A partir de algo que desagrada um grupo de pessoas – uma denúncia de agressão, por exemplo, ou um comentário preconceituoso – elas se juntam, em uma explosão súbita, para linchar o acusado por meio de posts nas redes sociais, que começam a receber curtidas, comentários e a serem compartilhados. No linchamento virtual nem sempre há a violência física concretizada, mas uma violência moral e psicológica que afeta a vida pessoal e profissional da pessoa
Por Janaína Quitério
Quem assistiu ao episódio 2 da segunda temporada de Black mirror – série britânica produzida pela BBC a partir de 2011 e, agora, disponível na Netflix – talvez tenha percebido que White bear se trata de um linchamento (atenção: spoiler!).
Victoria Skillane acorda, de repente, numa cadeira de uma casa desconhecida. Corre para o quintal para tentar entender o que está acontecendo e se depara com pessoas, nas janelas vizinhas e em seu caminho, filmando-a com smartphones, impassíveis a seus pedidos aflitos de ajuda.
Em flashes de memória, enquanto corre pela vizinhança que lhe é estranha, a personagem lembra-se de uma menina (seria sua filha?) segurando um ursinho branco, e de um rapaz (seria seu marido?) com elas, até que, sem compreender, pessoas mascaradas começam a atacá-la – e toda a sequência se desenrola em cenas que misturam desespero e indignação com um aglomerado de gente assistindo a tudo como voyeurs, sem esboçar qualquer gesto de ajuda.
Victoria não sabe, mas ela é, na verdade, a assassina da criança (de quem apenas consegue se recordar em flashes) e está no White bear justice park, um estúdio preparado para expor a criminosa, diariamente, às cenas de perseguição com o objetivo de que, ao menos teatralmente, pague pelo crime que cometeu sob o olhar cúmplice de espectadores, que compram ingresso para acompanharem a “pena”.
No fim do “espetáculo” – é assim também que o professor aposentado de sociologia da USP José de Souza Martins, que estuda os linchamentos há mais de 30 anos, se refere a esse tipo de “justiçamento popular” –, Skillane recebe um choque e adormece. No dia seguinte, mesmo sem se lembrar, será novamente a personagem principal de uma espécie de série que satisfaz o desejo de vingança coletivo.
Em seu livro Linchamentos: a justiça popular no Brasil, publicado em 2015 pela Editora Contexto, Martins expôs a pesquisa sociológica sobre a qual se aprofundou durante mais de 30 anos para entender um “problema social” que, no Brasil, não é novidade, ao contrário, persiste em moldes que remontam ao período colonial. O caso narrado de Victoria é ficção, embora pareça se equivaler à característica, na vida real, de ser cometido como ato penalizador, carregado de ódio e medo. “[Os linchamentos] são ações em que os acusadores, quase sempre anônimos, se sentem dispensados da necessidade de apresentação de provas que fundamentem as suas suspeitas, em que a vítima não tem nem tempo nem a oportunidade de provar a sua inocência, mesmo que inocente seja”, escreve o pesquisador, em seu livro, no capítulo que fala sobre o lado sombrio da mente conservadora.
Em seu levantamento, o professor José de Souza Martins apontou que, nos últimos 60 anos, cerca de 1 milhão de brasileiros já participou de um ato ou da tentativa de linchamento – por meio de agressões como espancamentos, ataques com pauladas, pedradas, pontapés e socos –, mas ele sugere que esse número pode chegar a 1,5 milhão, já que nem todos os casos costumam ser registrados. Para ele, o linchamento se trata de um “justiçamento popular” que, no Brasil, já pode ser considerado endêmico e que expressa uma crise de desagregação social que reluta em estabelecer a ordem rompida: “A justiça formal e oficial deixou de aplicar a pena de morte, ainda no Império, abolida por lei, mas o povo continuou a adotá-la em sua mesma forma através dos linchamentos. Trágica expressão do divórcio entre o legal e o real que historicamente preside os impasses da sociedade brasileira, divórcio entre poder e o povo, entre o Estado e a sociedade”, escreve.
Do real ao virtual – e vice-versa
Longe da ficção, um caso brasileiro recente, de 2014, ganhou o noticiário com seu enredo que mais parece roteiro de Black mirror. Uma mulher de 33 anos, mãe de dois filhos no Guarujá, litoral sul paulista, foi espancada e morreu no hospital depois de ser confundida com uma sequestradora de crianças, cujo retrato falado foi divulgado por meio de uma postagem no Facebook, feita por uma página noticiosa da cidade. Na verdade, a notícia se tratava de boato, já que o retrato falado havia sido feito dois anos antes, no Rio de Janeiro.
O caso inspirou a pesquisadora Karen Macedo a elaborar a dissertação intitulada “Linchamentos virtuais: paradoxos nas relações sociais contemporâneas”, defendida em setembro de 2016 na Faculdade de Ciências Aplicadas da Unicamp, campus de Limeira, que analisa, além desse caso – que, do virtual, extrapolou para o linchamento real – mais outros sete linchamentos que ela denominou “virtuais”, mas que tiveram consequência na vida real dos envolvidos. Todos eles estão analisados no blog Linchamentos virtuais.
“A partir de algo que desagrada um grupo de pessoas – uma denúncia de agressão, por exemplo, ou um comentário preconceituoso – elas se juntam, em uma explosão súbita, para linchar o acusado por meio de posts nas redes sociais, que começam a receber curtidas, comentários e a serem compartilhados. No linchamento virtual nem sempre há a violência física concretizada, mas uma violência moral e psicológica que afeta a vida pessoal e profissional da pessoa”, analisa.
Outro linchamento virtual, além do que resultou em morte no Guarujá, analisado por Karen Macedo foi o “caso Fabíola”, ocorrido em 2015 a partir da exposição de um marido que flagrou a esposa saindo do motel e divulgou a filmagem, destruindo o carro dela, agredindo-a fisicamente e a ameaçando de morte nas redes sociais. Um acontecimento da vida privada do casal foi exposto publicamente a milhares de pessoas. Em menos de um ano, o vídeo teve mais de 1 milhão e 700 mil visualizações e 65 mil compartilhamentos, em sua maioria, como meio de apoio à vingança do marido.
Para trabalhar com o conceito de “linchamento virtual” em sua pesquisa, já que o termo começou a ser utilizado pelos meios de comunicação há poucos anos, Karen Macedo pegou como ponto de partida o conceito de “linchamento” formulado por José de Souza Martins para verificar diferenças e semelhanças. Com ele, Macedo concorda que o linchamento (tanto o real como o virtual) se trata de uma segunda violência. Em seu livro, o pesquisador conceitua: “O linchamento não é uma violência original: é uma segunda violência. Está fundamentalmente baseado num julgamento moral. É, sobretudo, indicativo de que há um limite para o crime, para o delito e, por incrível que pareça, para a própria violência – há o crime legítimo, embora ilegal, e o crime sem legitimidade”.
Para a pesquisadora da Unicamp, a internet potencializa o efeito do linchamento pelos estragos que causam na vida da pessoa. Trata-se de um paradoxo porque, muitas vezes, o linchamento foi causado por um ato de denúncia considerada legítima contra, por exemplo, ações ou comentários de racismo, machismo e outras violências. “A denúncia é uma ferramenta potente na internet para dar voz a minorias, mas, por outro lado, a pessoa que você expõe está sendo vítima de um linchamento virtual, e isso, inclusive, pode virar contra a pessoa que está acusando, porque, de vítima, a pessoa pode processá-la, e aí ela vira réu. A gente chamou isso de paradoxo, porque é o lá e cá o tempo todo, são dois lados que você precisa colocar na balança”, pondera.
O que Karen Macedo pontua em sua dissertação é até que ponto a liberdade de denunciar, a liberdade de expressão, não poderia virar outra forma de violência: “Em geral, as pessoas parecem querer levar um caso para a internet porque procuram uma punição mais rápida que a punição institucional, e acabam conseguindo. Levantei diferentes casos em que houve demissão ou abertura de sindicância devido à exposição do que aconteceu, então, parece que esse ato motiva ainda mais as pessoas a fazerem isso”.
Mas o linchamento virtual é crime? Não há uma lei específica, até porque, como lembra Macedo, seria difícil penalizar todo mundo que fez um comentário. “Em geral, a investigação é feita contra aquele que incitou. No linchamento virtual, as pessoas que foram expostas podem processar quem começou a exposição tendo como base, por exemplo, o crime contra a dignidade humana e o de incitar violência”, exemplifica. “É tudo uma questão de ponderar as consequências”, alerta.
Janaína Quitério é jornalista com especialização em Economia do Trabalho e Sindicalismo (Cesit-Unicamp), em Jornalismo Literário (ABJL) e em Jornalismo Científico (Labjor-Unicamp). Atualmente, cursa mestrado em Divulgação Científica e Cultural (Labjor-Unicamp).