Para jornalista, grande imprensa contribui há pelo menos uma década para consolidação da ameaça fascista à democracia e “bolsonarismo” em si não existe, sendo expressão circunstancial de um Brasil arcaico, machista e identificado com o legado do escravismo.
José Arbex Júnior, jornalista (USP, 1982) e autor de Showrnalismo – A notícia como espetáculo, entre outros, é doutor em História Social (“Telejornovelismo – Mídia e história no contexto da Guerra do Golfo”, sob orientação de Nicolau Sevcenko). Por muitos anos repórter da Folha de S.Paulo, foi responsável pela editoria internacional do diário paulistano. Leciona na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e na Escola Nacional Florestan Fernandes.
Qual sua leitura do pós-eleição?
Evidentemente o Bolsonaro não representa nada de novo no Brasil. Na verdade não existe um negócio chamado “bolsonarismo”. Existe um Brasil arcaico, patriarcal, homofóbico, machista, identificado com o legado do escravismo, e o Bolsonaro foi conduzido ao Planalto como uma circunstância histórica, como um acaso, por um conjunto de circunstâncias.
Mas isso que nós chamamos de “bolsonarismo” representa uma ameaça real à democracia brasileira, e nós temos que enfrentar isso tanto do ponto de vista estrutural, ou seja, enfrentar definitivamente um problema histórico que o Brasil nunca resolveu, da desigualdade social, da real abolição da escravidão até as últimas consequências, coisa que o país nunca fez. Isso do ponto de vista histórico, estrutural. E do ponto de vista imediato, o Estado deve tomar rédea da situação, adotar medidas que conduzam à normalidade democrática, porque não pode continuar o estado de desordem que foi instaurado no país. São dois fenômenos diferentes que têm de ser endereçados de maneiras diferentes.
Como você avalia a cobertura da “mídia grande” de todo esse processo? O “jornalismo profissional” foi e é de fato um aliado da democracia?
Ficou patente que houve um processo de falência da grande mídia, ou da mídia tradicional, ou mídia corporativa, porque em grande parte o processo que nós estamos vivendo hoje é resultado de uma cobertura absolutamente preconceituosa e equivocada que fizeram lá atrás, desde 2013 até hoje, pelo menos.
Por outro lado nós não podemos esquecer que estamos vivendo em uma era de grandes transformações dos meios de comunicação e que isso tem a ver com o surgimento das redes sociais, com o surgimento das bolhas que produzem as fake news e de uma nova forma de conduzir uma guerra. Estou aqui utilizando o termo “guerra” de uma maneira proposital. Recentemente foi publicado um estudo conduzido pela Otan [Organização do Tratado do Atlântico Norte] intitulado “Guerra Cognitiva” em que os estudiosos da aliança militar ocidental dizem que no mundo contemporâneo a verdadeira guerra não é mais travada no campo de batalha, por meio de bombardeiros, foguetes e aviões – claro que também ainda é –, mas o verdadeiro campo de batalha hoje são métodos de você conseguir produzir consensos, formar certezas, realidades virtuais que são capazes de mobilizar as pessoas, os afetos, de gerar absurdos como esses que nós estamos vendo aqui agora no processo eleitoral e pós-eleitoral no Brasil, e a esquerda e as forças democráticas têm que se dar conta disso: as guerras estão sendo travadas nas redes.
A extrema direita está mostrando uma extrema competência nas redes, e isso não é só no Brasil, é um processo articulado internacionalmente, o Steve Bannon nos Estados Unidos parece ter sido o grande cara de vanguarda nesse processo. Caso contrário, a próxima batalha nós vamos perder.
E o mundo evangélico?
Acho que entra em parte nisso que apontei, que são os novos métodos de guerra. Os evangélicos entram como massa de manobra, impressionável, por esses processos de comunicação articulados por robôs, em que recebem mensagens alarmantes o tempo todo, mostrando ameaças que na verdade não existem, só existem na cabeça dessas pessoas, mas são bastante eficazes na hora de cultivar o medo.
Observe que houve vários Bolsonaros. Um endereçado aos perfis de crentes evangélicos, que mostrava um cidadão sempre orando, teve um outro armamentista, guerreiro, empunhando armas, que ia fazer a “limpeza” do Brasil na base da porrada, teve o do agronegócio, até um identificado com os jovens etc. Então, dependendo do seu perfil, você recebia um certo tipo de mensagem. Isso foi constatado na ocasião do Brexit, as pessoas recebiam mensagens de perfis variados de acordo com a predisposição que tinham para ser mais vulneráveis a determinado tipo de conteúdo. É mais um exemplo de manipulação.
Agora, como é que você vai resolver isso? Vai resolver tendo propostas para melhorar a vida das pessoas, para levar segurança psicológica, emocional, para ter perspectiva de futuro – e travar esse embate também por intermédio das redes, não tem escapatória. Se não entendermos agora a importância que tem a guerra pelas redes nós estamos ferrados.
Ricardo Whiteman Muniz é coeditor executivo da revista digital ComCiência.