Por Lidia Torres e Pedro Belo
Diante dos debates sobre como os jovens são afetados por questões relacionadas à crise socioambiental que o planeta vive, surge também a pergunta: como dão significado aos efeitos dessa crise e como podem ser agentes na construção de um novo mundo possível? Quem responde essa e outras perguntas, e dá pistas sobre o papel da juventude na construção de um mundo mais sustentável é Kaleb Fernandes, 19 anos, diretor estadual do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) da região metropolitana de São Paulo e membro do Coletivo de Juventude do MST.
Como começou sua trajetória no movimento?
Vinte anos atrás, minha mãe, que era trabalhadora, morava na Brasilândia, em São Paulo. Ela, meu pai e meus irmãos receberam um trabalho de base [no movimento]. Nós vemos nas periferias das cidades que o processo de edificação vem se expandindo e jogando as pessoas cada vez mais às margens. E o que induz à necessidade de ocupação é justamente a condição de que você não sabe o que vai comer amanhã – ou que você paga aluguel.
É muito complicado viver nessas situações de insegurança alimentar. Então, minha mãe ocupou o Irmão Berta 21 anos atrás, e logo em seguida já havia uma ocupação que era o assentamento Dom Tomás, onde eu moro hoje, e algumas famílias migraram para essa nova ocupação para poder fortalecer. Então, eu já nasci ali, na ocupação, e depois ela se tornou um assentamento. Cresci sempre integrado nas tarefas do movimento, sempre participei das cirandas, por exemplo.
O que são as cirandas?
A ciranda é um grande avanço na nossa compreensão quanto à emancipação na história do MST. É um pensamento político de que é preciso ter um novo olhar para as crianças, com o objetivo de cuidar delas enquanto as mães e pais estão fazendo alguma tarefa ou atividade do movimento, então há esse espaço para que as crianças possam ficar lá. Durante o período em que a criança está sob cuidado há também uma intenção política de estar ali. É esse ponto de vista, principalmente, de enxergar a criança como um ser humano também, e de procurar atividades que relacionem o corpo dela e a integrem com a natureza e com todo esse pensamento humanizado.
Neste sistema capitalista, a gente se estrutura a viver no senso comum da individualidade. Quando você se torna assentado ou acampado, você percebe que essa coletividade é importante, você não acredita apenas por uma questão de ideologia, mas sim porque vê na prática. Porque você percebe que, ao plantar uma horta de alface, precisa de uma cama de adubo, e quem está produzindo é o seu vizinho, e seu vizinho precisa disso, e quem está produzindo é outro vizinho. Portanto, essa coletividade é estruturada para tentar quebrar um sistema de lógica capitalista.
Além da educação no movimento, você também passou por uma educação formal. Como você vê as diferenças entre esses dois modelos educacionais?
Na superestrutura capitalista, a escola é a principal iniciadora de todas as violências, seja ela a racista ou a patriarcal, por exemplo. É lá que você vai aprender tudo sobre a sociedade, não só o que realmente importa. Vocês ficaram sabendo da reforma do ensino médio? Nós tínhamos uma educação republicana, como Paulo Freire chamaria, e o que eles fizeram foi tirar essa educação republicana e colocar uma educação neoliberal. O que eles estavam propondo é que o adolescente que está no ensino médio passasse a trabalhar ou fazer um curso técnico que já o condicionaria para o mercado de trabalho. Era um preparatório para o mercado de trabalho. Quando na educação republicana, tínhamos um preparatório para que as pessoas entrassem na faculdade, se formassem… Tem uma máxima de Paulo Freire que diz “a educação não muda o mundo. A educação muda as pessoas, as pessoas mudam o mundo”. Portanto, é preciso educar as pessoas.
Se você educa as pessoas a viverem em um processo de violências estruturais, de todas essas intolerâncias, é isso que vão aprender. Se você educa as pessoas para que sejam coletivas e esqueçam essa individualidade, vão aprender isso. Então, a escola, a educação, ela é justamente essa iniciação, o ponto de partida, que cada sociedade vai tomar. Essa é a diferença porque, na nossa compreensão de educação, a gente vai levar outras questões em consideração.
Como é ser jovem em 2023, diante de tantas informações e acontecimentos sobre o colapso socioambiental?
Acredito que isso é o que nos dá a condição de lutar. Se pararmos para olhar, a gente não tem nenhuma perspectiva. É preciso explicar, é preciso dizer a todos que é necessário denunciar a crise ambiental, é preciso denunciar o agronegócio, pois são eles os responsáveis pela degradação e pela crise ambiental. Então, acredito que se quisermos viver e ter essa perspectiva, precisamos derrotar o pensamento do agro e vivenciar outra perspectiva do mundo. Precisamos derrotar esse sistema. E isso nos proporciona as condições e a necessidade de lutar.
Para isso, não estamos apenas denunciando, nós temos um projeto político popular, principalmente para o Brasil. Não se trata apenas de uma denúncia; é um projeto político que apresenta e soluciona o caminho dessa crise ambiental. Em sua resposta mais simples, é dizer que o ser humano se integra com a natureza, enquanto o capitalismo acha que o ser humano é diferente da natureza. Para os povos originários, por exemplo, não existe a natureza, porque você é a natureza. Nessa perspectiva eu acho que a gente precisa dialogar. Porque isso é uma coisa que influencia muito a juventude no campo. Então, a juventude cria essa condição de a gente lutar, porque a gente precisa criar uma nova perspectiva para essa juventude. Quem vai pensar é a própria juventude.
Como isso atinge a saúde física e mental dos jovens que estão ao seu lado no movimento?
Acho que a gente tem o hábito de achar que a juventude do MST é muito diferente de outras juventudes, mas a gente se estrutura na mesma condição. Então, a gente tem justamente a mesma condição do que um jovem vai ter na cidade, que é justamente essa falta de perspectiva. E isso vai desanimar e desalinhar a juventude. Nesse sentido, quando você não tem uma perspectiva, quando você tem que se moldar ao padrão capitalista e não consegue, você fica depressivo. Então, o capitalismo molda uma forma padronizante que todo mundo precisa almejar. Isso desanima e nos torna cada vez mais depressivos. Acho que eu poderia dizer que a crise ambiental influencia a juventude a ter mais depressão, a ter um pensamento psicológico pior, mas eu também acredito que isso seja mais amplificado devido ao sistema capitalista.
Você poderia situar, para quem é de fora, como a juventude do MST pensa em novas maneiras de produzir alimentos?
Nós queremos minimamente mudar – porque a gente não luta pelo privilégio, a gente luta pelo mínimo. Dentro das condições, a gente precisa construir um projeto popular para o Brasil, e um projeto que seja de reforma agrária popular, que nos dê a condição de acesso à terra como um bem de todos, e que, no geral, isso também não vá ser uma pauta “de esquerda”. Vai ser uma pauta que gira, inclusive, a economia.
Se a gente quer mudar e pensar em um novo projeto, a gente tem que pautar reforma agrária e, justamente por essas condições que eu falei, ela não pode ser uma reforma agrária clássica burguesa; ela tem que ser uma reforma agrária popular que dê acesso a todos à terra. A reforma agrária está na Constituição. Ela não é uma pauta revolucionária. Outros países europeus fizeram porque a reforma agrária, justamente, está na pauta da economia. Para girar a economia, precisa fazer reforma agrária, porque se você tem terra que não está produzindo, que lucro é gerado com essa terra?
O MST seria como um braço prático do que a ciência diz que precisa ser feito para mitigar as mudanças climáticas?
Nossa atuação não seria no sentido de apresentar essas denúncias, porque isso é dado. Não é que o MST acha que o capitalismo está destruindo a natureza. A gente não está achando, a gente tem esse entendimento com base no que a gente estuda, com base no que vamos analisando, com base até no ponto de vista da ciência. Inclusive, a pauta da reforma agrária popular traz esse assunto. A gente não desvincula a questão agrária da questão ambiental, porque não faz sentido.
Por isso, na nossa produção, a gente sempre pauta a agroecologia como a solução do nosso povo para essa questão ambiental, tanto na alimentação quanto na própria produção dos assentados. O agronegócio, para além de exportar as nossas comidas, vai colocar uma condição de que a comida seja envenenada, porque vai ter muitos alimentos produzidos com agrotóxicos, que são inclusive proibidos em outros países. Então esse conflito é justamente o que a gente quer pautar. E aí a gente traz a agroecologia justamente nesse pensamento do que a gente não quer só alimentar o povo com qualquer produção, a gente quer alimentar com um produto saudável, com produtos orgânicos.
Qual a importância da agroecologia para a produção de alimentos, para o meio ambiente e para a formação das gerações futuras?
A agroecologia, como o próprio nome já diz, traz uma compreensão de que ela não degrada a terra. Ela é uma maneira auto sustentável de produzir na terra. Então, por exemplo, tem terra que é dura, não dá para plantar nada. Você planta uma mandioca, a mandioca com a raiz vai quebrar a terra. Aí você planta, por exemplo, uma aroeira, que aduba a terra. Aí em volta da aroeira você planta a tua horta, porque quem tá adubando a horta é a aroeira. Essa é a compreensão da agroecologia: a própria natureza se sustenta. Você não precisa jogar um químico lá para o alface crescer, você tem a aroeira que aduba. Então, é preciso diversificar as culturas que a gente tem. Aqui é preciso que a gente adentre a agroecologia porque a gente precisa reflorestar a natureza.
Hoje há muitos ativistas jovens, principalmente na área ambiental. Qual recado você gostaria de deixar para eles? E qual recado gostaria de deixar para quem acredita que a juventude “está perdida”?
A compreensão dos mais velhos é de que a juventude está perdida, de que a juventude não tem todo esse conhecimento. Eu digo e afirmo que a juventude está organizada. A juventude está organizada justamente para estabelecer e apresentar um novo projeto para o Brasil e denunciar o agronegócio, a mineração, que sempre atuam com violência com a natureza, com a terra, com os povos originários. E o meu recado é justamente esse: tem que ter ciência de que a juventude está organizada e a gente está muito mais do que organizado. A juventude está denunciando o agro, a juventude está apresentando esse projeto popular, até para que, inclusive, a gente tenha alguma perspectiva futura.
Lidia Torres é mestra em Antropologia Social (IFCH/Unicamp), com foco em corporalidades e trabalho em áreas rurais. Atualmente, cursa especialização em jornalismo científico no Labjor/Unicamp.
Pedro Belo é jornalista formado pela Faculdade Cásper Líbero (2009), produtor audiovisual na Nav Reportagens, roteirista, produtor e um dos criadores do podcast Ciência Suja. Atualmente cursa especialização em jornalismo científico no Labjor/Unicamp