As instituições multilaterais que têm orientado as relações internacionais e a resolução de problemas globais desde meados do século XX não são mais claramente capazes de enfrentar os desafios do novo milênio. E devem ser reinventadas.
A faixa de Gaza desde 2007 esteve submetida a um total bloqueio pelo Estado de Israel. Em 7 de outubro de 2023 o grupo não-estatal armado Hamas, que administrativa o enclave, derrubou a cerca que a isolava de Israel, matando 1.000 israelenses, civis e soldados, e tomando como reféns 200. Gaza se tornou um campo de batalha quando Israel iniciou uma ofensiva militar para erradicar o Hamas. No ano que passou essa guerra deixou Gaza irreconhecível. Quase 60% dos edifícios foram danificados ou destruídos.
Israel perpetrou em Gaza o bombardeio mais intenso na história dos conflitos no Oriente Médio em um espaço urbano limitado de 45 km, quase a metade da dimensão de Nova York, impondo como castigo coletivo uma fome avassaladora aos habitantes. Foram assassinados 170 jornalistas. Foram mortos 240 funcionários da ONU, o maior número num conflito desde a fundação da organização em 1945. Em sua maioria da UNRWA, a Agência da ONU de assistência aos refugiados palestinos no Oriente Médio, considerada por Israel como associada ao terrorismo – Israel denunciou vários de seus membros como associados ao Hamas, sem nunca oferecer provas.
Israel alegou que seu objetivo era erradicar o Hamas e destruir a rede de túneis construída no subsolo. Mas, com esse objetivo, devastou uma área onde viviam mais de 2 milhões de palestinos. Em um ano Israel destruiu sistematicamente tudo que poderia significar vida para os palestinos: 12 universidades, escolas, bibliotecas, arquivos históricos, museus, todos os hospitais e ambulatórios, o único hospital psiquiátrico, centros culturais, mesquitas e igrejas. Desde o início da guerra, cerca de 87% de todas as escolas de Gaza, que mais de meio milhão de alunos frequentavam, foram destruídas ou danificadas. Aqueles que ainda estão de pé são geralmente usadas como abrigos.
Massacrou professores, médicos e suas famílias. Os bombardeios deslocaram quase dois milhões de palestinos de suas casas, muitos várias vezes. Crianças, mulheres e idosos com 60 anos ou mais representam mais de 60% das 41.870 mortes sob os bombardeios registradas pelas autoridades de saúde do enclave palestino, verificadas pela ONU.
Enquanto isso, na Cisjordânia, colonos judeus em assentamentos israelenses ilegais têm atacado palestinos, apoiados por militantes dos partidos supremacistas e extremistas de direita no governo. “Cerca de 700 palestinos e 14 israelenses foram mortos desde 7 de outubro de 2023 – o maior número de ambos os lados em mais de duas décadas”, disse André Guterres, secretário-geral da ONU em um comunicado recente. Constatando que a “construção de novos assentamentos, a apropriação de terras, as demolições e a violência dos colonos continuam”.
Diante desse quadro de destruição e morte por Israel em Gaza durante os últimos doze meses, as instâncias jurídicas e políticas máximas da ONU examinaram a situação, proferiram decisões e aprovaram resoluções.
Em 24 de janeiro de 2024, a Corte Internacional de Justiça (CIJ), em Haia, reconheceu que era plausível que Israel estivesse violando a Convenção sobre Genocídio. Para chegar a essa conclusão dois critérios foram levados em conta. Primeiro, políticas sistemáticas de morte lenta e incapacitação atingiram um nível sem precedentes no conflito de Israel com os palestinos. Em segundo lugar, Israel destruiu o sistema hídrico e infligiu aos palestinos de Gaza condições de vida calculadas para provocar sua destruição física, no todo ou em parte. Respondendo à solicitação da África do Sul como medida de emergência, ordenou que Israel garantisse que seu exército se abstivesse de atos genocidas contra os palestinos. Atendendo a pedido da África do Sul em 28 de março, a CIJ determinou que cessasse sua investida em Rafah e que não impedisse a entrada de ajuda humanitária em Gaza. Em maio a Corte ordenou que Israel autorizasse o ingresso de investigadores da ONU para investigar alegações de genocídio. Israel falhou em aplicar todas as ordens emitidas pela CIJ.
Em 19 de julho último, a CIJ, respondendo a uma consulta da Assembleia Geral da ONU, confirmou que a Ocupação por Israel de Gaza e da Cisjordânia era ilegal, assim como os assentamentos por colonos judeus nessas áreas, assim como a anexação de terras e o uso de recursos naturais palestinos.
No dia 17 de setembro, foi aprovada na Assembleia Geral da ONU uma resolução exigindo o fim da ocupação da Palestina por Israel, na linha de decisão recente da CIJ a respeito.
O Conselho de Segurança da ONU – composto por 15 membros, sendo 5 permanentes com poder de veto: Estados Unidos, França, Reino Unido e China – desde novembro de 2023 exarou quatro resoluções referente a Israel e Gaza. [1]
Em novembro, uma resolução determinava que Israel não impedisse serviços e assistência humanitários de chegar até a população de Gaza; em dezembro, outra determinava o aumento do acesso a ajuda humanitária, incluindo suprimentos de comida, combustíveis e material médico. Em 25 de março, o Conselho de Segurança da ONU aprovou a Resolução 2728, que pedia um cessar-fogo durante o período religioso do Ramadã, seguido de “um cessar-fogo duradouro e sustentável”. Em junho de 2024, com abstenção da Rússia e pela primeira vez com o voto dos EUA, a resolução determinava ao Hamas e a Israel implementar um acordo de cessar-fogo em três fases.
Israel desqualificou todas as ordens do CIJ e descumpriu todas resoluções do Conselho de Segurança – nem a ONU teve condição de implementá-las. Renunciando a todas as propostas de cessar- fogo, inclusive aquelas propostas pelos EUA, que o apoia, o governo supremacista de Israel enterrou qualquer possibilidade de obter através de negociação com o Hamas a libertação da centena de israelenses tomados como reféns em 7 de outubro de 2023.
No Tribunal Penal Internacional (TPI) em Haia – que julga indivíduos e não os Estados membros da ONU como a CIJ –, seu promotor Karim Khan entrou com um pedido em 20 de maio de mandados de prisão para o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu e o ministro da Defesa Yoav Gallant e para os líderes do Hamas Yahya Sinwar, Ismail Haniyeh (este anulado depois de seu assassinato por Israel no Irã) e Mohammed Deif por seus papéis em supostos crimes de guerra e crimes contra a humanidade durante a guerra de Israel em Gaza. Essas ordens de prisão devem ser confirmadas pelos juízes do TPI, o que não ocorreu até agora.
Dado o desrespeito das ordens judiciais e das resoluções do Conselho de Segurança, Israel prossegue na guerra em Gaza impunemente e sem que qualquer Estado ou qualquer instituição internacional o impeça ou o demova de prosseguir em ações militares sem assegurar medidas de proteção da população civil.
Faz pouco a guerra foi retomada com extrema dureza na semana passada para assegurar o controle do norte de Gaza com a destruição do que restaria ali da presença do Hamas, que continua a resistir a Israel, coincidindo com novas ordens de evacuação enviadas à população, provocando o deslocamento de cerca de 400 mil palestinos. Tão forte foi essa nova ofensiva que a UNRWA suspendeu todos os serviços de salvamento que prestava. O Médicos Sem Fronteira também soou o alarme: “O último movimento para empurrar com força e violência milhares de pessoas do norte de Gaza para o sul está a a transformar o norte num deserto sem vida e a piorar a situação no sul, onde mais de um milhão de pessoas já foram empurradas para uma pequena parte do território”.
As ondas de choque que irradiam da morte e destruição sem precedentes em Gaza agora ameaçam empurrar toda a região para o abismo: uma conflagração em grande escala com consequências inimagináveis.
Israel, desde 23 de setembro, estendeu sua ofensiva invadindo ao arrepio da Carta da ONU o Líbano, com 5,5 milhões de habitantes, com o objetivo de submeter o movimento Hezbollah, uma organização social, política e militar fundada nos anos 80 durante a Guerra Civil Libanesa por líderes religiosos. Para assassinar o líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, Israel não hesitou em destruir um bairro inteiro de Israel e semana lançou misseis no centro da capital, Beirute. Em consequência dessa ofensiva que não assegura a proteção da população civil, foram deslocadas de suas residências um milhão de pessoas, que fogem para as estradas tentando sair do sul e leste do país – inclusive para a Síria – bem como dos subúrbios ao sul da capital, regiões predominantemente xiitas, onde vivem as comunidades onde está implantado o Hezbollah. Hoje, metade da população do Líbano está deslocada ou refugiada (inclusive sírios e, em menor medida, palestinos).
Nessa ofensiva bélica, Israel perpetra impunemente violações da lei humanitária internacional e da lei internacional de direitos humanos. Algumas representam graves infrações à Convenção de Genebra de 1949, crimes de guerra e crimes contra a humanidade, sem que nenhuma instituição internacional impeça.
Estamos diante da erosão gradual e contínua dos padrões universais dos direitos humanos perpetrada por Israel com o apoio político e financeiro de outros Estados membros. Nos remetendo à dramática constatação de que as instituições multilaterais que têm orientado as relações internacionais e a resolução de problemas globais desde meados do século XX não são mais claramente capazes de enfrentar os desafios do novo milênio. E devem ser reinventadas.
Paulo Sérgio Pinheiro é professor titular de ciência política da USP (aposentado), doutor honoris causa da Unicamp, ex- coordenador da Comissão Nacional da Verdade e ex-ministro da Secretaria de Estado dos Direitos Humanos (governo FHC)
[1] O Conselho é o único órgão do sistema internacional capaz de adotar decisões obrigatórias para todos os 193 Estados-membros da ONU