Por Fabíola Mancilha Junqueira
O caráter refutável da ciência é um dos pilares que sustenta o desenvolvimento do conhecimento. Faz parte do processo, em diversas áreas do saber, a identificação de um fenômeno, a formulação de dúvidas e hipóteses, a construção de um caminho de investigação e pesquisa, a criação de tecnologias, o compartilhamento de ideias, conclusões e impactos, a fundamentação do argumento, o reconhecimento de limitações e a abertura para novas contribuições – sejam refutando ou ampliando o conhecimento anterior. As disputas de ideias são construtivas no desenvolvimento do conhecimento científico e na elaboração de respostas.
Para José Luiz Ratton, um dos organizadores do Dicionário dos negacionismos no Brasil, professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco, as disputas de ideias no âmbito da lógica científica, com refutações baseadas em evidências ou por fatos, fazem parte do desenvolvimento do saber. “Quando as disputas estão neste âmbito, é parte do jogo. Isso forma uma visão de mundo, um paradigma, ou paradigmas, enquanto cosmovisões de um fenômeno articulado com um conjunto de outros fatores”, pondera.
Muitas vezes, porém, esse caminho não é percorrido da maneira habitual, havendo prejuízo à construção do conhecimento e sobreposição de interesses alheios ao fazer científico. “Isso, por exemplo, pode ser observado na negação produzida intencionalmente pelo lobby da indústria tabagista sobre o efeito do produto em doenças pulmonares”, aponta Ratton.
Guerras da ciência
No Dicionário dos negacionismos, o verbete “guerras da ciência”, escrito pelo professor Marko Monteiro, pesquisador do Departamento de Política Científica e Tecnológica da Unicamp, cita ataques às ciências ao longo da história, além de apontar a intensificação desse movimento nos últimos anos.
As guerras em torno da ciência, cita, vão além dos questionamentos saudáveis que contribuem para o desenvolvimento do conhecimento. São graves ataques que fragilizam a confiança da sociedade nas universidades, instituições de pesquisa, e enfraquecem a participação democrática de diversos grupos. No verbete, o pesquisador aborda o entrelaçamento da ciência com a sociedade e com a política, traçando um histórico de movimentos que ameaçam os debates e colocam a democracia em risco. O artigo que inspirou a discussão do verbete pode ser lido na Revista Tapuya: Latin American Science, Technology and Society.
Para Monteiro, o desmonte da ciência no Brasil já estava posto há alguns anos. “Em 2016 falávamos sobre isso. As universidades começaram a ser alvo de ataques, havia um desfinanciamento do setor, o fim do Ministério da Ciência e Tecnologia, sinais muito claros de desmobilização e, ao mesmo tempo, parcelas importantes da sociedade questionando a universidade, que é onde se faz ciência no Brasil. O negacionismo já estava aparente naquela época e hoje está no poder, nos ministérios, está direcionando a política pública”.
E, voltando algumas décadas e relembrando a época da ditadura militar no Brasil, o autor também menciona como desde então havia a perseguição aos que promoviam a atitude reflexiva do fazer científico. “Expulsar da universidade, de onde se produz conhecimento, ideias e posturas críticas relacionadas à ciência como aliada de movimentos para reduzir pobreza, para produzir uma sociedade mais sustentável”, diz. Naquele momento sobressaiu-se a visão da ciência como uma mera produtora de técnicas, sem relação com a sociedade ou com a política. Houve investimento e incentivo à produção técnica, mas desconsiderando impactos em aspectos importantes como os sociais e ambientais.
“Essa postura tecnocrática venceu. A ditadura dava muito recurso, criava universidades, criava capacidade tecnológica, mas ao mesmo tempo proibia qualquer discussão crítica Isso é muito forte ainda hoje na universidade”, diz.
Fabíola Mancilha Junqueira é formada em psicologia (FMU), com mestrado em psicologia clínica (PUCSP). Aluna da especialização em jornalismo científico (Labjor/Unicamp)