Por Fabíola Mancilha Junqueira
Atualmente há mais de 82 milhões de refugiados no mundo, sendo mais da metade crianças. Cerca de 68% delas acessam a rede primária de educação, muito distante da média global, que é de 91%. Em relação ao sistema secundário o acesso de crianças refugiadas é de apenas 34% – apontam os dados da Acnur, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados.
Em 2020 o Comitê Nacional para Refugiados (Conare) registrou mais de 193 mil pedidos de refúgio, sendo que em junho de 2021 o Brasil abrigava mais de 52 mil pessoas de 109 nacionalidades.
Adriana Mallmann Vilalva é doutoranda em educação pela Universidade Católica de Santos e se dedica a pesquisar questões relacionadas à educação para a diversidade, inclusão e direitos humanos. Atualmente acompanha um grupo de crianças e jovens refugiados em uma escola na cidade de São Paulo. Autora do capítulo “A dificuldade de conviver com o outro: jovens refugiados nas escolas”, publicado na revista Limiares, Adriana relembra que, no Brasil, a educação é um direito de todos, inclusive no papel humanitário e civilizatório. O ambiente escolar pode criar espaços para que crianças refugiadas compartilhem hábitos, língua e histórias de sua cultura, ampliando a possibilidade de interação intercultural entre todo o grupo de alunos.
A partir de sua experiência, Adriana comenta que a maior dificuldade enfrentada por elas é a do acesso escolar. “Pela falta de informação sobre as formas de acessar a rede de ensino, em qual escola se matricular, e por vezes pela falta de documentação, pois as crianças chegam ao país sem seus documentos pessoais e sem a documentação relativa à sua escolaridade”. Um grande problema, pois só no final de 2020 é que deixou de ser exigida documentação comprobatória de escolarização anterior.
Sobre o papel da escola a pesquisadora acrescenta que “a escola permite que as crianças reconstruam sua identidade, reconquistem sua individualidade, se expressem, façam novos amigos, estejam em um ambiente seguro, se alimentem – afinal, muitas vezes é onde consomem a única refeição do dia”.
Por outro lado, o ambiente escolar também pode ser um local hostil, de discriminação e xenofobia. As crianças chegam ao ambiente escolar muito fragilizadas, com as barreiras linguísticas e culturais. Os professores, muitas vezes não estão preparados para essa diversidade cultural, ou ainda não conhecem a língua de origem da criança, que não consegue se comunicar, permanecendo imersa em seu mundo. Desta forma, a escola pode também ser uma experiência dolorosa”, alerta a pesquisadora.
Além da educação, outros acessos como à saúde e à vacinação fazem parte do Sistema de Garantia de Direitos (SGD) que protege crianças e adolescentes, brasileiros ou não, contra qualquer forma de opressão, violência, negligência, crueldade, exploração e discriminação. O Guia de proteção comunitária de pessoas indígenas, refugiadas e imigrantes elaborado pela Acnur identifica algumas situações de risco e vulnerabilidade para crianças. São elas: trabalho infantil, negligência infantil, abandono de incapaz, violências física, sexual, psicológica e institucional.
A pesquisadora e doutora em psicologia clínica pela PUC-SP, Flávia de Moura Muniz, investigou o processo de deslocamento forçado de mulheres venezuelanas ao Brasil, especialmente no que diz respeito aos impactos psicológicos e sociais e questões de gênero. A pesquisa resultou na tese Son mías las fronteras que crucé: dores e resiliência no deslocamento forçado de venezuelanas ao Brasil, defendida em 2020. A pesquisa revela a forte relação das mulheres com as crianças em situação de deslocamento forçado, como descrito no relato a seguir sobre a percepção de uma das entrevistadas. “Catalina, como mulher solteira que migrou sem as filhas e mora em um abrigo para famílias, observa que para todas as pessoas é difícil imigrar com crianças, mas, para ela, os motivos são bem distintos: para as mulheres porque evolve muito trabalho, para os homens porque é incômodo ficar ao redor de crianças. As normas de gênero não ficam do outro lado da fronteira”.
A questão do preconceito e falta de conhecimento sobre leis brasileiras que garantem proteção e direitos às crianças pertencentes a famílias refugiadas também são pontos sensíveis destacados por Flávia. “A forma com a comunidade brasileira lida com as crianças imigrantes precisa ser mais profundamente compreendida. Não é raro ver pessoas falando de crianças que nasceram no Brasil, de pais venezuelanos, que são venezuelanas. Existe uma certa dificuldade de entender, porque essa criança, de acordo com a lei, é cidadã brasileira. Há preconceito e o olhar para aquele ser de uma forma culturalmente diferente, segregada. É preciso atenção não só para essas crianças que viveram a experiência de sair do seu país natal para remontar a sua vida em outro país, mas também para as crianças que nasceram aqui e são lidas socialmente como estrangeiras”.
No site da Acnur Brasil é possível encontrar informações e materiais sobre infância e refúgio como, por exemplo, uma série de relatos e histórias de crianças refugiadas, divulgada em outubro de 2021 por ocasião do dia das crianças, uma lista de livros infantis que ajudam crianças a entender sobre deslocamentos forçados, e um quiz que convida a perceber o mundo a partir da realidade de uma criança refugiada.
Em decorrência dos conflitos na Ucrânia, cerca de 1,3 milhão pessoas foram obrigadas a sair do país em busca de refúgio. Na última Assembleia Geral da ONU para tratar do assunto, realizada no início deste mês, representantes de vários países se apresentaram acompanhados de ursinhos de pelúcia e brinquedos para destacar a importância de cuidar das crianças em situações de conflito.
Fabíola Mancilha Junqueira é formada em psicologia (FMU), com mestrado em psicologia clínica (PUCSP). Aluna da especialização em jornalismo científico (Labjor/Unicamp)