Emissão de gases de efeito estufa, lixo, escombros, e contaminação da água e do solo comprometem a qualidade de vida das pessoas e do meio ambiente
De acordo com o monitoramento realizado pela Geneva Academy, há mais de 110 conflitos armados ativos pelo mundo. A guerra mais atual entre Israel e Hamas começou em outubro de 2023 e segundo o historiador francês Jean-Pierre Filiu há mais de 38 mil mortos, número que pode dobrar ou triplicar em virtude da fome e epidemias. Segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, a quantidade de refugiados na Faixa de Gaza ultrapassa 1,7 milhão de pessoas e há milhares de feridos. Além da tragédia humana, o meio ambiente também é uma vítima do confronto.
A guerra é um acelerador do colapso ambiental. Para Luiz Marques, professor aposentado do Departamento de História da Unicamp, há “quatro maiores formas de interferência humana na biota planetária. Primeiro é a mineração, com ênfase em combustíveis fosseis. Em segundo está a agropecuária, commodity, que é chamada ingenuamente de sistema alimentar. O terceiro é a poluição química e industrial, geradora de plástico, fertilizantes e agrotóxicos, e em quarto são as guerras que hoje estão em uma escala enorme”.
A interferência das guerras nos sistemas naturais se deve a dois fatores principais. “Ela destrói a biota nas regiões em que está ativa e é uma grande produtora de gases de efeito estufa”, explica Marques. De acordo com o Observatório de Conflito e Meio Ambiente, no âmbito local, a guerra gera desmatamento, destrói infraestrutura agrícola, poços e plantações, o que resulta em mudanças no clima local, insegurança alimentar, e contaminação do ar, água e solos.
No âmbito global, uma pesquisa conduzida por Stuart Parkinson e Linsey Cottrell indica que as emissões de gases de efeito estufa provenientes da guerra correspondem a 5,5% do que é emitido no mundo. Isso significa que se os militares fossem um país, teriam a quarta maior emissão global, superando a Rússia.
Emissões, resíduos e saneamento
Benjamin Neimark, da Queen Mary University of London, e colaboradores publicaram um artigo no qual demonstraram que as emissões de gases de efeito estufa durante os primeiros dois meses de guerra na Faixa de Gaza foram maiores do que a soma anual de 20 países. A pesquisa realizada por Stuart Parkinson e Linsey Cottrell indica que houve emissão de dióxido de carbono estimada entre 420 mil e 652 mil toneladas durante os seis primeiros meses de guerra naquele território. As fontes incluem a fabricação e detonação de explosivos, foguetes, aeronaves, tanques e combustível de veículos.
A gestão de resíduos sólidos é também um desafio na Faixa de Gaza. O relatório da organização PAX mostra que, até junho de 2024, a região contava com 330 mil toneladas de lixo, volume suficiente para encher mais de 150 campos de futebol. A destruição local gerou 39 milhões de toneladas de escombros, o que equivale a mais de 107 kg por metro quadrado, detalha o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma).
Em decorrência da suspensão da coleta de lixo e do acesso a aterros, o descarte dos resíduos na região de Gaza tem ocorrido a céu aberto, o que atrai roedores, moscas, mosquitos e insetos, dissemina doenças gastrointestinais, cólera e irritações na pele, além de gerar rios de chorume. Já a queima do lixo gera problemas respiratórios e aumenta as taxas de linfoma e de envenenamento infantil por chumbo, detalha o relatório da PAX. O descarte inadequado do lixo hospitalar prolifera doenças como hepatite B e C. Segundo o Pnuma, os escombros oferecem riscos devido à poeira que geram e em virtude de restos mortais sob eles que acabam colocando a saúde das pessoas em risco e degradando o meio ambiente.
O abastecimento e o tratamento de água estão comprometidos na Faixa de Gaza. O relatório da Arava detalha que 65 mil bombardeios terrestres e aéreos foram feitos em 89 dias de guerra, fazendo com que 97% da água se tornasse imprópria para o consumo. O levantamento realizado pelo Pnuma mostra que 57% da infraestrutura hídrica no local foram destruídos ou parcialmente danificados, incluindo usinas de dessalinização, 162 poços e três empresas que fornecem água. Os dados do Pnuma descrevem que antes da guerra o suprimento de água era de 851 litros per capita, já em abril de 2024 o volume chegou a 2-8 litros a depender da localidade.
A escassez de água gerou o aumento do preço do caminhão tanque, o qual disparou de 7 para 150 NIS (moeda local). Diante disso, a população tem que recorrer a fontes alternativas, a exemplo de poços agrícolas compostos por água salobra e com níveis de sal superior a 3 mil miligramas por litro, além de conterem a presença de produtos químicos, aponta o relatório do Pnuma. Nos três primeiros meses da guerra, 179 mil casos de infecção respiratória aguda, 136 mil casos de diarreia em crianças (taxa 25 vezes maior do que o período antes do conflito), 55 mil casos de sarna e piolhos e 4,6 mil casos de icterícia foram registrados na Faixa de Gaza, denuncia a ONU. Com a falta de mecanismos de tratamento da água, há uma contaminação de água doce que ainda resta e do solo por diversos microplásticos e produtos químicos.
“A guerra é considerada como um dos fatores de propulsão do ecocídio”, afirma Marques. Os especialistas do Stop Ecocide Foundation definem o ecocídio como “atos ilegais ou irresponsáveis cometidos com o conhecimento de que há uma probabilidade substancial de danos ambientais graves e generalizados ou de longo prazo causados por esses danos”.
Divulgação de dados e debate público
Os países não são obrigados a divulgar suas emissões de gases de efeito estufa que ocorrem no contexto da guerra. “A Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas e o Acordo de Paris estabelecem a obrigação dos países signatários de comunicar à ONU os seus inventários de emissões, mas os inventários nacionais militares de emissão estão fora, porque eles argumentam que isso de alguma maneira poderia comprometer informações de segurança nacional”, explica Marques. É um “tratado voluntário, se o país quiser, ele comunica, e se quiser pode comunicar só o consumo de combustível fóssil, ou seja, o consumo de combustível que os militares utilizaram, que é o único indicador que eles entendem que não compromete eventuais segredos nacionais”, completa o professor.
A respeito da discussão dos impactos socioambientais da guerra na agenda acadêmica, “estamos muito melhores do que há cinco anos, mas no âmbito governamental, se você pegar os três últimos processos de campanhas eleitorais que ocorreram na Europa, nos EUA e no Brasil, a temática ambiental não ocupa nem de longe uma posição significativa”, diz Luiz Marques. Segundo o Observatório de Conflitos e Meio Ambiente, a academia, sociedade e governos precisam se articular para garantir que os danos ao meio ambiente provocados pelas guerras sejam incorporados nas políticas nacional e internacional.
Juliana Vicentini é doutora em Ciências (USP) e cursa especialização em Jornalismo Científico no Labjor/Unicamp