Liberdade de expressão é a base para qualquer democracia

Presente na primeira emenda da constituição estadunidense, a liberdade de expressão é um direito complexo e em constante construção

 Por Daniel Rangel

A primeira emenda da constituição dos Estados Unidos trata das liberdades de expressão, religiosa, de imprensa, de reunião pacífica e demandas ao governo por melhorias. A liberdade de expressão é um direito fundamental para que a democracia possa se desenvolver plenamente, com o confronto de ideias e a defesa de opiniões. “As leis de liberdade de expressão, na prática, servem para garantir o direito de expressão das minorias; ideias defendidas pela maioria geralmente não precisam de uma garantia para serem ditas”, explica Lucas Laurentiis, professor de direito constitucional da PUC-Campinas e doutor em direito pela USP.

A liberdade de expressão é a base de onde derivam outras características da democracia. Nos Estados Unidos foi uma construção de anos, com grandes discussões baseadas em eventos e situações que foram moldando a forma de tratá-la. Um artigo publicado na revista Direito e Práxis, intitulado “Liberdade de expressão: teorias, fundamentos e análise de casos”, apresenta as três principais teorias sobre a liberdade de expressão nos Estados Unidos: verdade, autonomia e democrática.

A teoria da verdade argumenta que a livre troca de ideias em um “mercado” permite que a verdade prevaleça por meio do debate; a teoria da autonomia considera a liberdade de expressão essencial para a independência moral dos indivíduos e para sua participação na formação do juízo moral da sociedade, abrangendo todo tipo de discurso; e a teoria democrática enfatiza a ligação intrínseca entre a liberdade de expressão e o autogoverno, defendendo que todas as ideias relevantes para o debate público devem ser ouvidas para garantir um consentimento informado dos governados.

Laurentiis, primeiro autor do artigo, comenta que a liberdade de expressão nos EUA já passou por acalorados debates e situações ao longo da história. Dois exemplos são a Lei de Espionagem, promulgada em 1917, que tinha como objetivo proibir críticas ao governo e à participação do país na guerra, e o período conhecido como macartismo, durante a década de 1950, quando ideias e ações consideradas pró-comunismo eram combatidas e censuradas. Em ambos os casos, a justificativa para a censura era a defesa do interesse público e da segurança nacional.

Contradições recentes

O atual presidente Donald Trump tem tomado uma postura contraditória com relação à liberdade de expressão. Ao mesmo tempo em que perdoou os presos da violenta invasão ao Capitólio, por considerar que estavam apenas manifestando suas insatisfações sobre o resultado da eleição, Trump vem acirrando a perseguição a estudantes e universidades que, de alguma forma, se manifestem contra a guerra de Israel na Palestina, com a justificativa de estar combatendo o antissemitismo.

No caso das universidades, a liberdade científica também está em jogo. O governo ameaçou cortar centenas de milhões em financiamento federal caso as universidades não se adequassem às exigências do atual presidente. Para Jason Stanley, professor de filosofia da Universidade de Yale e autor do livro Como funciona o fascismo, em entrevista à BBC News, os Estados Unidos estão passando por um ataque à liberdade de expressão pior do que no macartismo. Stanley anunciou recentemente que decidiu se mudar para o Canadá devido ao clima político e aos riscos para sua carreira acadêmica.

Segundo Laurentiis, a liberdade científica e de expressão podem se confundir, mas não há uma lei que trate especificamente da primeira. No entanto, ele afirma que “a partir do momento em que passa a existir um tabu dentro da universidade a respeito do debate de temas isso gera um problema agravante maior: o próprio progresso da ciência passa a ser questionável, porque você vai precisar de uma autorização do Estado para poder falar e pesquisar alguma coisa”, comenta.

As redes sociais

Com as redes sociais e a internet intermediando boa parte da comunicação, empresas como Google, Meta, TikTok e X (antigo Twitter), por exemplo, controlam não apenas os conteúdos postados, como também sua destinação. Segundo os autores do artigo “Liberdade de expressão na era digital: novos intermediários e censura por atores privados”, publicado na Revista de Investigações Constitucionais, as grandes empresas de redes sociais e plataformas de acesso controlam a liberdade de expressão por meio da censura prévia, coleta de dados pessoais e controle do fluxo informacional.

A internet, que surgiu como uma promessa de democratizar a informação, acabou rumando para a gestão privada da intermediação da expressão. Uma resposta institucional internacionalmente coordenada seria necessária para regular essa atuação, porém há dificuldade em articular regras e limites para essas empresas de atuação global, uma vez que nem mesmo as regras locais estão bem definidas. Para os autores, a liberdade de expressão enfrenta um desafio sem precedentes, uma vez que os intermediários possuem grande poder de controlar o fluxo de informações nas redes.

Como lidar com a questão?

Os autores do trabalho sobre a liberdade de expressão na era digital afirmam que um dos grandes desafios da democracia será o de proteger a livre circulação do pensamento, respeitando a intimidade/privacidade das pessoas e a veracidade dos conteúdos compartilhados. Segundo os autores, é preciso que haja regulação do Estado sobre as empresas que exploram plataformas de interação social, além de uma articulação internacional capaz de encontrar soluções que transcendam as fronteiras entre países.

Para o professor Laurentiis, é essencial que a sociedade tome consciência da importância da liberdade de expressão e participe ativamente do debate público sobre o tema. “O debate acadêmico não vai construir soluções isoladamente. É preciso que esse processo inclua a sociedade como um todo”, finaliza Lucas.

Daniel Rangel é formado e jornalismo e ciências, doutor em biotecnologia e monitoramento ambiental (UFSCar). Especialista em jornalismo científico no Labjor/Unicamp.