Inserção da ciência na mídia revela incertezas da produção científica

Por Oscar Freitas Neto

A pandemia de Covid-19 tem dominado a produção científica mundial, e não poderia ser diferente, mas a severidade da situação impõe um ritmo acelerado sem precedentes. Enquanto a ciência se aproxima do feito inédito de desenvolver uma vacina em tempo recorde ou um possível tratamento para a doença causada pelo novo coronavírus, também soma uma série de erros. Torcendo por respostas rápidas e definitivas, muitos olhos se voltam à ciência, deixando suas falhas e incertezas à mostra como nunca estiveram.

Depois que falhas em estudos sobre o novo coronavírus ganharam o noticiário, levantou-se a questão se o grande volume e a produção acelerada são condizentes com os tempos e processos da ciência. Dois importantes periódicos, The Lancet e The New England Journal of Medicine, retrataram em junho artigos que foram criticados por inconsistências nos dados e falta de transparência. Antes, em abril, a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), conselho que tem a atribuição de avaliar aspectos éticos das pesquisas que envolvem seres humanos, suspendeu o estudo da Prevent Senior após verificar que haviam iniciado testes sem receber o autorização da comissão.

Segundo o boletim do dia 04 de agosto da Conep, foram aprovados 634 protocolos de pesquisas sobre Covid-19. Dessas pesquisas, 165 são estudos experimentais, ou seja, testam terapias para a doença. Para comparação, uma busca por Zika na plataforma Brasil, base nacional que organiza pesquisas com seres humanos, entre 2015 e 2016, anos do agravamento da epidemia da doença, retorna apenas 87 registros.

Em documento que orienta pesquisadores e comitês de ética, a Conep escreve que “tem observado falhas metodológicas com implicações éticas que comprometem a segurança dos participantes de pesquisa ou a validade do estudo”. Segundo Jorge Venancio, coordenador da Conep, 90% dos ensaios clínicos aprovados são de instituições nacionais e esse esforço gigante é relevante levando em conta o recente corte de verbas e bolsas para a ciência e tecnologia. Por outro lado, isso traz por vezes pesquisadores ainda sem uma grande experiência na área.

O coordenador da Conep afirma que estão sendo rigorosos em relação aos critérios estabelecidos, reforçando também a orientação aos pesquisadores. “Nossa atuação tem sido de fazer o debate ético em nossos pareceres para aproveitar ao máximo o esforço dos pesquisadores, garantindo a segurança e o direito dos participantes”, conclui.

Tempestade perfeita

“O maior problema tem recaído na divulgação de resultados de pesquisas sem reprodutibilidade”, explica Silvia Galleti, pesquisadora do Instituto Biológico (IB-APTA), da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo. Ela ressalta que a boa ciência é caracterizada pela possibilidade de ser reproduzida, ou seja, que pesquisadores independentes consigam verificar o resultado repetindo um estudo.

A impossibilidade da reprodução foi o caso, por exemplo, dos artigos retratados em junho na The Lancet e The New England Journal of Medicine. Especialistas levantaram inconsistências nos dados fornecidos pela empresa Surgisphere, que se negou a abri-los para uma auditoria. A falta de transparência foi determinante para que os autores pedissem a retratação do artigo.

“Uma tempestade perfeita de erros, ambições, pressas, azares e desacertos” é como descreve essas falhas, Ivan Domingues, professor do departamento de filosofia da UFMG, que ainda lembra da contaminação do ambiente e do debate pela política. Para que os erros cheguem ao ponto da retratação, falhas têm de ocorrer em diversas instâncias, de autores do estudo a editores e revisores. Entram também na conta jornalistas que, confiando na autoridade da The Lancet, divulgaram resultados que pareciam definitivos à questão da hidroxicloroquina.

Em situação de produção normal, a acadêmicos já sofre por pressões de produtividade, que é sumarizada na expressão “publicar ou perecer”. “Na tentativa de não perecer, alguns pesquisadores podem, durante a sua vida acadêmica, já terem publicado resultados passíveis de serem falhos”, diz Silvia.

Ivan utiliza outro termo para isso: taylorismo acadêmico. A ênfase que se dá muitas vezes na quantidade sobre a qualidade gera diversos problemas, sendo as fraudes e plágios suas consequências mais sérias. “A pressa, a corrida para chegar primeiro, o requentamento das publicações e o seu fatiamento, com os males e os estragos que isso gera, constituindo uma distorção sistêmica”, explica.

Esse fenômeno só tem a se intensificar ao adicionar as milhares de vidas perdidas, o sofrimento, assim como as implicações econômicas e sociais a uma situação tão incerta como da pandemia. “Daí a urgência, a quebra dos protocolos e a ânsia por resultados, em meio a muita angústia, a muitas incertezas e a muita dor e sofrimento”, afirma Ivan.

Todos os olhos na ciência

Pelo lado da população, a expectativa também é alta por uma solução rápida e direta. Contudo, o cenário não é dos melhores ao juntar a divulgação precipitada de alguns resultados de pesquisa. “Quando esses dois fatos se encontram, certamente, não se tem qualquer benefício: a sociedade não tem a resposta necessária, e merecida, e a ciência não tem o avanço esperado”, avalia Silvia Galleti.

A percepção que se tem normalmente da ciência de construir verdades e certezas pode ser também fonte da expectativa. O antropólogo e filósofo da ciência, Bruno Latour, em entrevista ao Correio do Povo antes da pandemia, em 2017, resume a questão: “o objetivo da ciência não é produzir verdades indiscutíveis, mas discutíveis”.

“A ciência não é lugar para dogmas ou verdades ditadas por um oráculo, mas um processo de descobertas e de correções de rumo. Sobre muita coisa sabemos hoje mais do que ontem, mas menos do que amanhã: então, o entendimento da falibilidade como algo positivo é o que nos possibilita distanciar a ciência de todas as formas de dogmatismo”, explica Ivan Domingues.

O trabalho do cientista não é desprovido de dúvidas e incertezas, e com um novo vírus que sobre pouco se sabe, isso se acentua. Novas evidências surgem, o ambiente se altera e novos conhecimentos vão sendo produzidos. Soma-se a isso o fato de que a ciência vem tendo grande inserção na mídia e, dessa forma, falhas, erros e correções que antes ficavam apenas na comunidade científica agora estão a mostra para todos.

“A falibilidade e, junto com ela, a retificação não devem ser vistos como coisa ruim, mas como a sua chancela e o crédito de confiança que podemos dar à ciência, ao que ela faz e ao que ela promete”, conclui.

Avanços

A pandemia ajudou a intensificar um processo de maior abertura e transparência da ciência, movimento esse que já vinha acontecendo. A produção científica, muitas vezes fechada em periódicos que cobram pelo acesso, com o movimento da Ciência Aberta, passam a ser de acesso público o que agiliza o processo da ciência.

Os preprints, artigos que ainda não passaram por revisão de especialistas, são um exemplo desse processo que ganhou relevância no atual momento. A prática proporciona uma comunicação mais rápida de resultados entre grupos de pesquisa, além de permitir que pesquisadores recebam contribuições antes do término do estudo. Em contrapartida, a divulgação dos resultados, por ainda não terem passado pela avaliação de um periódico, demandam mais cuidado.

O SciELO Brasil, biblioteca eletrônica de periódicos científicos brasileiros, iniciou em abril seu serviço de preprints, dedicando-se inicialmente às produções relacionadas à Covid-19. Para que o manuscrito seja aceito na plataforma, deve seguir critérios como comunicar resultados de pesquisa original, todos os autores contarem com afiliações institucionais e o autor principal ter um histórico de artigos indexados. De acordo com Silvia Galletti, que é também editora de preprints da SciELO na área, apesar de não haver endosso implícito pelo SciELO, caso seja detectado violações éticas, a plataforma removerá o manuscrito.

“O movimento do Ciência Aberta veio para favorecer a cooperação nas pesquisas, bem como democratizar o acesso e uso do conhecimento científico. É um caminho sem volta. Precisamos apenas de um tempo para que todos os atores envolvidos nesse cenário aceitem esse novo modo de se fazer ciência”, afirma Silvia.