Por Rogério Bordini
Medir taxas de mortalidade em guerras é crucial para entender o impacto da violência, mas esbarra em desafios como vieses políticos e subnotificação. No conflito em Gaza, essa imprecisão é agravada por ataques a centros médicos e difícil acesso a corpos.
No necrotério do Hospital Nasser, no sul de Gaza, auxiliares de necropsia e médicos legistas envolvem corpos das vítimas de bombardeios aéreos israelenses em panos brancos, enquanto resistem ao odor de decomposição que permeia o ambiente. Eles buscam por informações sobre os corpos com afinco: nomes, carteira de identidade, idade, sexo – qualquer resquício de identificação aqui importa. Apenas vítimas identificadas ou requisitadas por familiares podem ser enterradas e incluídas nas estatísticas de mortes da guerra, conforme relatado pelo Ministério da Saúde de Gaza, principal instituição que contabiliza diariamente a mortalidade na região. Corpos não identificados permanecem armazenados na geladeira do necrotério por semanas ou meses.
Um artigo publicado em julho no periódico The Lancet analisa o número de mortes em Gaza após o ataque do Hamas e a subsequente invasão israelense, iniciada há um ano. Em 19 de junho de 2024, o Ministério da Saúde de Gaza reportou 37.396 palestinos mortos, número contestado pelas autoridades israelenses, mas aceito pelos serviços de inteligência de Israel e organizações internacionais, como a ONU e a OMS. Desde 2 de outubro de 2024, estima-se que o número oficial ultrapassou 41.000, com tentativas de distinguir entre mulheres, crianças e idosos, mas sem divisão entre civis e combatentes, classificados somente como “agressão israelense” como causa da morte.
Contudo, o estudo sugere que o número de mortes reportado está subnotificado. Organizações sem fins lucrativos, como a Airwars, que acompanha danos a civis em países afetados por conflitos, identificou discrepâncias nos nomes das vítimas, indicando que muitas mortes podem não ter sido contabilizadas. Além disso, a ONU estima que mais de 10.000 corpos podem estar enterrados sob os escombros de edifícios destruídos.
Os autores do trabalho ainda destacam as consequências indiretas dos conflitos armados para a saúde pública, como o aumento da mortalidade por doenças e a escassez de recursos. Em conflitos recentes, as mortes indiretas em Gaza podem ser de três a quinze vezes superiores às diretas. Com uma estimativa de quatro mortes indiretas para cada direta, os 37.396 óbitos registrados em Gaza poderiam resultar em até 186.000 mortes no total, representando cerca de 7,9% da população da região palestina, estimada em 2.375.259 habitantes. Um relatório de 7 de fevereiro de 2024, com 28.000 mortes diretas, previu que, sem um cessar-fogo, o total poderia variar entre 58.260 e 85.750 até 6 de agosto de 2024, dependendo de epidemias ou escaladas no conflito.
Os pesquisadores enfatizam a urgência de uma trégua nos ataques e a distribuição de ajuda humanitária, como suprimentos médicos e alimentos. Além disso, ressaltam a importância de documentar os números de mortes, escala do sofrimento para fins de responsabilidade histórica e futuros esforços de recuperação, mesmo que sejam tarefas complexas.
Cada número é importante
Em 6 de julho de 2008, os EUA bombardearam uma festa de casamento em Deh Bala, Afeganistão, matando 47 civis, incluindo duas noivas de 18 anos. De lá pra cá, esse e outros incidentes levaram a mudanças drásticas nas regras de engajamento para reduzir mortes civis. De acordo com uma pesquisa da revista Social Science History, que analisa a mortandade de civis em combates ao longo da história, o ato de contar vítimas em conflitos é recente: do fim do século XIX, durante e após grandes conflitos como a Guerra Civil Americana (1861-1865) e a Primeira Guerra Mundial (1914-1918).
Esse tipo de contagem em guerras é crucial para entender o sofrimento humano, promover a responsabilidade política e documentar o impacto histórico dos conflitos. Além disso, é importante para identificar violações de direitos humanos e avaliar se as ações militares respeitam a proteção civil. Também influencia em respostas humanitárias, por meio da alocação de recursos e identificação de crises que demandam intervenções urgentes.
Mas registrar o número de mortes em centros urbanos densamente povoados, como os de Gaza, apresenta desafios. Corpos de vítimas difíceis de serem recuperados e/ou que não foram notificados podem ser deixados de fora. Somente quando o conflito ameniza ou termina, pesquisadores podem iniciar estimativas mais robustas da mortalidade geral por meio de modelos e ferramentas estatísticas.
A contagem em guerras baseia-se em diferentes metodologias. Relatórios de governos, ministérios da saúde e ONGs, estudos demográficos sobre mudanças populacionais, modelos estatísticos, monitoramento de notícias locais e nas mídias sociais são algumas delas. Organizações como Armed Conflict Location & Event Data e Our Wolrd in Data coletam e codificam informações sobre violência política e eventos significativos de fontes de vários idiomas. Dados incluem ações de governos, rebeldes, milícias e civis, e são publicados semanalmente, com detalhes como tipo de evento, atores, localização, data e fatalidades.
No entanto, as contagens podem esbarrar em obstáculos. O acesso a informações confiáveis é frequentemente restrito durante conflitos, uma vez que governos e militares podem manipular ou subestimar os números de vítimas para ganhos políticos, enquanto observadores independentes podem não conseguir acessar zonas de conflito. Um método comum de contagem, por exemplo, é o de pesquisas domiciliares em que uma amostra da população é questionada sobre falecimentos em um período. Essa abordagem foi utilizada em conflitos no Iraque e República Centro-Africana, mas sua aplicação em Gaza seria complicada devido ao deslocamento constante de civis e ao risco para coletores de dados.
Além disso, no caso de Gaza a contagem tornou-se mais imprecisa quando centros médicos tornaram-se alvos de ataques, segundo investigação da Nature. Nas primeiras semanas da guerra, as listas iniciais do Ministério da Saúde de Gaza mostraram que os dados de mortalidade seguiam tendências semelhantes aos índices levantados pela Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Oriente Próximo (UNRWA), instância que assiste mais de 4 milhões de refugiados palestinos. No entanto, após os ataques a centros de saúde, a capacidade do ministério de contar fatalidades foi prejudicada, sobretudo após os ataques ao Hospital Al-Shifa. A OMS relatou que, em 17 de setembro, menos da metade dos 36 hospitais de Gaza ainda estavam em funcionamento.
Por fim, ainda segundo o estudo da Social Science History, quantificações precisas de vítimas também são essenciais para garantir justiça de transição. Segundo a ONU, o termo refere-se a um “conjunto de abordagens, mecanismos (judiciais e não judiciais) e estratégias para enfrentar o legado de violência em massa do passado, atribuir responsabilidades e exigir a efetividade do direito à memória e à verdade, fortalecendo as instituições com valores democráticos e garantindo a não repetição das atrocidades” (tradução livre).
Em meio à derrota humana dos embates em Gaza, registrar memórias, histórias, inocências, inexistências é, no mínimo, um ato humanitário. A contagem de vidas perdidas transcende meras estatísticas; torna-se testemunho do sofrimento coletivo, responsabilidade histórica e imperativo moral que exige a atenção da comunidade internacional.
Rogério Bordini é doutor em artes visuais (Unicamp) e em interação humano-máquina (Helmut Schmidt University). Também é mestre em educação e graduado em educação musical (UFSCar). Atualmente cursa especialização em jornalismo científico no Labjor/Unicamp.