Com a chamada Teologia da Prosperidade, ocorre uma profunda inversão na compreensão cristã sobre dinheiro e ostentação. “Agora pobre não é mais objeto de cuidado, mas visto como amaldiçoado por Deus”, diz professor da pós-graduação em ciências da religião da Universidade Metodista de São Paulo. “O sistema já existia antes de Bolsonaro e vai existir depois. Esse tempo de Bolsonaro é o ápice de uma mentalidade que tem uma certa coerência, mesmo que eticamente errada.”
A pressão escancarada de pastores bolsonaristas para que seus fiéis votassem no candidato de extrema direita, derrotado nas urnas em 30 de outubro, pode levar a uma debandada de crentes incomodados com o jogo político pesado no interior da “casa de Deus”? Para além dessa questão recente no país, há algo na doutrina cristã que explica episódios como o apoio ao racismo nos Estados Unidos, ao apartheid na África do Sul ou à ditadura militar brasileira? Qual o peso e a influência dos líderes desse campo religioso que não compactuam com tal processo? Para Jung Mo Sung, autor de A idolatria do dinheiro e os direitos humanos (2018) e Desejo, mercado e religião (2000), entre outros, é preciso compreender que a aliança do cristianismo atual com setores neoliberais e autoritários decorre de um processo iniciado na década de 1950, quando a cultura de consumo entra nas igrejas com uma nova doutrina, a Teologia da Prosperidade – pela qual as bênçãos divinas se manifestam publicamente por meio de ostentação de mercadorias-símbolos.
“Para esse grupo, o principal agente de transformação da situação econômica é Deus e a principal ação da Igreja nessa caminhada não é lutar contra as injustiças do capitalismo, como é para a Teologia da Libertação, mas contra os inimigos de Deus”, diz Sung, que é professor do programa de pós-graduação em ciências da religião da Universidade Metodista de São Paulo. Os “comunistas”, por exemplo, são inimigos de Deus não porque são ateus, mas porque querem “dar” dinheiro aos pobres, que são pecadores. “Ao dar dinheiro aos pobres e dizer que todos seres humanos têm direitos sociais, esses ‘comunistas’ estão contra o modo – meritocrático – como Deus distribui as ‘bênçãos’”. Naturalizado brasileiro, Sung nasceu em Seul, Coreia do Sul, em 1957 e radicou-se no Brasil em 1966. É membro do comitê científico do grupo de trabalho “Class, Religion and Theology” da American Academy of Religion. Leia a seguir a íntegra da entrevista:
Diante das pressões políticas e eleitorais no interior de igrejas evangélicas a favor do candidato de extrema direita, derrotado nas urnas em 30 de outubro após casos documentados de compra explícita de votos, uso e abuso da máquina pública e intimidação por parte de patrões e pastores, pode haver a partir de agora uma debandada das igrejas? A vertente evangélica do neofascismo traz embutido um “tiro no pé”, algo como “as coisas foram longe demais”?
Penso que a lógica e a teologia que gerou o grande crescimento das igrejas evangélicas e pentecostais é a mesma que está levando a esse seu caráter autoritário – prefiro esse termo do que neofascismo. E o crescimento de um grupo aumenta também seus problemas e diferenças internas. Nesse sentido, o processo que você está chamando de “debandada” é previsível. O tempo vai dizer.
O crescimento do pentecostalismo não pode ser entendido sem o uso dos rádios e das TVs , que têm um custo altíssimo e também o potencial de gerar superávits ou lucros. Só se pode manter esse sistema Igreja-TVs/rádios com a aumento de números de membros que contribuem financeiramente e a promessa e o “pagamento da benção econômica”, que fortalece uma “espiritualidade de consumo” e a acumulação de riqueza dos bispos proprietários das igrejas.
É importante deixar claro que o bispo proprietário da Igreja e do “canal das bênçãos” é e deve ser autoritário, pois ele ou ela representa o Deus-Poderoso na vida dos crentes. A aliança com Bolsonaro pode acabar na medida em que ele perde o poder que atrai os bispos e pastores. Mas o sistema já existia antes de Bolsonaro e vai existir depois. Esse tempo de Bolsonaro é o ápice, por enquanto, de um sistema que tem uma certa coerência, mesmo que ética (ou teologicamente) equivocada.
É um sistema que, se entra, é muito difícil sair, pois é uma lógica sacralizada. Biblicamente eu poderia dizer que é um sistema econômico-religioso idolátrico. Mas para eles, divino.
Há algo no DNA da doutrina que intrinsecamente desemboca no autoritarismo, no fascismo, no racismo, na misoginia e no apoio a regimes de exceção, como ocorreu no Brasil com o apoio aberto das igrejas protestantes – salvo raras exceções – ao golpe de 64 e agora a Bolsonaro, chamado em muitas igrejas de “homem de Deus”?
Sua pergunta é muito importante mas difícil porque coloca em discussão um tema “metafísico”, não no sentido de que se trataria de algo que está além do mundo físico ou real, nem no sentido de discutir o “ser” em si – por exemplo, o ser do cristianismo –, mas sim sobre as condições de possibilidade de conhecimento e de funcionamento de um determinado sistema de pensamento.
Qualquer sistema social ou grupo social tem que resolver os problemas da produção e da reprodução da vida. Estar vivo é uma condição necessária para qualquer coisa e para isso precisa tomar decisões frente aos desafios e problemas que o seu meio ambiente natural-social coloca. Diante dos desafios, é preciso decidir qual ou quais caminhos a tomar. Normalmente é uma discussão técnica, no sentido moderno de definir qual é a melhor forma de usar os meios escassos para atingir os objetivos. É o tema da eficiência do uso dos meios escassos. Mas, o que não costumamos analisar e discernir é sobre o fim último ou os valores fundamentais que norteiam as opções concretas que levam os agentes ou atores sociais a fazerem ou não determinadas ações.
Nas décadas de 1950 a 70, o mundo estava claramente dividido entre o sistema capitalista e o comunista. No lado capitalista, não se discutia se o sistema de mercado capitalista era melhor ou pior do que o comunismo. Era claro ou óbvio que o mercado capitalista era o melhor ou o único modo de organizar a economia e a vida social para… Para quê? Não sabíamos bem qual era esse objetivo “final” do caminho. Isso porque a utopia do capitalismo era o horizonte que dava e dá ainda o sentido das ações, das opções concretas no interior do caminho. Assim como no lado comunista, a utopia dava o horizonte de sentido para os planos econômicos e o controle do Estado sobre a vida social, isto é, seus objetivos específicos.
Sem a utopia não temos como ver e analisar se estamos melhorando ou piorando o que queremos fazer ou onde chegar. A noção de aperfeiçoamento pressupõe a ideia do perfeito. A noção do “mercado perfeito” ou do “Mercado (perfeitamente) Livre” é o que permite aos economistas neoliberais decidir suas escolhas políticas e econômicas e criticar outras propostas. Assim funcionava nos países do bloco comunista, com a noção de “Planejamento Estatal Perfeito”.
Esse processo de (a) imaginar uma realidade utópica, (b) analisar a partir dos conceitos transcendentais (por exemplo, Mercado Livre, Planejamento Perfeito, o Reino de Deus…) quais são os problemas, as suas causas e as soluções (c) estabelecer os objetivos específicos e o seu caminho é a condição de possibilidade de pensar e de atuar para nos mantermos vivos. É disso que eu estou tratando como as “questões metafísicas”.
O mundo moderno, diferentemente do antigo ou pré-moderno, crê que seres humanos são capazes de atingir a perfeição ou o infinito. Acredita que a constante evolução tecnológica nos levará a alcançar a realização dos desejos infinitos, por exemplo, a riqueza ilimitada ou a vida além da morte corporal. É a ilusão de que com passos finitos poderemos chegar ao infinito, que Hegel criticou com a noção de “má infinitude”. Essa ilusão de que encontramos uma instituição humana capaz de nos levar ao “Paraíso” e que, portanto, se precisar devemos oferecer todos os sacrifícios necessários para chegar lá. A realização do desejo infinito requer e justifica todos os sacrifícios humanos. Essa lógica sacrificial aparece no discurso econômico capitalista dos “custos/sacrifícios necessários” (dos pobres e trabalhadores, normalmente) para o crescimento econômico; no comunismo e também nas religiões, incluindo o cristianismo.
O que quero chamar atenção é que esse discurso sacrificial é resultado da ilusão de que é possível construir um sistema social ou instituição que nos levaria ao Paraíso, seja na terra ou na vida pós-morte. Encontramos, por exemplo, no cristianismo medieval a doutrina de que a salvação é possível por meio de oferecer sacrifícios demandados pela Igreja em nome de Deus. Assim, a Igreja é vista como o caminho para chegar à vida eterna ou o chamado Reino de Deus. Com isso, identifica a Igreja com o Reino de Deus e a sacraliza.
No mundo moderno capitalista, com o seu mito do Progresso, e nos dias de hoje, vivemos na ilusão de que o Mercado Livre realizará o desejo ilimitado aos que “merecem”. Em outras palavras, todos os sistemas sociais ou culturais que são capazes de se reproduzir têm dentro de si essa ilusão de realizar o desejo “impossível” por meio de uma instituição que, para isso, exige sacrifícios.
Na questão específica do cristianismo atual e a sua aliança com setores neoliberais e autoritários, é preciso agregar algumas outras questões. A cultura de consumo, que surge nos países ricos do capitalismo na década de 1950, entra nas igrejas cristãs com uma nova teologia: Deus é favor do consumismo e as bênçãos divinas se manifestam publicamente por meio de ostentação de mercadorias-símbolos – a Teologia da Prosperidade. Há uma profunda inversão na compreensão cristã sobre o dinheiro e a ostentação do consumo. Agora pobre não é objeto de caridade ou cuidado, mas é visto como pecador, amaldiçoado por Deus.
Além disso, com o aumento da concorrência no mercado profissional, os cristãos de classes média e baixa, com pouca formação educacional e técnica, buscam em Deus, isto é, na igreja, o “poder” para entrar e se manter no mercado consumidor. Há nesse processo uma relação de troca: eles pedem a benção na forma de poder de consumo em troca de uma vida cristã ativa, militante. E qual seria essa militância religiosa tão poderosa que lhe garantiria essas bênçãos? Antes da cultura de consumo, ser cristão militante era lutar contra o mundo moderno. Mas, a partir da década de 1970 a luta e os inimigos mudam. No lado da Teologia da Libertação e as Cebs (Comunidades Eclesiais de Base), com a opção pelos pobres, a injustiça social do capitalismo passa a ser “o” inimigo a ser combatido e para essa luta abraça as ciências sociais modernas e a política. Por outro lado, há um outro setor do cristianismo que assume a ideia de que também os pobres têm o direito de uma vida melhor, mais próspera, valorizando o consumismo. Mas são pró capitalismo.
Para esse grupo, o principal agente de transformação da situação econômica é Deus e a principal ação da Igreja nessa caminhada não é lutar contra as injustiças do capitalismo, como é para a linha da Teologia da Libertação, mas lutar contra os inimigos de Deus. Na medida em que essas igrejas abraçam a cultura de consumo, que é moderna, a benção divina, manifestada e comprovada no aumento da capacidade de consumo, é conquistada pela sua guerra espiritual contra os novos inimigos de Deus: os comunistas e os “gays”.
Os “comunistas” são inimigos de Deus não porque são ateus, pois acusam também cristãos que creem em Deus de comunistas, mas porque eles querem “dar” dinheiro aos pobres que são pecadores. Ao dar dinheiro aos pobres e dizer que todos seres humanos têm direitos sociais, esses “comunistas” estão contra o modo como Deus distribui as “bênçãos”, isto é, o processo de distribuição de riqueza, a “meritocracia”, por meio do Mercado Livre. Estabelece-se aqui uma identificação entre a benção distribuída por Deus e a ideologia da meritocracia do mercado neoliberal.
E como essa guerra é espiritual, divina, é preciso, na mentalidade deles, o envio por parte de Deus de um ou “o” Messias. O Messias enviado é, por definição na cultura religiosa desse tipo, uma autoridade que deve se impor sobre as leis humanas. A perspectiva da democracia se opõe à noção de messianismo, seja na direita ou na esquerda.
A luta contra os comunistas não é algo tão cotidiano, pois é uma figura meio abstrata. Por isso, para se garantir como parte da comunidade ou da igreja que canaliza essas bênçãos de Deus, esses cristãos e cristãs precisam entrar na guerra espiritual contra aqueles e aquelas que ameaçam a família tradicional, patriarcal, que Deus teria criado: a comunidade LGBT+.
A figura mítica de Bolsonaro é a expressão de uma visão teológica que alia o neoliberalismo, o fascismo/autoritarismo, a cultura de consumo e uma religiosidade tradicional presente em muitas religiões do mundo.
O desejo de poder e influência de pastores por si explica o apoio massivo de evangélicos a Bolsonaro? Tudo se resume a isenção de impostos, concessões de TV e rádio?
As noções de poder e influência, que se expressariam concretamente em objetivos bem específicos como isenção de impostas e concessões, são importantes, mas penso que não dão conta dessa relação.
Para entendermos um pouco mais a relação entre Bolsonaro e os pastores, eu penso que é útil discutirmos a questão do ressentimento. Uma questão central do ressentimento é o sentimento de que eu/nós não sou/somos tratados como merecemos e nos sentimos mal com isso.
Essas lideranças são vistas e tratadas com respeito e admiração pelos membros das igrejas e se sentem escolhidas por Deus. O problema é que quando participam em eventos ou reuniões organizadas ou dirigidas por pessoas de formação ilustrada, isto é, com um discurso teológico e/ou político moderno ilustrado, são tratados como “menores”. Isto é, são vistas e tratadas como pessoas que ainda não assumiram a “maioridade”, que ainda não estudaram a teologia moderna com a exegese moderna e usam uma linguagem religiosa tradicional para falar da vida e dos desafios da igreja e da sociedade.
Ao serem tratadas assim, de forma não respeitosa, essas lideranças e membros comuns das igrejas se sentem mal e se defendem ou se distanciam. Pior ainda quando essas lideranças não são convidadas a participar em eventos públicos importantes em que gostariam de estar e de que se sentem com merecimento pela sua liderança. O ressentimento se acumula.
Bolsonaro é aquele líder político que dá lugar especial a essas lideranças religiosas anti-modernas e expulsa aquelas que não os respeitam. Penso portanto que a relação entre os pastores evangélicos e pentecostais com ele vai muito além da questão “material” dos impostos ou dos cargos, é uma questão de autoestima e ressentimento.
Qual é o real peso e influência de pastores dissidentes diante da onda neofascista no interior das igrejas evangélicas?
Com certeza os pronunciamentos de pastores, pastoras e lideranças pentecostais e evangélicas são muito importantes, tanto para a sociedade quanto para cristãos e igrejas menores. Mas, é muito difícil medir e pesar. Isso só vai ficar mais claro daqui um tempo.
Uma questão importante é: qual é a régua com a qual medimos esse processo? Eu penso que as categorias das ciências sociais e das ciências da religião modernas, as com que quase todos nós estudamos, não dão mais conta do mundo atual. Por exemplo, a relação entre a religião e a política, ou a relação entre Igreja e Estado, mudou profundamente e as categorias usadas a partir da noção de secularização [processo em que a religião em geral perde influência sobre as variadas esferas da vida social] não são suficientes ou não apropriadas. Pois, na verdade, fora da Europa o mundo não foi secularizado como os cientistas sociais pensavam. E a noção de sociedade pós-secular (Habermas) e a de “capitalismo como religião” (W. Benjamin, F. Hinkelammert) nos obrigam a repensar a relação entre a religião e a política.
O que podemos dizer agora é que esses pastores que, além da ação nas suas igrejas, atuam nas redes sociais têm um papel fundamental para que cristãos e cristãs possam resistir a essa onda autoritária e neoliberal.
Ricardo Whiteman Muniz é jornalista (Cásper Líbero, 2004), bacharel em direito (USP, 1993) e mestre em sociologia da religião (Metodista de São Paulo, 2000). Trabalhou em ONG internacional (comunicação e viagens de campo), na Exame.com (repórter de economia), no jornal O Estado de S. Paulo (subeditor de ciência, saúde, educação e ambiente) e no portal G1 (editor coordenador de ciência e saúde). Editou entre 2011 e 2017 a revista Ensino Superior (Centro de Estudos Avançados) e o site Inovação (2011-2013) da Unicamp. É coeditor executivo da revista digital ComCiência (parceria do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp com a SBPC). Foi professor da especialização em jornalismo científico do Labjor (2017-2020).
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