Por Ricardo Whiteman Muniz [pintura de Cinta Vidal Agulló]
Para o arquiteto, paisagista e morador do centro de São Paulo, ao invés de uma possível cidade espraiada incentivada pelo home office, seria melhor optar por “cidades compactas” com dinâmica urbana eficiente. “Já que os polos comerciais podem ficar vazios nessa conjuntura, não seria lindo se a iniciativa público-privada requalificasse esses edifícios para habitações populares?”
O arquiteto e paisagista Leandro Fontana, morador da região central de São Paulo, começou o período de distanciamento social com uma pergunta simples em suas redes sociais: o que será que vai acontecer com as habitações depois da pandemia? Em sua resposta à própria provocação, a casa pós-coronavírus teria área de serviço e banheiro logo na entrada. Além dessa entrada, que funcionaria como uma espécie de câmara de descompressão do espaço externo contaminado, a sala seria também um jardim, tanto lugar de trabalho quanto de banho de sol.
Ele graduou-se na Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Unesp-Bauru (SP). “Me lembro de uma disciplina optativa na qual tivemos que projetar uma casa para um dos colegas de classe utilizando características de personalidade, boas e ruins, da pessoa. Foi uma grande terapia arquitetônica, capaz de ensinar a espacializar emoções e a desenvolver uma leitura muito mais subjetiva sobre os modos de habitar”, conta Fontana, que concedeu entrevista à revista ComCiência – parte por whatsapp, parte via direct do instagram – em fins de maio.
Desde 2011 Fontana é membro do Raul Pereira Arquitetos Associados (RPAA), escritório fundado em 1990 especializado em paisagismo, planejamento ambiental, arborização urbana e recuperação de áreas degradadas. Entre os trabalhos mais significativos dos quais participou estão as Moradas Infantis de Canuanã, projeto de paisagismo de uma escola-casa localizada em Formoso do Araguaia, no estado de Tocantins, utilizando de forma pedagógica referências aos ecossistemas presentes na região (Cerrado, Pantanal e Amazônia), ao grafismo indígena local e ao rio Javaés. O projeto, em parceria com os escritórios Rosenbaum e Aleph Zero, foi premiado no RIBA International Prize 2018.
ComCiência – Você fez uma bonita descrição de uma casa-quarentena em um post no Facebook no início do isolamento. Entre outras características, ela teria “50% da sua extensão em forma de cozinha, espaço para muita fome, armazenamento de alimentos e louça pra lavar”. Mas conclui dizendo que dificilmente esse novo paradigma “pega” aqui. Por que não pega?
A ideia de uma casa-quarentena partiu de um exercício criativo despretensioso, ao imaginar como será habitar uma morada de forma saudável e confortável por um longo período de confinamento. Levando em consideração possíveis novas pandemias em um futuro próximo e também desejos espaciais e configurações formais advindas das mudanças de hábitos de higiene e limpeza para prevenção de enfermidades epidêmicas.
"Uma casa-quarentena tem 50% da sua extensão em forma de cozinha, espaço para muita fome, armazenamento de alimentos e louça pra lavar. A área de serviço fica na entrada da casa junto com o banheiro, higienizando tudo e todos à cada acesso. A sala é também o jardim, cheio de plantas, onde se confraterniza, trabalha e toma banho de sol, ao mesmo tempo em que se assistem coisas em vários formatos de telas digitais. Cada morador tem seu próprio quarto. Há música ambiente em todos os cômodos. Janelas grandes, voltadas na sua maioria para o sol da manhã, iluminando e permitindo a circulação cruzada do ar."
Entre as diversas possibilidades arquitetônicas, desenhei um espaço no qual todos os ambientes funcionem proporcionalmente às demandas de atividades para usuários em situação de confinamento. É o caso da sala, que ao mesmo tempo é local de trabalho e o jardim onde se toma o banho de sol, ou a grande cozinha central que acolhe a todos nos momentos de refeição. Além disso, o ambiente de entrada ganhou um caráter extremamente funcional: limpar e desinfetar os objetos e pessoas que acessem a morada, espacializando os hábitos de higiene fundamentais nos novos contextos pandêmicos. Entretanto, ao mesmo tempo em que projetava essa casa virtual, imaginando poeticamente as situações ideais para uma qualidade de vida em tempos de isolamento social, a imagem das casas reais que acontecem na paisagem das cidades brasileiras não saía da minha cabeça. Uma arquitetura idealizada com sua sala-jardim e uma cozinha no centro, com janelas voltadas para a face solar são tão comuns para uma parcela privilegiada da população, mas tão distantes da realidade para outros, essencialmente nas periferias das metrópoles.
Historicamente, nossas grandes cidades viveram muitas epidemias que geraram soluções urbanísticas, legais e sanitárias e que vigoram, pelo menos em parte, até hoje. Infelizmente, muitos desses processos urbanos, somados à própria condição de desigualdade social do nosso país, obrigaram a população mais pobre a ocupar as bordas das grandes cidades e suas regiões metropolitanas. A realidade, que não é uma novidade, são periferias horizontalizadas, altamente adensadas e com congestionamento habitacional. Sem contar os problemas de saneamento básico e falta de abastecimento de água. Uma conjuntura perigosa, principalmente na circunstância de uma pandemia global.
Para além de uma configuração idealizada de uma casa-quarentena, são necessárias medidas urgentes de infraestrutura para qualificar o território das nossas cidades e periferias adensadas: água, esgoto, moradias populares disponíveis, mobilidade eficiente junto a políticas sociais de amparo para as famílias mais necessitadas. Antes de mais nada, a emergência tem como pano de fundo as nossas cidades.
A aposta de muitas construtoras “chics” tem sido justamente o oposto do que você imaginou, não é? Estúdios bem pequenos localizados perto de metrô ou em regiões centrais com áreas comuns de lavanderia, alimentação, academia etc. Será que vão reverter essa tendência depois da tragédia da Covid-19?
Podemos dizer que as formas arquitetônicas imprimem valores éticos, critérios sociais e comunicam as visões do mundo em um determinado tempo. Uma boa parte da atual produção habitacional nas grandes cidades está nas mãos do mercado imobiliário, que identifica diversos públicos-alvo e se apropria de seus costumes para assim vender “novas” formas de habitar. Dessa lógica surgiram os colivings ou estúdios compartilhados com seus ambientes de trabalho, estares e lavanderias coletivas. Alguns espacialmente bem elaborados e assinados por importantes arquitetos, outros se limitam em objetos publicitários que disfarçam o empilhamento de pequenas caixas de morar.
Diante desse mecanismo de funcionamento do mercado é possível dizer que não somente através das tendências culturais, mas também de uma transformação comportamental advinda de uma pandemia, os novos empreendimentos imobiliários poderão tomar novas configurações onde os espaços individuais e controlados ganharão (ou não) protagonismo.
Talvez a emblemática varanda gourmet poderá se transformar no new home office com sua pequena sala de reuniões embutida na sala. Dispositivos eletrônicos serão capazes de controlar o deslocamento de indivíduos que estão acima da temperatura corpórea normalizada em ambientes coletivos. Também não será nenhuma surpresa se os novos empreendimentos começarem a surgir mais distantes dos centros e das grandes conurbações urbanas. Além disso, em uma visão extrema, os novos lares poderão constituir grandes bolhas edificadas onde se comunicar com o mundo exterior será uma simples viagem virtual.
Em uma outra perspectiva, menos individualista e mais desejada no âmbito da função social da arquitetura, os novos empreendimentos poderão assumir um papel transformador de reconexão com a cidade. Poderão oferecer, por exemplo, contrapartidas em forma de pequenos espaços públicos anexados aos novos edifícios, desenhando um tecido urbano menos adensado e com mais qualidade de áreas livres. A importância desses espaços, aliados às áreas públicas existentes, são fundamentais para criar condições mais saudáveis nos centros urbanos, especialmente nas metrópoles, além de incentivarem um território mais acessível para todos.
Em resumo, devemos estar atentos às consequências da pandemia que refletirão no nosso território, da casa à cidade, para escolhermos a qual cenário futuro vamos construir.
Em Berlim, por exemplo, há profissionais que moram “bem”, no centro e perto de seus postos de trabalho, que estão optando por não renovar contratos de aluguel e mudar para “longe”, para imóveis com quintal e espaço. É, evidentemente, gente que não só pode como vai trabalhar em casa além da quarentena. O home office vai impôr uma nova e inesperada divisão urbanística?
Uma das certezas que estamos assistindo no mundo todo em vista da pandemia do coronavírus é a solidificação do modelo home office como a solução mais pertinente para o funcionamento do universo do trabalho, pelo menos de uma boa parte dele. Se por um lado as regiões das cidades em que se concentram polos corporativos e comerciais sentirão um esvaziamento de empresas e pessoas, de outro, trabalhar em casa irá gerar um agrupamento populacional localizado. Isso vai possibilitar a movimentação de pequenos serviços e comércios para além da utilização mais ativa dos espaços livres urbanos presentes nos entornos das habitações.
Porém, do ponto de vista urbanístico, a criação de novos condomínios e bairros horizontalizados e afastados, idealizando esse modelo de casa-trabalho-quintal, pode ser considerado insustentável se levarmos em conta o esforço energético e de infraestruturas que seriam movimentados para a implantação desses conjuntos habitacionais. Além do mais, esse modelo de urbanização é muito mais custoso, o que significa que ele é acessível para uma pequena parcela privilegiada da população.
Ao invés dessa possível cidade espraiada incentivada pela nova onda do home office que gera vazios urbanos e grandes deslocamentos, devemos optar por cidades compactas, com uma dinâmica urbana muito mais eficiente e, mesmo que mais adensada, capaz de possibilitar mais qualidade de habitações para morar, trabalhar e se deslocar pela cidade.
E já que os polos comerciais podem ficar vazios nessa conjuntura, não seria lindo se a iniciativa público-privada requalificasse esses edifícios para habitações populares? A cidade agradece.
Será que a visão exposta em seu post não pode acabar se tornando o novo modelo de moradia do privilegiado? Em outras palavras: ainda que demore, será que as chamadas elites vão perceber que uma “casa boa e gostosa” é a que você descreve? O modelo badalado dos estúdios minúsculos com muitos serviços compartilhados está com os dias contados?
Infelizmente, a casa-quarentena ainda é um modelo de moradia do privilegiado. Digo infelizmente, porque mesmo que imaginada com certa liberdade poética e dispositivos “simples” de organização espacial, quando olhamos para as nossas cidades vemos o quanto a paisagem é desigual, visto todas as questões abordadas até agora. Nosso desafio profissional está para além da transformação do objeto arquitetônico em um bem de consumo. Pensar em práticas efetivas junto a políticas públicas e organizações civis, para que a casa pós-pandemia seja projetada e construída independente da classe social e da sua localização no território. Fazer da moradia um bem acessível para todos. Afinal, a essência da arquitetura é propor um horizonte para o futuro, desenhando desejos.
Ricardo Whiteman Muniz é jornalista (Cásper Líbero, 2004), bacharel em direito (USP, 1993) e mestre em sociologia da religião (Metodista de São Paulo, 2000). Trabalhou em ONG internacional (comunicação e viagens de campo), na Exame.com (repórter de economia), no jornal O Estado de S. Paulo (subeditor de ciência, saúde, educação e meio ambiente) e no portal G1 (editor coordenador de ciência e saúde). É coeditor executivo da revista digital ComCiência (parceria do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp com a SBPC). Foi professor da especialização em jornalismo científico do Labjor (cursos Comunicação de Universidades e Oficina de Jornalismo – Edição).