Por Victória Flório
A forma geométrica dessa terra que nos sustenta é redonda. Isso não tem a ver com a forma “objetiva” do mundo-considerado-um-objeto, mas com o lugar das coisas no mundo em que se habita. De maneira recorrente, quando é necessário falar do “lugar das coisas” e descrever os mundos ocupados em termos topológicos, o circular é evocado. Assim, a imagem da Terra redonda está presente em várias culturas e épocas, e muito nas culturas herdadas da antiguidade greco-latina.
“Disseram-lhe que a vida era bela. Não! A vida é redonda”.
Jöe Bousquet*
Uma serpente engolindo a própria cauda. O miolo da flor. O caroço do abacate. Coroa. Anel. Colar. Pandeiro. Relógio. Uma rima elegante. Um texto coeso. Uma roda de conversa. No universo desses objetos, símbolos, ritmos, metáforas e representações há, pelo menos, uma semelhança: todos remetem ao imaginário do redondo. O que é bem encadeado é redondinho e o excessivo é redundante. Representada por um círculo, no desenho, a cabeça está no topo do corpo do ser pensante. Aquele que está totalmente errado está “redondamente errado”. O ciclo e a volta envolvem a noção de completeza. A palavra divulgada circula. Na vizinhança está a redondeza. Escapar de um ciclo é redenção. Redimir-se é voltar para ele. A bússola – redonda – aponta a direção. Valores não inteiros estão “quebrados”, “arredondados” por aproximação.
De tudo que pode ser descrito pelas topologias circulares, o mais fundamental e necessário para a humanidade é justo o que redondamente se encontra debaixo dos pés de todo e cada ser humano. A Terra.
Parte da natureza, o homem é capaz de perceber a si mesmo e ao outro dentro dela. A relação que o homem estabelece com a Terra envolve esse processo de reflexão e alteridade que passa pela apreensão das formas do mundo físico e sua transformação em ideias, que são criação em potência. Os círculos aparecem na natureza, nas representações dela, e nas criações humanas. O filósofo grego Platão (429–347 a.C.) estabeleceu uma dialética entre as formas pensadas e as existentes no mundo físico em sua teoria das formas. As formas pensadas são perfeitas, dentre elas a mais perfeita é o círculo, enquanto as formas do mundo físico são cópias imperfeitas das ideias. O que pensou Platão tornou-se uma forte tradição no ocidente e pode ser comparado a outras relações dialéticas. Dentro-fora do círculo. Dentro-fora da Terra.
A vontade e a necessidade de determinar o lugar das coisas, situar-se no espaço, levou as pessoas a fazerem mapas. Os mapas representam os céus, as águas e as terras. Eles mostram a disposição das personagens das narrativas mitológicas encaixadas com algumas das estrelas conhecidas, na abóbada celeste. Nos mapas das águas, as cartas náuticas, apareciam os monstros marítimos mitológicos.
O esforço para categorizar e estabelecer relações entre as coisas no espaço e no tempo, em uma aproximação bem simplista, foi herdado pela ciência. Para o teórico da comunicação Marshall MacLuhan (1911-1980), sem os mapas, o mundo da ciência moderna e da tecnologia não existiriam. De forma genérica, a ciência estabeleceu regras e representações para explicar os fenômenos da realidade e ela encaixou as narrativas mitológicas em uma outra dinâmica. No entanto, essas regras e representações vão além da percepção sensorial da realidade e se ligam à imaginação, defendeu o historiador Michael Matthews.
Principalmente na astronomia, uma área que envolve um sentimento de impotência, insignificância e de união humana diante da magnitude do cosmo, há um diálogo com a filosofia e com a imaginação. No livro Masks of the Universe (em tradução livre Disfarces do Universo) o astrônomo Edward Harrison fala que o universo ocupado pelos seres humanos, no qual eles compartilham a existência é, em grande parte, uma coisa criada por eles.
Para alguns historiadores, situar-se no tempo é compreender as ideias sobre presente, passado e futuro em diferentes épocas. Eles exploraram a fronteira entre imaginação e história, como o britânico R.G. Collingwood. Na década de 1940, Collingwood argumentou que o conhecimento histórico estava fundamentado na imaginação. Na ficção, o romance Baudolino, do filósofo e linguista Umberto Eco, trouxe à tona a discussão sobre a tênue linha que separa as esferas do real e do imaginado. Também os historiadores exercem um efeito disciplinador sobre a imaginação.
Os universos imaginários que as civilizações ocidentais contemporâneas habitam têm sido constantemente recriados pelos mitos, pela literatura, pelas ciências naturais e pela história. Todos esses princípios ordenadores da existência humana derivam de alguma maneira da imaginação.
Mitos redondos
É frequente a associação dos movimentos do que é circular e ideias de destruição, criação, retorno, recomeço, excesso isenção e redenção. Essas dinâmicas do círculo se encaixam com os mitos de criação. A Terra gira e com ela reprisam os dramas da existência humana.
Muitos mitos estão associados à imagem das serpentes. Jörmungandr é uma serpente cósmica da mitologia nórdica que, depois de confinada ao fundo dos mares por Odin, cresce tanto que envolve o planeta e reencontra a própria cauda. Ourobouros, nome de origem grega – oura significa cauda e boros significa devora – é uma serpente que engole a si própria. Ela retrata a condição humana, a repetição.
Na antiga religião babilônica, a deusa do sal e do mar, do caos e da criação primordial do cosmos – Tiamat – é representada como uma serpente marinha ou dragão. O rei Marduk divide Tiamat ao meio e usa cada uma de suas metades para criar a abóbada do céu e a Terra. Em um ensaio filosófico de 1941 do escritor Albert Camus (1913-1960), Sísifo, o mais astuto de todos os mortais, é condenado a empurrar uma pedra até o ponto mais alto de uma montanha. A pedra rola montanha abaixo e seu drama recomeça.
A roda da fortuna da cantata Carmina Burana, do compositor alemão Carl Orff (1895-1982), representa as oscilações entre sorte e azar que governam os destinos dos seres humanos. A história de Hécuba, a rainha que viu morrer quase todos os seus filhos e foi transformada em cadela foi retratada em alguns versos desse grande conjunto de poemas dos séculos XI e XII.
Sorte imensa
E vazia,
Tu, roda volúvel
És má,
Vã é a felicidade
Sempre dissolúvel
[…]
A roda da Fortuna gira;
eu desço, diminuído;
outro é levado ao alto;
lá no topo
senta-se o rei no ápice?
que ele tema a ruína!
pois sob o eixo lemos
o nome da rainha Hécuba.
O Ñamandu dos Guaranis é o Grande Mistério, o Imanifestado, o Um. Ele é representado por um círculo no meio do qual se encontra um ponto. Kaká Werá Jecupé, escritor de origem Tapuia, conta no livro Tupã Tenondé que o “Pai Primeiro criou-se sozinho na vazia noite iniciada. Assim como as plantas, o Ñamandu contém dentro de si o germe de seu renascimento. No idioma Guarani, Ñande Ru Tenondé significa literalmente “Nosso Pai Primeiro”. Trechos de um poema da tradição oral Guarani recontam a criação do mundo.
Nosso Pai Primeiro
criou-se por si mesmo
na vazia noite iniciadaCírculo desdobrado da sabedoria inaudível,
fluiu-se divino todo ouvir
as divinas palmas das mãos portando o bastão do poder,
as divinas palmas das mãos feito ramas floridas
tramam o Imanifestado, da dobra de sua evolução
no meio da primeira grande noite.
Os islâmicos também sacralizaram os movimentos do redondo. O êxtase dos dervishes girantes da tradição sufista do Islã é rodar em sintonia com a Terra, preservando o equilíbrio do Cosmo. Para eles, o movimento giratório é condição fundamental da existência humana e tudo o mais que existe se move em giros.
No Brasil, as baianas giram com suas saias rodadas homenageando o sagrado e o profano. Elas lavam a alma e as escadarias em louvor ao Senhor do Bonfim, na Bahia. No Rio de Janeiro, as baianas rodam a avenida sambando na festa do Carnaval, e no Pernambuco dançam o Maracatu. A mensageira entre o mundo dos orixás e o mundo dos humanos é a Pombagira, na religião brasileira de origem africana umbanda.
Topologias redondas
A forma geométrica da Terra é redonda. Isso não tem a ver com a forma “objetiva” do mundo-considerado-um-objeto, mas com o lugar das coisas no mundo em que se habita. De maneira recorrente, quando é necessário falar do “lugar das coisas” e descrever os mundos ocupados em termos topológicos, o circular é evocado. Assim, a imagem da Terra redonda está presente em várias culturas e épocas, e muito nas culturas herdadas da antiguidade greco-latina.
Registros da ocupação e da percepção do homem sobre o espaço da Terra [terra e águas e, por fim, dos ares] estão nos mapas e cartas marítimas. Eles são uma forma eficiente de representar e entender as relações com os lugares onde o homem vive e também de expandi-los para outros domínios.
Os mapas aprofundaram e expandiram a consciência de muitas sociedades, na opinião dos professores de geografia e historiadores J.B Harley e David Woodward, e não são importantes apenas do ponto de vista da geografia, mas da arqueologia, astronomia, botânica, geologia, meteorologia e outras ciências que envolvem a percepção e a exploração do espaço e do horizonte. A percepção do horizonte também está relacionada à de círculo, porque, assim como o círculo, o horizonte é aquilo que se vê até uma certa distância e em cada direção.
Seguindo os astros, os homens se lançaram para explorar o planeta cruzando os oceanos de água. Eles temiam justamente os monstros e as serpentes marinhas gigantes de que falavam os mitos de Ourobouros e Jörmungand. As serpentes marinhas e outros animais fantásticos foram retratados nas cartas náuticas, como a do padre sueco Olaus Magnus (1490-1557) – uma das mais antigas do ocidente, de 1539.
Um mundo que inclui navegações transoceânicas precisa levar em conta questões de curvatura da Terra. As viagens incrementaram informações sobre o planeta e os mapas tornaram-se cada vez melhores. Expedições de circunavegação, como a do português Fernão de Magalhães, em 1519, constataram que a Terra era redonda.
A dialética do dentro-fora da Terra
Dentro ou fora da Terra remete a dentro ou fora do círculo. A mesma relação dialética se vê em interior-exterior e em aberto-fechado, observou o filósofo francês Gaston Bachelard (1884-1962). Na cartografia as dificuldades do dentro-fora se manifestam porque é difícil mapear um lugar quando se está dentro dele.
No fim do século XIX, o astrônomo francês Camille Flammarion publicou uma imagem no livro A atmosfera: meteorologia popular que se tornou muito conhecida. Ela retrata uma missionária da Idade Média descobrindo o ponto entre o céu e a Terra.
Observadores do céu começaram a fazer mapas das estrelas que estavam grudadas em uma abóbada celeste. Determinar a profundidade – a distância – das estrelas na abóbada celeste foi sempre um problema para a astronomia. Os primeiros atlas celestes não destacavam as estrelas, mas as figuras mitológicas associadas às constelações, como o mapa de Frederik de Witt (1630-1706), do século XVII.
As observações do céu que o italiano Galileu Galilei (1564-1642) fez com o telescópio mexeram com o imaginário dos escritores. Os telescópios são como lentes de aumento dos olhos da humanidade pousados sobre a Terra e suas imagens influenciaram muito a maneira como se representavam os céus nas cartas celestes.
Escritores começaram a contar histórias que mostravam o homem escapando da Terra – escapando do círculo – e explorando novos mundos nos céus. O poeta e espadachim francês Cyrano de Bergerac (1619-1655) e o astrônomo Johannes Kepler (1571-1630) escreveram sobre viagens do homem à Lua nas obras Viagem aos impérios do sol e da lua (1619) e Somnium (do latim sonho, foi escrita em 1634). A imaginação se conectou à astronomia por meio do potencial não realizado das observações celestes, extrapolando-as e ligando a informação disponível à inspiração. As histórias começaram a relatar não só as viagens espaciais dos seres humanos, mas a chegada de alienígenas à Terra como no conto “Micrômegas”, do filósofo iluminista Voltaire (1694-1778), escrito em 1752.
Dando um salto no tempo, vê-se que a ciência contemporânea também adotou formas circulares para representar entidades como átomos e o modelo planetário de Bohr, por exemplo. Também reaparecem os movimentos do redondo.
O físico alemão Albert Einstein (1879-1955) disse que a imaginação é mais importante que o conhecimento porque o conhecimento é limitado, enquanto a imaginação circunda o mundo inteiro. Com extratos de diferentes autores, Gaston Bachelard (1884-1962) abordou a fenomenologia do redondo em A poética do espaço. Lembrou ele que “Tudo parece ser em si redondo” e que “A vida é provavelmente redonda”. Quando aquilo que é redondo gira, a repetição é inevitável. Os movimentos circulares da Terra se repetem em torno do Sol. A Lua se repete em torno da Terra. O sangue se repete girando no corpo humano. Os elétrons giram em torno dos núcleos dos átomos. Na poesia repetem-se as rimas, enquanto que, na linguagem do povo, expressões sugerem movimentos do circular na vida: “a vida dá voltas”; “fulano deu a volta em ciclano”, e “beltrano deu a volta por cima”. A vida e o redondo também são poema e diversão, roda gigante e piscina de bolinhas.
De tudo o que pode ser descrito pelas topologias circulares, o mais fundamental e necessário para a humanidade talvez seja justo o que redondamente se encontra em cima da cabeça de todo e cada ser humano. A imaginação.
*Jöe Bousquet (1897-1950) poeta francês que, depois de ferido durante a Primeira Guerra Mundial, passou a vida em uma cadeira de rodas.
Imagem de abertura: Representação de uma serpente abraçando a Terra no oceano do Cosmo e devorando a própria cauda. Ela reproduz tanto a condição humana como a condição de existência das ideias humanas. Ilustração: Victória Flório.
Agradecimentos
Liliane Benevenuto Lemos, Eric Kureck, Fabrício Caluzza Machado e Bruno L’Astorina pelas rodas de conversa.
Victória Flório é formada em física e mestre em astronomia pela USP. Especialista em jornalismo científico pelo Labjor, Unicamp, e doutora em história da ciência pela UFBa. Foi coordenadora da Olimpíada Brasileira de Linguística e tem interesse nas interfaces entre cultura, ciência, história e imaginação. Atualmente é estagiária na revista Pesquisa Fapesp.