Por Bárbara Fernandes, Bianca Bosso, Fabíola Junqueira e Luciene Telli
A governança da rede mundial envolve diversos atores, encarregados do desafio permanente de mantê-la aberta, funcional, democrática e segura
Há 35 anos, os principais desafios para os gestores da incipiente internet eram de ordem puramente técnica: primeiramente, fazê-la funcionar e, depois, se expandir. Superados esses pontos, a rede foi ganhando cada vez mais corpo e hoje o Brasil é o 5º país com maior número de usuários. Segundo dados da última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE, o país tem 155 milhões de internautas, pouco mais de 73% da população.
Novas preocupações surgiram, como os crimes cibernéticos, o papel do Estado na redução da desigualdade digital, o compartilhamento dos dados dos usuários pelos provedores, a violação aos direitos humanos e os ataques aos regimes democráticos. Gerir essas questões, assim como os pontos técnicos, tem sido a tarefa de órgãos multissetoriais mundo afora, em uma atividade denominada governança da internet.
No Brasil, a responsabilidade é do Comitê Gestor da Internet (CGI.br), que se debruça sobre as questões que envolvem a rede desde sua criação, em 1995. Além de contar com representantes do governo, o grupo tem assentos da comunidade científica e tecnológica, do terceiro setor e do setor empresarial, bem como um especialista em assuntos da internet.
A atuação do CGI é ampla. Entre suas atribuições estão o estabelecimento de diretrizes estratégicas para o uso da rede, a recomendação de normas técnicas de segurança e a elaboração de estudos e pesquisas sobre o uso da internet em território nacional. “É ele que define, por exemplo, as regras do registro de domínios “ponto br”, ou o que se deve fazer para ter um domínio, quanto se paga e como ele é feito”, destaca Flávio Rech Wagner, ex-conselheiro do CGI e diretor do Parque Científico e Tecnológico da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Segundo ele, o conceito de governança na internet não se refere apenas a um conjunto de legislações e regulações, mas também às boas práticas que são adotadas com o objetivo de delinear a evolução e o uso da rede. “Não é algo legalmente definido ou aprovado por algum tratado, são propostas de várias organizações, que são aceitas pela comunidade e usadas para desenvolver produtos e serviços públicos na internet”, explica.
Rede sem dono
Mas, afinal, como é possível governar uma rede considerada “sem dono”? “Trata-se de uma tentativa de centralizar a tomada de decisões sobre o funcionamento da internet, de tal modo que essas decisões não sejam feitas exclusivamente por corporações ou pelo Estado”, explica Diego Jair Vicentin, professor da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA/Unicamp) e membro fundador da rede de pesquisa em governança da internet, ao se referir aos diversos atores que participam da atividade.
Em termos práticos, para o usuário comum, este conceito gira em torno de opções de acesso à rede com qualidade, preço razoável e segurança – assuntos tratados em fóruns como os da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e pela International Telecommunication Union (ITU).
Já para o usuário especializado, que trabalha diretamente com a tecnologia da informação, a governança da internet é responsável pela garantia de que a rede permaneça aberta, funcional, robusta e em expansão – questões discutidas em encontros técnico-políticos, como o promovido pela instituição internacional Icann (da sigla em inglês para Corporação para atribuição de nomes e números).
Há também questões que surgiram com a ampliação dos recursos e redes sociais, como a monetização. “A governança da internet existe para nos fazer pensar sobre o que queremos como sociedade e entender os mecanismos de coordenação dessas tecnologias”, ressalta Fernanda Rosa, professora adjunta de Ciência, Tecnologia e Sociedade na Universidade Estadual da Virgínia, nos Estados Unidos (também conhecida como Virginia Tech).
A docente ressalta que a governança não está só no plano das plataformas como Google, Meta, Amazon, entre outros, mas também se aplica às camadas no plano de infraestrutura, como é o caso dos provedores. “Governança da internet é uma área de estudo que nos ajuda a entender como a internet funciona. E a importância disso se deve ao fato de que os nossos dados pessoais estão circulando online, às vezes sem nem percebermos”, enfatiza a professora, que complementa que a internet é um meio para se ter direito à comunicação. “Assim, quais são os atores que estão mediando essa relação e que podem estar influenciando esse acesso?”.
Em um artigo publicado na revista Critical reviews on Latin American research, Fernanda Rosa e Diego Vicentin refletem sobre a importância de pesquisar o tema e afirmam que o estudo de governança da internet é um objeto de política pública com participação latino-americana ainda limitada. “A governança da internet é uma área recente, que nasce com o surgimento da internet comercial e começa a se desenvolver como área de pesquisa na segunda metade dos anos 1990”, comenta Rosa.
Vicentin, por outro lado, destaca o pioneirismo do Brasil entre os demais países da América Latina. “O Brasil puxa a discussão sobre governança da internet no subcontinente Latino Americano, especialmente porque é um dos primeiros países a receber conexões de internet – que chegaram ao país ainda na década de 1990”, explica o pesquisador.
A Icann e os novos desafios
A distribuição de números de protocolo de controle de transmissão/protocolo da internet (TCP/IP) e de nomes de domínio são feitas pela Icann. Esses identificadores únicos permitem que os computadores se “encontrem” e se comuniquem.
A entidade, que surgiu em 1998, também promove encontros públicos três vezes por ano. O último foi realizado na Malásia, em setembro, reunindo diversos profissionais interessados na formulação de políticas para segurança digital. “É surpreendente a complexidade do ecossistema que gravita em torno da Icann e a diversidade dos assuntos tratados”, destaca Flávio Rech Wagner, que acompanha os encontros há mais de uma década.
Dentre os assuntos debatidos no evento, a privacidade e proteção de dados pessoais foram os mais abordados devido às recentes leis que impossibilitam o acesso a dados pessoais públicos sem consentimento prévio. Wagner comenta o fato de que autoridades com interesses legítimos de acesso foram afetadas negativamente e a forma como a Icann está em busca da criação de regras gerais que possam auxiliar nesta questão. “O problema é que isso acarreta em conflito de legislações, as leis de proteção de dados são diferentes entre países e essas divergências geram discussões”, comenta Wagner.
Outro assunto debatido foi a questão da criminalidade – registro de domínios “fajutos” para o roubo de dados e invasão de conta bancária e dados pessoais. Entretanto, Wagner ressalta que esse debate esbarra no limite de atividade da Icann. “Alguns gostariam que sites maliciosos pudessem ser eliminados pela Icann, porém isso implica na definição do que é crime, algo que difere entre países”, pondera.