A indústria do frio

Por Adilson Roberto Gonçalves e Cristiane Bergamini

Hoje, chegar em casa e pegar uma água gelada ou congelar um alimento é bem trivial, mas nem sempre foi assim. Houve um tempo em que o armazenamento era feito com recursos de outros alimentos, como o sal ou o açúcar que ajudam na conservação, retardando a putrefação.

Pensar na vida moderna sem um refrigerador é impraticável, tanto que está entre os 50 objetos mais importantes da economia moderna, já que não é tão somente na alimentação que tem influência, mas também na medicina, pois é de suma importância na conservação do sangue e de muitos medicamentos e vacinas. Contudo, há, ainda, muitas localidades nos dias de hoje que não fazem o uso dessa tecnologia. É o caso de comunidades isoladas que nem sequer têm energia elétrica.

O frio passou a ser usado, primeiramente, enterrando-se os alimentos antes do desenvolvimento dos trocadores de calor e de todo o estudo de eficiência energética a eles associada. A necessidade da sobrevivência antecedeu ou mesmo deu condições para a otimização dos esforços para a busca e conservação de alimentos.

Com o desenvolvimento econômico e tecnológico houve também maior aumento da demanda e uso da energia, o que implica diretamente numa melhor qualidade de vida e ganhos diretos para a sociedade, gerando aumento da produtividade, competitividade, geração de empregos e ganhos sociais, como o acesso e uso de tecnologias e eletrodomésticos, como o refrigerador, por exemplo.

A criação de um equipamento que mais se aproxima do que chamamos hoje de refrigerador data de 1856, quando uma fábrica de cerveja encomendou um equipamento ao australiano James Harrison que refrescasse o seu produto durante o processo de fabricação. Usando o princípio da compressão de vapor foi construída, então, a primeira máquina refrigeradora, que serviu também de grande contribuição para a indústria da carne processada na exportação desse alimento.

Grosso modo, o que está por trás do funcionamento de um refrigerador se deve à pressão de uma mistura de gases e/ou vapores associados com uma solução concentrada de água e amônia e, ao final do processo, tal solução misturada com o hidrogênio passa pelo evaporador e produz o resfriamento.

A grande questão está justamente nos gases que são utilizados. No início era o CFC (clorofluorcarbono) – gás usado em refrigeração (ar condicionado e geladeiras, aerossóis, espumas plásticas e solventes) que destrói a camada de ozônio, grande responsável por impedir a entrada dos raios ultravioleta do sol na Terra. Sem essa camada protetora, a incidência de câncer de pele aumentaria significativamente e algumas espécies de plantas e animais estariam seriamente prejudicadas.

Assim, o gás que resfria a geladeira esquenta o planeta. Daí, surgiu a necessidade de se pensar em uma solução ambiental urgente. Foi quando os países integrantes da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) se deram conta da importância de se pensar em uma substituição do gás utilizado na época. Foi então que estados norte-americanos, mais notadamente a Califórnia, aceleraram o processo de melhoria tecnológica e eficiência energética desses equipamentos da indústria do frio (frigoríficos). Com a preocupação pela destruição cada vez mais acelerada da camada de ozônio, é firmado, em 1987, o Protocolo de Montreal, que entrou em vigor em 1989, com o comprometimento de 150 países a terem ações que freassem o aumento dessa destruição. Uma das ações foi a diminuição gradativa do uso do CFC, chegando até a proibição do seu uso em alguns países.

Porém, a solução foi emergencial e o crescimento da área de destruição da camada de ozônio, de fato, não aumentou ainda mais. O CFC foi substituído, então, pelo HFC (hidrofluorcarbono) que não agride a camada de ozônio, mas tem forte impacto no aquecimento global. Por isso, era preciso mais.

Uma reunião com autoridades mundiais acontece em 2016, em Kigali, Ruanda, e nova proposta é realizada, dessa vez com 197 países, com o compromisso de limitar e reduzir do uso dos HFCs, chegando em 2047 a uma diminuição do consumo total de 80% a 85%. Além disso, é estabelecido, nesse tratado ainda, que os países ricos se comprometam a ajudar os pobres a financiar a substituição dos seus equipamentos. A ideia é que se tenha um menor uso de energia agregado e maior eficiência no resfriamento, além da diminuição considerável no uso do gás.

No Brasil, toda a ação, de 2005 a 2015, se deu mais intensamente voltada para as famílias de baixa renda, em que os refrigeradores eram substituídos por aparelhos novos, mais eficientes. Os antigos eram recolhidos, retirava-se o gás e sucateava-se o equipamento, informa Gilberto De Martino Jannuzzi, da Universidade Estadual de Campinas e diretor do International Energy Initiative (IEI-Brasil), que participou desse projeto, com o governo, de substituição das geladeiras com estudos e pesquisas sobre equipamentos mais eficientes. Além disso, outras ações foram percebidas como o incentivo à aquisição desses e de outros aparelhos classificados como linha branca, com a redução de impostos.

Como resultado das melhorias técnicas, consequentemente, diminui-se o custo dos serviços agregados, pois houve melhora na eficiência energética desses produtos, ou seja, maior eficiência com menor gasto de energia. Porém, esse ganho traz o “rebound effect”, como é chamado por alguns estudiosos. Com um custo cada vez menor, tem-se aí uma natural mudança de comportamento pela sociedade e indústria, pois adquirem com mais facilidade tais produtos e serviços e, consequentemente, tem-se o aumento da demanda e uso de energia, o que implica na diminuição do ganho obtido da economia gerada pela maior eficiência adquirida, além de outras consequências, como as ambientais – devido à diminuição dos resultados sobre a redução das emissões de gases de efeito estufa.

Com isso, outros programas surgem para não barrar o crescimento e, ao mesmo tempo, tornar todo esse processo mais sustentável. É a campanha pelo uso racional e conservação de energia. Um desses programas surgiu no Brasil em 1985, o Procel, que teve como grande objetivo a racionalização da produção e do consumo de energia elétrica para se evitar desperdícios, reduzindo, assim, os custos e investimentos.

Além desse, há ainda o Programa Brasileiro de Etiquetagem (PBE), coordenado e regulamentado pelo Inmetro que informa ao consumidor a eficiência de cada produto em relação ao consumo de energia elétrica.

As ações não param por aí. Ainda de acordo com Jannuzzi, outras formas são necessárias para que se busque mais eficiência com menor gasto de energia e o uso racional pela população e indústrias. Equipamentos mais eficientes vão surgindo conforme acontecem os avanços tecnológicos. “De acordo com o Tratado de Kigali, vamos ter que reduzir o gás hoje utilizado nos refrigeradores e, assim, novas necessidades tecnológicas vão surgindo. Podemos já nos direcionar, por exemplo, para a geladeira do futuro, que terá a missão, entre outras coisas, de uma autogestão quanto ao seu funcionamento de liga/desliga, ficar em stand-by quando necessário e ainda processar gelo nos períodos em que está ligada e o utilizar para manter o resfriamento enquanto estiver desligada. Será mais eficiente também porque não será necessário abrir para saber o que tem lá dentro. Um sistema de sensor e comunicação passa essa informação para uma tela externa. Outras informações podem ainda serem passadas ao usuário pelo próprio celular, onde ele estiver. É uma geladeira conectada à internet. É a inclusão na chamada Internet das Coisas [IoT, na sigla popularizada em inglês]”, completa Jannuzzi.

Pela IoT, no caso das geladeiras, o usuário terá a informação, por exemplo, de quando um alimento está próximo ao vencimento ou de acabar, sugestão de receitas e informação de quais produtos faltam e ainda indicar o mercado mais próximo para aquisição daquele produto. Isso não é para um futuro tão distante, pois alguns desses recursos já estão disponíveis em alguns países e a tendência será o uso desse tipo de equipamento, pois gera menos gasto de energia, possui mais eficiência e menor impacto ao meio ambiente.

Como se vê, de 1856 até os dias atuais, muita coisa mudou em relação ao uso e conservação dos alimentos, mas muitas implicações, claro, também são sentidas por todos. Há o acesso à energia gerando mais conforto, mais facilidade e praticidade no dia a dia, melhoria na qualidade de vida, mas há que se ter também uma nova mudança de comportamento pela sociedade, a do uso racional e mais controlado da energia de que dispomos.

Alimentos frios, cérebros quentes

O cérebro é um órgão de alto custo para o corpo. No caso do ser humano, o cérebro representa cerca de 2%-3% da massa de todo o corpo, mas consome um quarto da energia demandada, isso quando ele está em repouso, segundo Yuval Noah Harari em seu livro best seller Sapiens: Uma breve história da humanidade. A neurocientista brasileira Suzana Herculano-Houzel, baseando-se em seus próprios resultados, aponta para um valor equivalente a um quinto da energia. De qualquer forma, o cérebro demanda dez vezes a energia esperada em função de sua massa. Segundo Harari, que destaca um tópico interessante em seu livro intitulado “O custo de pensar”, o cérebro de outros primatas requer apenas 8% da energia. Comparativamente, nosso cérebro é três vezes mais oneroso, mas a medida da capacidade intelectual é muito maior que isso.

Eficiência energética é o que está por trás da evolução do hábito de se alimentar. Provavelmente caminhando por campos recém incendiados, nos deparávamos com animais e tubérculos carbonizados que foram apreciados como alimento e, independente do gosto, mostraram-se mais fáceis de serem deglutidos e ingeridos. Harari avalia que “os chimpanzés passam cinco horas por dia mastigando alimentos crus, enquanto que uma hora é suficiente para as pessoas comerem alimentos cozidos”.

Tunicados desenvolvem cérebro apenas para achar um local para se fixar e depois o descartam, devido a esse alto custo. Uma vez cumprida sua missão, o cérebro desses inusitados animais torna-se desnecessário e consumiria muito alimento na continuação da vida do organismo. A degenerescência cerebral pode estar relacionada com essa pré-programação, uma vez que manter o cérebro funcionando é muito caro. E desnecessário, no conceito puramente evolutivo.

Mas os especialistas em alimentação apontam para outras vertentes nessa evolução, não apenas a questão da conservação pelo frio e suas implicações econômicas e sociais, como já avaliada por Jannuzzi.

O cru e o cozido

O subtítulo é parcialmente emprestado de extenso artigo da revista Piauí no qual a cocção é avaliada relativamente ao consumo de alimentos crus, não apenas pelo que representam de modismo (os crudívoros), mas também pela hipótese de desenvolvimento cerebral pela ingestão do alimento preparado. Traçando paralelos com a engenharia, questões cinéticas e termodinâmicas estudadas pelo intelecto foram também empregadas para o estabelecimento do cérebro humano como é hoje.

Suzana obteve destaque internacional ao desenvolver um método simples para calcular o número de células cerebrais – os neurônios – a partir da contagem de núcleos. Em relação a seu trabalho sobre o desenvolvimento do cérebro humano, ela revelou os detalhes de sua pesquisa em longa matéria publicada em 2012, quando ainda atuava na UFRJ, antes de sua decisão de ir trabalhar no exterior.

Tempo e energia são as variáveis aceitas como determinantes na evolução da forma como nos alimentamos. O trabalho anterior de Wrangham levava em consideração apenas a modificação da estrutura macromolecular dos alimentos ingeridos, enquanto as pesquisadoras brasileiras Suzana Herculano-Houzel e sua orientanda Karina Fonseca-Azevedo incluíram o componente tempo, também avaliado por Harari em seu livro.

Futuro morno?

A conservação dos alimentos evolui para outra direção – a termodinâmica – mas carrega a mesma necessidade de otimização do tempo usado na alimentação. Esforços coletivos para caçar em grande quantidade eram compensados pelo desenvolvimento de técnicas de conservação dos alimentos, tratados aqui com ênfase na tecnologia do frio.

Pode-se questionar os hábitos alimentares, se são necessidades e decisões planejadas ou apenas modismos. Veganos, vegetarianos e os já mencionados crudívoros estabelecem uma prática alimentar contrária ao estabelecido pela evolução que nos tornou os seres pensantes que somos, mas com cérebro oneroso, ainda que o custo para obter e conservar os alimentos diminui em escala exponencial. Suzana sumariza parte de suas conclusões no livro A vantagem humana: como nosso cérebro se tornou superpoderoso, cuja edição traduzida para o português foi publicada em 2017.

Os hábitos mesclando-se com modismos podem ser medidos pelos resultados de busca por palavras-chave na internet. No google, “alimentação saudável” retorna 2,4 milhões de citações, que é menos da metade do número de citações sobre “emagrecimento” (cerca de 6 milhões). Em tempos de busca por fórmulas “milagrosas” e rápidas, podemos estar perdendo nossa capacidade cerebral de buscar equilíbrio – termodinâmico ou consensual – na alimentação.

Ironicamente, Karina Fonseca-Azevedo afirma que se usasse tanto tempo para mastigar, o ser humano não teria como usar a boca para desenvolver uma linguagem. Mas isso é assunto para outra matéria.

Referências bibliográficas

Magalhães, A. S. e Domingues, E. P. “Aumento da eficiência energética no Brasil: uma opção para uma economia de baixo carbono?” Economia Aplicada, v.20, n.3, 2016, pp. 273-310. Disponível em https://www.revistas.usp.br/ecoa/article/download/124395/120883

Esteves, B. “O cru, o cozido e o cérebro”, Piauí, ed. 77, fev. 2013. Disponível em http://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-cru-o-cozidoe-o-cerebro/

Adilson Roberto Gonçalves é bacharel em química (Unicamp), doutor em ciências (Unicamp), pesquisador da Unesp e pós-graduando em jornalismo científico pelo Labjor/Unicamp
 
Cristiane Bergamini é formada em comunicação social (PUC Campinas), com mestrado e doutorado em planejamento de sistemas energéticos (Unicamp). Atualmente é aluna do curso de especialização em jornalismo científico (Labjor/Unicamp).