Por Fabricio Solagna
O Brasil foi precursor do multissetorialismo na forma de composição do Comitê Gestor da Internet. Sua estruturação e sua transformação tem um longo histórico e sempre contou com a colaboração de diversos setores da sociedade. Ao mesmo tempo, as disputas políticas por diferentes grupos sobre como a política deveria funcionar sempre esteve presente
As primeiras conexões às redes informacionais no Brasil datam de meados da década de 1980, mas foi só na virada para os 90 que recebemos a designação do código de país – o ccTLD ou o Ponto BR -, que possibilitou aos computadores terem um nome, uma identidade na rede. Pode-se dizer que naquele momento foi iniciada, muito timidamente, uma governança da Internet no país, em consonância com uma também incipiente comunidade internacional. Mas a Internet para o público demoraria mais meia década para estar disponível na casa das pessoas.
São, portanto, mais de 30 anos de governança da Internet no Brasil e foi sobre este tema que dediquei minha tese de doutorado[1], na qual pesquisei as disputas políticas sobre a governança no país. Acompanhei o trabalho do Comitê Gestor da Internet por quatro anos, entrevistei diversas pessoas e mapeei os atores políticos nesta arena. Temos um peculiar caso de que a política de participação veio antes do amplo uso da rede. Somos precursores de um modelo de governança que depois se tornaria um cânone, o multissetorialismo, termo consagrado com a Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação (CMSI) que ocorreu em 2003 e em 2005.
As primeiras conexões de Internet comercial no Brasil só foram possíveis depois de 1995, quando se definiu que o serviço seria explorado pelos provedores de acesso e pela iniciativa privada, ou seja, seria um serviço de valor agregado que funcionaria a partir das redes de telecomunicações. Isso foi possível através da publicação de uma portaria governamental assinada pelo Ministério das Telecomunicações e pelo Ministério da Ciência e Tecnologia. Este foi um marco importante, pois delimitou que a Internet ficaria fora das regulamentações de telecom, que ainda era monopólio estatal.
No mesmo ano, também se instituiu o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), composto, na época, por nove pessoas, entre representantes governamentais, acadêmicos, sociedade civil e setor privado. Em grande parte, se aglutinaram ali pessoas que já estavam tratando sobre redes informacionais há algum tempo. Foi o que eu classifiquei como uma “coalizão de pioneiros”, ou seja, um grupo de pessoas que compartilhavam ideias e crenças sobre como a rede deveria funcionar [2].
Para chegar nesse arranjo, cabe ressaltar a influência de atores importantes e seu relacionamento com o governo recém eleito na época. Alguns anos antes, Carlos Afonso já havia fundado o Alternex, um provedor de acesso que conectou organizações da sociedade civil com serviços da Internet, e que, juntamente com outros entusiastas, possibilitou que a Conferência Eco-92 também tivesse um espaço conectado à rede. Desde 1989, Tadao Takahashi desenvolvia o projeto da RNP pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, com o objetivo de estabelecer uma rede de alta velocidade entre as universidades brasileiras. Por fim, Demi Getschko liderava o projeto da ANSP, uma rede de universidades paulistas que foi a primeira a conseguir se conectar com a Internet. Muitas outras pessoas estavam envolvidas, mas cito estes para demonstrar como esta “coalizão de pioneiros” era constituída de pessoas de diferentes espaços (governo, sociedade civil, academia) que ajudaram a construir uma das primeiras instâncias de governança da rede do país.
O CGI.br seguiu relativamente parecido nos primeiros anos. Os representantes eram nomeados diretamente pelo governo e a administração dos nomes de domínio do país era gerido por um projeto da FAPESP. Porém, em 2003, houve uma grande transformação na forma de composição da entidade, quando os representantes não-governamentais passaram a ser estabelecidos por eleições, através de colégios eleitorais setoriais, entre o terceiro setor, comunidade científica e tecnológica e setor privado.
A partir de então o conselho foi ampliado, passou a ter 21 integrantes, com eleições a cada três anos. Além disso, uma entidade privada, sem fins lucrativos, foi criada para exercer as funções executivas, incluindo a gestão ccTLD: o Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br).
As eleições para o Conselho Gestor da Internet configuram um momento de mobilização, mesmo que não seja na mesma medida para todos os setores. No estudo empreendido até 2019, foi possível perceber que há diferentes dinâmicas empregadas para os incumbentes a conselheiro.
As diversas regras estabelecidas para se credenciar nos colégios eleitorais podem implicar em dificuldades. O processo é demorado, levando quase um ano entre a abertura do processo eleitoral e a posse dos representantes. Uma parte não termina o cadastro, ou este é recusado por falta de documentação. Outros, ainda, não efetivam seu voto no momento correto. A eleição depende muito do engajamento e da empenho dos candidatos, pois precisam mobilizar constantemente as entidades que podem apoiá-los ao longo do processo eleitoral. O cargo de conselheiro também demanda tempo e dedicação. Mesmo não sendo uma função remunerada, é preciso participar de diversas reuniões e eventos, tanto nacionais quanto internacionais. Ou seja, a eleição é uma porta de entrada para a participação, entretanto ela não significa que haja um engajamento direto ou perene dos votantes. Ao mesmo tempo, é perceptível o aumento crescente do número de participantes nas eleições a cada novo processo, tanto de candidatos como de entidades votantes.
A ampliação dos representantes no CGI.br também coincidiu com um período de crescimento e importância da entidade. O Marco Civil da Internet, lei aprovada em 2014, por exemplo, teve início a partir da Declaração de Princípios para a Governança e uso da Internet, aprovado pelo Comitê, em 2009 [3]. A entidade também conseguiu implementar uma complexa estratégia de combate às mensagens não solicitadas por e-mail – conhecidas como spam -, de forma coordenada e consensual entre os diversos setores envolvidos [4].
No ano de 2017, ano seguinte ao impeachment da presidente Dilma Rousseff, houve uma consulta pública com o objetivo de “modernizar” a estrutura de governança da Internet brasileira, versando sobre as atribuições, competências, mandatos e eleições do CGI.br. Foi um momento de bastante apreensão para a comunidade política envolvida, já que a consulta foi colocada no ar pelo governo sem discussão prévia com nenhum outro setor.
Uma pequena parte das sugestões considerava que o CGI.br não devia ter o monopólio sobre os registros do ccTLD no país, além de defender que muitas de suas atribuições poderiam ser repassadas para a ANATEL, a agência reguladora de telecomunicações. Esse conjunto de ideias, que foram defendidas por diferentes pessoas e entidades, eu tributei a uma “coalizão desafiante”, que considera necessária uma reorganização completa do arranjo institucional da governança da Internet no país.
Porém, o resultado mais evidente da consulta foram as propostas de ampliação da participação no CGI.br. Um destaque foi a proposta apresentada por uma entidade do setor privado, a ABRANET – Associação Brasileira de Internet -, que representa uma série de provedores, tendo como signatárias diversas pessoas de outros setores, propondo instituir “comunidades constituintes” de cada setor, algo similar do que já ocorre como na ICANN, como camada intermediária entre o conselho do CGI e a sociedade. Essas comunidades poderiam ter mais espaço e voz para questões de decisão da entidade. A intenção seria aumentar o engajamento.
A consulta, na prática, ainda não resultou em nenhuma mudança. O que se percebeu é que a iniciativa refletiu um momento em que a coalizão desafiante tentou abrir caminho para suas ideias e crenças sobre a política pública, mas não teve forças para avançar pois não contou com apoio além do governo e algumas entidades do setor privado.
Ao longo destes 30 anos de história da governança da Internet do Brasil, houve uma consolidação de uma sólida comunidade política capaz de conduzir a política pública através dos diferentes momentos políticos que o país passou. Na minha pesquisa, concluí que isso produziu um enquadramento institucional resiliente, capaz de manter a política em pé, mesmo com as ameaças constantes provenientes principalmente dos setores governamental e de telecomunicações.
O atual momento parece abrir um novo horizonte, como em 2003, onde se pode almejar uma evolução institucional e de maior abertura à participação. Ao mesmo tempo, há muita demanda por uma regulação das plataformas, dado o papel que elas assumiram na intermediação do debate público. Este pode ser um terreno arenoso em que ideias e convicções sobre a regulação da Internet através da telecomunicação podem ser retomadas. É cedo para qualquer previsão, mas talvez a comunidade política envolvida possa aproveitar o ambiente mais arejado para o debate, em relação aos últimos anos, em torno da governança da Internet.
Fabricio Solagna é doutor em sociologia (UFRGS) e pesquisador da área de governança da internet
1. SOLAGNA, F. 30 anos de governança da internet no Brasil : coalizões e ideias em disputa pela rede (Tese de Doutorado). Departamento de Sociologia da UFRGS. UFRGS, 2020. Disponível em: http://hdl.handle.net/10183/212954
2. O termo coalizão na pesquisa se refere ao conceito de coalizões de defesa, ou advocacy coalitions, criado por Sabatier em 1988 como forma de compreender o desenvolvimento e estabilidade das políticas públicas. As coalizões seriam amplas comunidades políticas que se aglutinam em torno de ideias e convicções em torno de uma política pública e criam estratégias para implementar sua visão sobre como a política deveria funcionar. Para saber mais, ver: SABATIER, P. A. An Advocacy Coalition Model of Policy Change and the Role of Policy-Oriented Learning Therein. Policy Sciences n. 21, 1988
3. SOLAGNA, F. A formulação da agenda e o ativismo em torno do marco civil da Internet (Dissertação de mestrado). Departamento de Sociologia da UFRGS. UFRGS, 2014. Disponível em: http://hdl.handle.net/10183/117545
4. HOEPERS, C.; FAULHABER, H.; STEDING-JESSEN, K. Combate ao spam na Internet no Brasil: Histórico e reflexões sobre o combate ao spam e a gerência da porta 25 coordenados pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil. São Paulo: Comitê Gestor da Internet, 2015. Disponível em: <https://cgi.br/media/docs/publicacoes/1/CadernoCGI_Estudos1.pdf