Geoparques mundiais preservam patrimônios materiais e imateriais

Imagem: André Kolya

Por Juliana Vicentini e Lívia Mendes Pereira

O programa de desenvolvimento regional da Unesco empodera comunidades locais por meio de geoducação, geoturismo e geo-sustentabilidade.

Segundo a Unesco, os geoparques mundiais “são áreas geográficas unificadas, onde sítios e paisagens de relevância geológica internacional são administrados com base em um conceito de proteção, educação e desenvolvimento sustentável”. Allysson Pinheiro, professor da Universidade Regional do Cariri (Urca), completa que “não é um programa que trata apenas da preservação de um patrimônio material ou imaterial, e sim, trabalha para que as pessoas que vivem no território onde há o patrimônio possam se beneficiar dele e preservá-lo”. O prefixo “geo”, ele diz, vem de gaia, é um conceito que vai além de rocha e fóssil. “É toda a interação entre o ambiente natural, o ambiente social e o abiótico”, completa.

Esse trabalho da Unesco começou em 2001 e foi consolidado em 2004, quando 17 geoparques europeus e 8 chineses formaram a Rede Global de Geoparques (GGN). Atualmente, existem 213 Geoparques Mundiais da Unesco, em 48 países, iniciativas nacionais de património geológico incluídas em uma rede global de intercâmbio e cooperação. 

O interesse para que um território receba essa designação emerge da própria comunidade ou a partir de uma parceria com um projeto acadêmico. No segundo cenário, “pesquisadores de universidades conhecem o programa e  percebem que aquele território abrange as condições necessárias, então começam a trabalhar junto com as comunidades explicando, conscientizando, educando e mostrando porque o programa seria interessante”, explica Pinheiro, que também é diretor do Museu de Paleontologia da universidade.

Embora os pesquisadores orientem, os geoparques mundiais da Unesco não são programas acadêmicos. O tipo de gestão varia de acordo com as características e partes interessadas de cada território. Pode, portanto, ser constituído por “membros das universidades, prefeituras, comunidades e empresas. Não é completamente pública, nem é completamente privada”, adverte Pinheiro.

Os geoparques mundiais se alicerçam em três pilares: educação, turismo e conservação. No caso do Geopark Araripe – o primeiro do Brasil – as atividades educacionais promovidas são diversificadas, com foco em crianças, e ocorrem nas escolas e no próprio parque. As ações envolvem “geologia, patrimônio e história do território por meio de jogos, pintura, desenho, oficina de réplica de fósseis, trilhas e visitas aos geosítios. Também há a criação de materiais didáticos e livros, como  Nata e as aventuras nos geossítios, descreve Pinheiro.

A designação de geoparque mundial tem duração de quatro anos. Após esse período, o território passa por um processo de revalidação. O professor da Urca explica que por ser um “programa de desenvolvimento regional sustentável, ele precisa ser continuamente alimentado. Para entender se o território continua fazendo ações, a cada quatro anos ele é revisitado por avaliadores para ver os progressos. A partir disso, o programa pode ser continuado, regularizado ou descontinuado”.

O Brasil teve o primeiro geoparque designado pela Unesco em 2006. Hoje são seis: Araripe (Ceará), Seridó (Rio Grande do Norte), Canions do Sul (Rio Grande do Sul), Caçapava (Rio Grande do Sul), Quarta Colônia (Rio Grande do Sul) e Geoparque Uberaba (Minas Gerais).

Essa quantidade se deve principalmente a “uma barreira interna no sentido de entender que é um projeto de desenvolvimento regional sustentável, que não é um projeto de parque de rochas. O patrimônio material só faz sentido se estiver ligado às pessoas, influenciando sua cultura e a biota presente no território. O que há de ser preservado são essas relações – e não a rocha”, justifica Pinheiro.

Roteiro de criação

O Brasil possui aproximadamente 30 projetos de geoparques com potencial para se tornarem mundiais. “Há um checklist bastante trabalhoso. Na verdade, a Unesco exige que o geoparque já esteja funcionando – para depois formalizar. E esse é um trabalho árduo”, explica o geólogo José Alexandre de Jesus Perinotto, que é professor titular na Unesp em Rio Claro e atual coordenador científico do projeto Geoparque Corumbataí.

O projeto vem sendo idealizado desde o início dos anos 1990 e envolve os territórios de nove municípios do interior paulista (Analândia, Itirapina, Corumbataí, Rio Claro, Santa Gertrudes, Cordeirópolis, Ipeúna, Charqueada e Piracicaba). A ideia surgiu em 1994 quando a professora Mariselma Zaine realizou um inventário dos patrimônios naturais da região da bacia hidrográfica do rio Corumbataí, em sua pesquisa de pós-doutorado. Alguns anos depois, em 2016, essa pesquisa inspirou professores e pesquisadores a iniciarem um projeto com o objetivo de propor à Unesco a criação do geoparque.

“Fizemos muitas visitas para as nove prefeituras que compõem a bacia do rio, conversando com prefeitos, vereadores e a comunidade. Começamos a fazer palestras em escolas e a criar produtos, como livros e jogos da memória com o tema”, comenta Perinotto.

As etapas para se tornar um geoparque mundial são muitas e envolvem a participação de toda a comunidade. É necessária a criação de um comitê científico e de uma entidade gestora, que no caso do Geoparque Corumbataí será a Fundação para o Desenvolvimento da Unesp (Fundunesp). Cada país pode enviar duas propostas por ano. No Brasil, o Ministério das Relações Exteriores cria uma comissão nacional que analisa quais serão enviadas. Depois de encaminhado o projeto, há todo um processo burocrático e o geoparque se torna aspirante. Nessa etapa, dois avaliadores visitam o local para a produção de um relatório. Anualmente acontece uma avaliação geral, e a partir desse parecer dos avaliadores o geoparque aspirante pode, enfim, ser alçado à geoparque mundial. Todos os gastos com as visitas dos avaliadores e uma taxa anual deve ser paga à Unesco. “Temos muitas despesas, por isso é preciso arrecadar fundos, por meio de convênios, vendas de produtos, organização de cursos e, principalmente, arrecadação de verbas do poder público”, explica Perinotto. Nesse processo, há dificuldade em convencer os gestores públicos sobre a importância da criação de um geoparque mundial para a preservação do meio ambiente e para a promoção de um turismo natural, cultural e histórico, integrado à cultura dos habitantes da região.

Se for reconhecido, o Geoparque Corumbataí será o primeiro do Estado de São Paulo. Ele possui algumas características únicas, que são consideradas valores internacionais: a recarga do Aquífero Guarani, uma imensa reserva subterrânea de água doce localizada no solo da sua área e um fóssil de mesosaurus – réptil marinho de 280 milhões de anos, considerado uma das evidências da deriva continental (o afastamento entre América do Sul e África).

A equipe de pesquisadores, com patrocínio da Unesp, vem realizando ações de conscientização comunitária, como a escola de inverno com alunos de escolas públicas, e a criação de uma rede temática entre as cidades e os 24 campi universitários.

Juliana Vicentini é doutora em ciências (USP) e cursa especialização em jornalismo científico no Labjor/Unicamp

Lívia Mendes Pereira é doutora em linguística (Unicamp) e cursa especialização em jornalismo científico pelo Labjor/Unicamp