Por Antônio Carlos Diegues e José Eduardo Roselino
É evidente a dependência chinesa indireta de tecnologias de empresas dos EUA. Mas, ainda que superar essas limitações no médio prazo não seja uma tarefa trivial, um observador atento não deve se esquecer do inquestionável sucesso conseguido nas últimas décadas pela política industrial e tecnológica chinesa.
Em artigo recém publicado pelo Instituto de Economia da Unicamp procuramos analisar a evolução da guerra tecnológica entre China e EUA (“Política industrial, tecno-nacionalismo e indústria 4.0: a guerra tecnológica entre China e EUA” TD 401, em https://www.researchgate.net/publication/348279798_Politica_industrial_tecno-nacionalismo_e_industria_40_a_guerra_tecnologica_entre_China_e_EUA/stats).
Para tal, procuramos contextualizar a escalada desse conflito em um cenário de reflorescimento das estratégias tecno-nacionalistas de desenvolvimento. Assim, entendemos que a guerra tecnológica é um desdobramento de uma estratégia deliberada das principais potências no sentido de se empurrar a fronteira tecnológica em direção à indústria 4.0. Essa estratégia teria como objetivo reconfigurar as bases sobre as quais se assentam a dinâmica da concorrência intercapitalista e interestatal. A reconfiguração, por sua vez, seria o elemento central para reafirmar a posição de liderança tecnológica e econômica das principais potências e ao mesmo tempo impor condicionantes ao avanço chinês nessas mesmas dimensões.
É exatamente neste contexto que devem ser analisados com mais detalhes os limites e as possibilidades do “China Dream”, a estratégia de se constituir como uma superpotência industrial e da internet materializada em planos recentes como o Made in China 2025, o Next Generation Artificial Intelligence Development Plan e o China Standards 2035.
Como resultado de tal estratégia, principalmente pós crise de 2008, os volumes dedicados ao fomento ao sistema nacional de inovação têm apresentado crescimentos excepcionais. Segundo dados da OCDE mensurados a partir da paridade de poder de compra, os gastos em P&D em relação ao PIB chinês evoluíram de 0,89% em 2000 para 2,4% em 2018, com um crescimento de 275% entre 2007 e 2018. Tal fato fez com que em 2018 os gastos em P&D chineses representassem mais de 95% dos gastos dos EUA, quase 4 vezes os alemães e 3,2 vezes os japoneses. De maneira complementar aos incrementos dos gastos em P&D, as empresas chinesas se beneficiariam de uma quantidade substancial de recursos em uma miríade de programas de fomento direto e indireto, dentre os quais se destacam o National Integrated Circuit Fund (com dotação de 19 bilhões de euros) e o Emerging Industries Investment Funding (5,4 bilhões de euros).
Essa pujança tem se refletido em diversas dimensões. No que diz respeito apenas às unicorn startups (empresas avaliadas em mais de US$ 1 bilhão e situadas em setores com alto dinamismo tecnológico), segundo o ranking “The Global Unicorn Club”, da influente plataforma de inteligência de mercado em áreas de alta tecnologia CB Insigths, em julho de 2020 havia 476 unicorn startups no mundo. Destas, 122 eram chinesas e 229 estadunidenses. No entanto, ao se analisar o valor de mercado, as empresas chinesas eram avaliadas em US$ 312 bilhões, frente a US$ 316 bilhões das americanas.
A partir desse panorama, apresentamos no artigo citado uma análise detalhada dos limites da estratégia de desenvolvimento chinesa em direção à indústria 4.0. Dentre os segmentos da transformação tecnológica em gestação, aquele em que a economia chinesa parece estar mais bem posicionada é o constituído pela integração das camadas transversais de inteligência artificial e Big Data, com a materialização em sistemas cyber-físicos baseados em serviços inteligentes. Isso porque as empresas chinesas se beneficiariam de vantagens como um enorme e pujante mercado doméstico protegido, o acesso a um volume gigantesco de dados, o grande poder de coordenação pública para implementação de tecnologias em cidades inteligentes e a existência de players locais de destaque internacional, com amplo conhecimento das especificidades do mercado doméstico e que se beneficiam de enormes externalidades de rede derivadas da amplitude de suas plataformas tecnológicas.
O principal agente dessas plataformas na dimensão digital – o WeChat – possuía em 2017 mais de 900 milhões de usuários que utilizam diariamente uma infinidade de serviços integrados à plataforma a partir do crescente avanço de fusão entre sistemas físicos e virtuais. Tal fusão, por sua vez, assume tamanha dimensão que tem viabilizado a explosão do volume movimentado via mobile payments. Estes, segundo as consultorias I-research e McKinsey, alcançaram US$ 15,4 trilhões em 2017, ou mais de 40 vezes o valor movimentado nos EUA. É nesses segmentos em que se situa a maior parte das empresas chinesas de base tecnológica que têm se destacado internacionalmente.
Outros dois importantes veículos de materialização da integração dessas tecnologias em sistemas cyber-físicos baseados em serviços inteligentes são as iniciativas de City Brain e as Taobao Villages, ambas coordenados majoritariamente a partir de plataformas tecnológicas comandadas pelo Alibaba. A partir de esforços pioneiros em sua cidade-sede (Hangzhou), o grupo tem buscado integrar um conjunto amplo de soluções aptas a viabilizarem a digitalização inteligente de uma miríade de serviços públicos a partir do Alibaba Cloud. Com a consolidação tecnológica dessas soluções, e após seu empacotamento em uma plataforma liderada pelo gigante chinês de tecnologia, a empresa tem se beneficiado da influência chinesa na Ásia para internacionalizar a oferta de tais soluções. Por meio de projetos financiados domesticamente, tais esforços têm se materializado num vetor de transnacionalização dos padrões tecnológicos chineses, via o que se tem convencionado denominar de Digital Silk Road.
Esforço semelhante tem sido observado a partir do fomento ainda majoritariamente nacional às Taobao Villages. Estas, também lideradas pelo grupo Alibaba, buscam integrar vilas geograficamente dispersas no território chinês à plataforma de comercialização global da empresa. A lógica seria a de oferecer um conjunto de serviços inteligentes às comunidades locais – como ferramentas de gestão de demanda, de previsão de comportamento dos consumidores, de gestão da cadeia de suprimentos, de serviços de marketing e financeiros, entre inúmeros outros – de modo a viabilizar ao mesmo tempo a produção em massa, a baixo custo e com elevado grau de customização. Essa revolução seria habilitada pela integração cyber-física baseada em serviços inteligentes que, por meio de inteligência artificial, permitiria identificar padrões de comportamento dos consumidores e de maneira preditiva sinalizar determinadas tendências de demanda. A partir desse cenário, e beneficiando-se de tradicional flexibilidade e agilidade da produção manufatureira chinesa, as Taobao Villages poderiam oferecer à plataforma global de comércio do Alibaba produtos com elevado grau de customização sem se desvincular das vigentes economias de escala na produção.
Apesar do posicionamento de destaque internacional de empresas nas áreas de serviços inteligentes, com destaque para inteligência artificial e 5G, a estratégia de desenvolvimento chinesa em direção à indústria 4.0 encontra importantes limitações em algumas camadas da infraestrutura tecnológica habilitadora das tecnologias pervasivas da revolução em gestação. O principal caso ilustrativo dessas limitações é a dependência da importação de semicondutores de alta performance. Isso porque o governo americano tem exercido pressões diretas para empresas chaves na cadeia de suprimento de semicondutores cessarem parcerias com empresas chinesas, dentre as quais o caso mais emblemático é o fim da venda de circuitos integrados de última geração da TSMC para empresas chinesas. Adicione-se a isso a pressão indireta para que a principal fabricante de equipamentos necessários para a manufatura de chips semicondutores – a holandesa ASML – também restrinja vendas de seus equipamentos de última geração a empresas chinesas a fim de que elas não sejam capazes de avançar na cadeia produtiva e contornar as restrições derivadas de acesso aos chips fabricados pela TSMC. Ou seja, os EUA inviabilizam que as empresas chinesas tenham acesso a chips semicondutores de última geração já manufaturados, bem como acesso a máquinas e equipamentos necessários para a fabricação destes.
Vale lembrar, muito brevemente, que o mercado de fabricantes de chips globais é extremamente concentrado em um número reduzidíssimo de empresas, do qual a TSMC é a líder. E ainda cumpre destacar que a maior parte das empresas de tecnologia que utilizam chips de última geração são fabless, ou seja, são responsáveis apenas pelo design e pela concepção desses chips – os quais são fabricados por terceiros, invariavelmente a taiwanesa TSMC quando se trata de chips de última geração. Tal arranjo envolve tanto empresas chinesas como Huawei, ZTE, Xiaomi, Hi-Silicon, Cambricon, Vivo, Oppo entre outras, quanto gigantes globais como Apple, Qualcomm etc. Exceções parciais a essa dinâmica são a coreana Samsung e a estadunidense Intel. É exatamente por tais motivos que, além de forçar a restrição de oferta a empresas chinesas, o governo dos EUA tem atuado fortemente para convencer a taiwanesa TSMC a deslocar parte sensível de sua produção para novas fábricas a serem construídas nos EUA.
Por fim, ainda se destacam as pressões americanas para que países aliados restrinjam o acesso de empresas e tecnologias chinesas a seus mercados, sendo a batalha em torno da definição dos padrões de telecomunicações via 5G o principal expoente. Assim, além de reduzir o espaço de valorização do capital chinês, a internacionalização de seus padrões tecnológicos seria interditada ao menos em tais segmentos.
Como resultado desse cenário e a despeito dos avanços em todas as demais áreas da indústria 4.0 citadas anteriormente, observa-se que a complexidade tecnológica exigida para o desenvolvimento e a fabricação principalmente de chips semicondutores (dentre os quais se incluem aqueles dedicados à inteligência artificial) ainda se configura como a lacuna central no “China Dream”. Ou seja, a guerra tecnológica em curso tem deixado evidente a dependência chinesa indireta de tecnologias de empresas dos EUA. No entanto, ainda que superar essas limitações no médio prazo não seja uma tarefa trivial, um observador atento não deve se esquecer do inquestionável sucesso conseguido nas últimas décadas pela política industrial e tecnológica chinesa.
Antônio Carlos Diegues é professor do Instituto de Economia da Unicamp e coordenador do Núcleo de Economia Industrial e da Tecnologia, diegues@unicamp.br. https://www.researchgate.net/profile/Antonio_Diegues/publications
José Eduardo Roselino é professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), jeroselino@ufscar.br.