Grandes periódicos científicos, um baita negócio (para eles)

Por Sabine Pompeia

O desenvolvimento científico em países emergentes tem sido limitado por multinacionais estrangeiras que, hoje, controlam toda a cadeia de publicação e avaliação de artigos científicos e cobram cada vez mais caro por isso.

A forma como a ciência é produzida não mudou muito nos últimos 300 anos, desde o lançamento das primeiras revistas (periódicos) científicas. Contudo, o modelo de publicação de artigos científicos foi radicalmente transformado nas últimas décadas graças à astúcia de grandes empresas internacionais. Segundo pesquisadores, esta conjuntura envolveu questões como o fato de associações científicas sem fins lucrativos que tradicionalmente publicavam artigos delegarem seu papel a editoras comerciais. Houve também o estabelecimento de indicadores de prestígio (fatores de impacto), que passaram a ser usados para determinar o status de cientistas. Além disso, a internet permitiu a digitização de artigos e a algoritmização de fatores de impacto, serviços hoje sob controle de um pequeno grupo de empresas que pode, assim, determinar os valores cobrados para ler e publicar artigos.

O modelo clássico, sem fins lucrativos

Até a Segunda Guerra Mundial, revistas ou periódicos que publicavam artigos científicos pertenciam a sociedades sem fins comerciais, embora o processo de publicação funcionasse como hoje. Pesquisadores submetiam seus manuscritos a representantes de suas sociedades científicas, que decidiam se eram suficientemente interessantes para serem publicados. Por vezes solicitavam a opinião de outros especialistas (processo chamado de revisão por pares), o que se tornou norma na atualidade.

Cientistas, revisores e grande parte dos editores de periódicos nunca foram remunerados por esse trabalho. Assim, produzir um periódico envolvia, principalmente, custos de impressão e envio pelo correio – cobertos com a venda de fascículos ou assinaturas a cientistas, bem como com fundos das associações científicas (exemplo: taxas de filiação). Este modelo não se mostrou sustentável, pois a maioria das revistas era descontinuada por falta de fundos após a publicação de apenas alguns fascículos.

Pós-guerra e lucro

Terminada a Segunda Guerra Mundial, houve maior conscientização sobre o papel crucial da ciência e tecnologia para o desenvolvimento, e órgãos governamentais em todo o mundo passaram a arcar com os salários e bolsas de pesquisadores, financiar pesquisas e instalações. Neste contexto, foi identificada a fragilidade financeira do modelo de publicação por associações científicas, o que limitava a disseminação de conhecimentos estratégicos em maior escala.

A solução encontrada na Inglaterra, como discute Stephen Buranyi em artigo no jornal The Guardian, foi fomentar a transformação para algo empresarial. O governo britânico recrutou para este serviço dois indivíduos que moldaram a forma com que a ciência é publicada até hoje, Robert Maxwell e Paul Rosbaud.  Para dar conta da expansão da ciência, passaram a produzir, comercializar e publicizar muitos novos periódicos, cujos editores eram cientistas importantes convidados.

O sucesso foi evidente e associações científicas rapidamente passaram o controle de suas revistas a essas empresas. Nos anos 1960, a maior parte dos periódicos já tinha fins lucrativos, explica Buraniy. Os cientistas tinham mais opções para publicar seus trabalhos, mas ainda não havia um critério consensual sobre quais eram as revistas mais importantes. Isso mudou com a introdução de indicadores de prestígio de periódicos e a disponibilização de artigos na internet.

A avaliação do prestígio de periódicos

Em 1974, foi lançada a revista Cell, que introduziu a prática de priorizar a publicação de artigos que respondiam perguntas científicas complexas e envolviam o estado da arte tecnocientífico. Segundo Buranyi, o apelo por ter um artigo publicado neste periódico tornou-se imenso na comunidade científica, levando outros periódicos a imitarem a prática. Índices de qualidade/impacto começaram a ser cada vez mais usados para determinar quais revistas eram as mais prestigiosas e nas quais publicar um artigo elevava o status de seus autores. Exemplos desses índices ou fatores de impacto empregados hoje são o Jornal Citation Reports (JCR) e o SCImago Journal Rank (SJR).

Os indicadores cientométricos de impacto, porém, usam a lógica de citações e quantificações, e têm menos relação direta com questões como descobertas ou inovações de um artigo, tampouco com a importância de contribuição de seus autores. A despeito disso, métricas de impacto dos periódicos nos quais se publica tornaram-se a forma mais consagrada de avaliar cientistas, levando-os a almejar sempre publicar nas revistas mais prestigiosas.

O papel da internet

No mundo digital os custos principais de publicação (impressão em papel e postagem) desapareceram. Os valores cobrados para ler artigos, portanto, deveriam ter baixado, mas isso não aconteceu. Entre 1986 e 2003, por exemplo, o índice de preços ao consumidor aumentou 68% nos Estados Unidos, e o valor de assinaturas de periódicos científicos subiu 215%, reportou Nancy Kranich em um capítulo de livro sobre o tema.

O motivo é que, para competir por verbas para fazer novas pesquisas, cientistas precisam publicar mais e em periódicos de mais alto impacto (publicar ou perecer). Desta forma, tornaram-se dependentes das editoras e dos algoritmos que calculam os fatores de impacto – controlados pelos mesmos oligopólios e que cobram caro pelo acesso. Um exemplo disso é que a empresa RELX pertence à maior editora do mundo, a Elsevier, à qual estão associados vários indicadores de produção científica, como o SJR.

A comunidade científica reagiu, propondo maior democratização do conhecimento (Ciência Aberta), o que incluí tornar gratuito o acesso a artigos científicos. Afinal, “a esmagadora maioria da ciência é financiada com dinheiro dos pagadores de impostos e é óbvio que eles devem ter acesso à ciência”, comenta Paulo Alberto Nussenzveig, Pró-Reitor de Pesquisa e Inovação da USP.

Valendo-se de um discurso embasado em ciência aberta, passaram então a cobrar taxas de publicação (article processing charges) dos pesquisadores/autores para que o acesso aos artigos fosse tornado grátis, taxas que chegam a custar mais de US$ 11 mil por artigo.

Os lucros de empresas como a Elsevier, do grupo RELX, beiram hoje 40%, de acordo com Buranyi e Kranich, mais altas que do Google e da Apple. “Estamos pegando nosso dinheiro e dando-o a países desenvolvidos”, comenta Fátima Marques, coordenadora do Escritório de Gestão de Indicadores de Desempenho Acadêmico (Egida), da USP. Um baita negócio, de fato, para os grupos comerciais que controlam as publicações científicas, com graves desdobramentos para a ciência de países em desenvolvimento. “Eles estão usurpando todo o sistema da pesquisa. Precisamos ter voz para encontrar uma forma de mostrar a eles que isto está errado, que precisamos de um sistema mais justo, mais inclusivo”, complementa o nigeriano Ikechukwu Benjamin Moses, professor da Ebonyi State University, atualmente pós-doutorando na Universidade Federal de São Paulo.  

Sabine Pompeia é doutora em psicobiologia (Unifesp) e cursa especialização em jornalismo científico (Labjor/Unicamp)