O primeiro está relacionado com o projeto do deputado Aldo Rebelo visando à criação de escudos legais da língua portuguesa contra os avanços dos estrangeirismos linguísticos, em especial do inglês nos usos cotidianos de expressões e designativos da realidade sócio-econômico-cultural e política da imersão ou do afogamento global em que estamos metidos.
Tratei do assunto em outra oportunidade aqui mesmo na ComCiência (ver “Português e Esperanto-Inglês”, ComCiência, n. 24, agosto de 2001). Continuo a pensar que leis dessa natureza existem em vários países e que não vale a pena execrá-las. Antes, é melhor aperfeiçoá-las e regulamentá-las dando-lhes o mínimo de operacionalidade inteligente, se é que de fato isso é possível.
A maior defesa da língua está no seu poder de cultura, na sua variedade, na sua vivacidade, no orgulho carinhoso que sentimos ao falá-la, ao escrevê-la, como se degustássemos mel, vinho, néctar, amor novo e renovado. Está na sua literatura, nos versos de suas músicas, na poesia, nos jornais, nas revistas, nas cartilhas, nos livros didáticos, no cinema, na conversa fiada, na crítica, nos discursos, nos monólogos, nos diálogos, nos solilóquios, nas confissões, nos murmúrios, na retórica política, nos rituais, nas cerimônias, nos silêncios curtos e prolongados em que fala a sua lembrança.
O entendimento de que a internacionalidade consistente do país supõe a universalidade de sua língua e as particularidades de seu uso social e cultural diversificado é a defesa de qualidade mais eficaz da língua portuguesa e a condição para um bom desempenho de destaque no cenário do concerto das nações.
Esse entendimento – e aqui vamos para o segundo episódio a que acima eu me referia – deve, contudo, evitar a caricatura dos gestos nacional-populistas que, às vezes, quando não muitas, formam a vertigem da sedução dos dirigentes para consigo mesmos.
O Itamaraty, responsável pelos programas de formação de quadros para o exercício das políticas de relações exteriores, dispensou, recentemente, o inglês como obrigatório para a admissão e a formação pelo Instituto Rio Branco dos estudantes e profissionais da carreira diplomática.
Decisão no mínimo estranha, sobretudo se motivada pela alegação de assim se evitar ou diminuir o elitismo de uma das instituições brasileiras que gozam de mais respeito e credibilidade no cenário internacional.
A soberania das línguas está ligada à soberania das nações que constituem seu berço de origem e o ponto de referência de sua expansão.
O latim e o império romano são bons exemplos desse fenômeno. A coiné adotada pelos gregos e por habitantes de outros países da parte oriental do mediterrâneo no século IV a.C. é uma língua comum (Koiné diálektos) baseada no dialeto ático e que cumpria, desse modo, também funções de comunicação internacional. O swahili, na África, no período de grande expansão colonialista no século XIX, conheceu também motivações instrumentais de origem parecidas até constituir-se como língua de funções plenas e complexas. A literatura trovadoresca expressava-se num idiomatismo do galego-português que permaneceu como código literário até o século XVI em Portugal.
O inglês, desnecessário dizer, é uma das línguas mais ricas do mundo, em vocabulário e expressão. É uma língua universal. Como o coiné, sobre uma pequena parte dessa língua constituiu-se uma língua franca de comunicação internacional que se expandiu com a expansão econômica, política, cultural e militar dos EUA a partir da 1ª guerra mundial e que foi se diversificando aqui e ali para atender as necessidades idiomáticas dos grupos sociais e profissionais que a foram adotando para uso de comunicação. É o caso, por exemplo, do mundo científico, como é também o caso da diplomacia.
Desse modo, o inglês é indispensável para o bom exercício das relações internacionais como o é também para a eficácia da comunicação científica. Nem por isso o seu uso dispensa o português como também não podemos, nós brasileiros, sermos dispensados de nossa cultura, sob pena de perdermos a liga, o rejunte do mosaico de nossa identidade. A universalidade da língua portuguesa e a particularidade de seus usos ricos variados são, nesse caso, como disse, condições da afirmação da imagem do país, para dentro e para fora.
Usar o inglês, ou o espanhol, segunda língua de comunicação de nossa época, como instrumentos de negociação, de intercâmbio de ideias ou de mercadorias não substitui a função poética da língua portuguesa no Brasil, esta sim calcada na vivência social e cultural de práticas não apenas instrumentais, mas lógico-afetivas de cordialidade e razão.
Publicado originalmente em: Vogt. C. “Língua e relações internacionais”. ComCiência. Abril de 2006