Por Fernando Hashimoto
Escrever sobre música para o grande público é uma atividade desafiadora para qualquer autor. Os motivos são muitos porém o principal é a evidente constatação que a linguagem musical não é dominada e codificada pela grande maioria da população. Ao tratar especificamente da história da música erudita brasileira, a qual é um objeto de análise extremamente amplo, tanto com relação ao longo período de tempo a ser coberto como também com relação ao grande volume de produção, há o agravante de termos diversas lacunas documentais a serem preenchidas ou em fase de pesquisa.
Ao assumir esse desafio, o jornalista e crítico musical Irineu Franco Perpetuo, que já tinha se aventurado de certa forma a tratar do assunto em seu livro História da Música Clássica, escrito em 2010, determina duas linhas principais de abordagem em sua obra. A primeira é expressada na introdução de seu livro onde afirma que sua “ideia foi contar a história dessa música de maneira acessível ao leitor ‘leigo’, não-familiarizado com o jargão musical específico”. Outra abordagem do autor pode ser encontrada no próprio título do livro onde o termo “concisa” demonstra o alcance a ser dado pelo autor aos temas apresentados no texto.
Livros sobre história da música cumprem, em geral, a função de atualizar dados sobre a música atual, bem como de trazer novos olhares e leituras sobre fatos e conceitos considerados consolidados até o momento. Ou seja, o que justifica a escrita de livros com temas já discorridos anteriormente é o oferecimento de novas contribuições aos fatos. Deste modo veremos se o livro de Irineu corresponde com essa expectativa.
A história das obras e seus compositores
Os títulos dos capítulos do livro demonstram claramente qual foi a opção do autor de como orientar seu eixo discursivo, e também que ele não pretendeu seguir a clássica organização de livros anteriores sobre o tema, os quais geralmente seguem a divisão de capítulos por períodos cronologicamente definidos da história da música clássica brasileira.
O autor retrata a história da música clássica brasileira por meio de relatos gerais sobre as obras e a trajetória de seus compositores. Não espere encontrar no livro do Irineu uma análise robusta sobre os elementos musicais das obras ou períodos musicais – uma vez que esse nunca foi o objetivo do autor. Não há no livro nenhum exemplo musical ou fragmentos de partitura para ilustrar as obras citadas. Um aspecto que nos cabe ressaltar é que, assim como seus predecessores, o autor releva aos músicos instrumentistas e intérpretes um toque descritivo muito leve e não demonstra como o trabalho conjunto entre instrumentistas e compositores conduziu muitas vezes a história da música de fato, e isso pensando na história da música como um todo e não somente no século 20 e 21 como costumeiramente ouvimos.
Voltando aos capítulos, destaco os intitulados “Mulatismo Musical” e “Polcas, Maxixes e Tangos Brasileiros”. Em “Mulatismo Musical”, o autor contribui para a discussão premente do assunto com uma abordagem mais atual, sob novas perspectivas e de maneira aberta.
“Pelo fato de os músicos mineiros terem sido essencialmente ‘pardos’, Curt Lange criou a expressão mulatismo musical. O musicólogo acreditava que sua educação seguia o esquema de mestre/aprendiz dos outros ofícios. O conservatório, assim, era a casa dos mestres: ‘Lá eles recebiam aprendizes (como os mestres das outras artes), aos quais, muitas vezes, davam hospedagem, vestuário, alimentação e educação, incorporando-os paulatinamente às corporações musicais, na medida do desenvolvimento dos aprendizes e das necessidades dos conjuntos musicais”.
Vemos, portanto, que os compositores mineiros, se pertenciam à mesma classe social do Aleijadinho, encontravam-se em estrato inferior aos poetas árcades, bacharéis membros da elite branca que, a partir de 1750, “lançaram as bases de uma literatura brasileira orgânica, como sistema coerente e não manifestações isoladas”. Estes jamais se dedicariam à música profissionalmente, o que não significava falta de interesse pela arte de Euterpe, da qual eventualmente (como no caso de Gregório de Matos) se ocupavam como diletantes. (p.50)
Em “Polcas, Maxixes e Tangos Brasileiros” o autor ajuda a demonstrar como os gêneros ditos populares influenciaram diretamente e em todos os momentos da história da música “clássica”, quebrando a ideia de que a música popular e a música erudita vivem em universos paralelos e sem comunicação.
“Mas a peça orquestral mais célebre do período brasileiro de Milhaud é Le Boeuf Sur Le Toit (1920), rondó orquestral para uma pantomima para acrobatas e palhaços de Jean Cocteau (1889-1963). Levando o nome de um tango (O Boi No Telhado) de José Monteiro (vulgo Zé Boiadêro), Le Boeuf, na verdade, consiste em um pot-pourri (sem citar nomes de autores ou obras) de várias peças brasileiras daquela época, desde o supra-citado Corta-Jaca, de Chiquinha Gonzaga, até Galhofeira (originalmente para piano solo), de Nepomuceno, passando pelo Tango Brasileiro, de Alexandre Levy, por Amor Avacalhado, de Souza Lima, por sete composições de Marcelo Tupinambá (como Maricota, Sai da Chuva e Viola Cantadeira) e quatro de Ernesto Nazareth (incluindo Escovado e Apanhei-te, Cavaquinho).”(p. 137-138)
A música atual e o futuro
No capítulo mais esperado, pelo menos por mim, um músico intérprete do século 20 e 21, intitulado “Fechando o século XX”, o autor descreve uma lista de obras e compositores de maneira mais reflexiva do que os livros de outros autores que o antecederam… o esperado se fez presente. O livro de Irineu foi escrito em um período onde compositores importantes já haviam falecido, como Gilberto Mendes, Almeida Prado e Cyro Pereira (esses dois últimos professores do departamento de música da Unicamp), o que traz a possibilidade de uma visão mais ampla sobre a extensão da obra desses compositores.
Ao longo das 285 páginas do livro, o autor cita uma grande lista de trabalhos acadêmicos recentes para basear grande porção de seu trabalho, e esse diálogo com essas pesquisas trouxe uma refinada e um refreshing ao tema. O livro de Irineu não trará por exemplo uma lista detalhada dos acervos e documentos sobre a música colonial ou do período do império no Brasil, porém alguns dos textos que tratam do assunto estão listados e o leitor poderá seguir a trilha caso deseje conhecer mais sobre esse assunto, e o mesmo ocorre com vários outros temas.
Mesmo que o livro de Irineu não necessite, há uma lacuna existente em livros de divulgação sobre música com relação ao estudo iconográfico relacionado à história da música brasileira, que traria um contraponto com os materiais e textos já disponíveis, o que é uma das tendências atuais dentro dos estudos musicológicos do momento. Ao falar de imagem, o livro traz belas ilustrações retratando os compositores feitas por Haroldo Ceravolo Sereza.
Fernando Hashimoto é professor de percussão do Departamento de Música da Universidade Estadual de Campinas. Livre docente pela Unicamp, é doutor pela The City University of New York. É Pró-Reitor de Extensão e Assuntos Comunitários da Unicamp, gestão Marcelo Knobel (2017-2020).