Garimpo e rupturas entre grupos indígenas

Por Raíssa Resende de Moraes

O garimpo em terras indígenas é, hoje, do ponto de vista da legislação brasileira, uma atividade ilegal, a qual é regida por regras próprias, que não são estabelecidas pelo Estado. Em meio a um cenário de ausência do Estado, os conflitos recrudescem em torno da atividade garimpeira em terras indígenas. Dentre estes conflitos e suas consequências estão o crescimento da polarização relativa à regulamentação da atividade; a crescente violência, culminando, muitas vezes, em conflitos armados, destruição de maquinários e ameaças físicas e psicológicas; o fortalecimento de narrativas de incorporação do indígena à sociedade nacional; a tramitação no congresso de projetos de lei que não respeitam, muitas vezes, direitos adquiridos pelos povos indígenas; a alarmante situação de emergência em saúde de populações indígenas Yanomami, que resultam, dentre outros motivos, do contato com garimpeiros. Os quadros clínicos contam com inúmeros óbitos e situações de extrema de desnutrição, malária, contaminação por mercúrio, dentre outras enfermidades.

Os conflitos em torno da atividade garimpeira em terras indígenas possuem inúmeras facetas, que podem resultar, inclusive, em cisões internas às sociedades indígenas. Foi o que ocorreu no  caso estudado dos Kayapó (autodenominados Mebêngôkre), dos subgrupos Mekragnotire. Estes grupos habitam as Terras indígenas  Baú e Menkragnoti, ambas localizadas  no sudoeste do estado do Pará. Dentre outros fatores, devido à expectativa da regulamentação do garimpo no território, um grupo Kayapó favorável à atividade garimpeira decidiu por romper com aldeias contrárias, levando ao abandono da associação que representava a coletividade. Este artigo aborda primeiramente algumas questões legais pertinentes ao entendimento da questão do garimpo em terras indígenas no Brasil. Posteriormente, aborda o processo de cisão supracitado.

Requisições minerárias em terras indígenas

É notável o elevado interesse econômico para extração mineral no interior de terras indígenas no Brasil. Este interesse pode ser demonstrado pelo elevado contingente de requisições minerárias na Agência Nacional da Mineração (ANM) nestes territórios, dentre requerimentos de pesquisa mineral, lavra garimpeira, autorizações de pesquisa, e demais fases de tramitação de processos na ANM.

No caso específico das terras indígenas habitadas pelos grupos indígenas analisados, a Terra Indígena Menkragnoti, do povo Kayapó, possuía, em 2013, o segundo maior contingente de processos de interesse minerário do Brasil, contando com 395 processos de requerimento, em uma porcentagem de 68,8% do território, conforme é possível averiguar na figura abaixo:

Processos minerários nas terras indígenas pertencentes aos Kayapó. Fonte: ROLLA; RICARDO, 2013.

As controvérsias em relação às requisições minerárias em terras indígenas tiveram repaginação recente, na qual decisões judiciais resultaram na exclusão dos processos minerários em terras indígenas, como foi o caso do estado do Amazonas em 2021 (G1 AMAZONAS, 2021). Seguindo a mesma linha, no ano de 2022, por decisão do Ministério Público estadual, foi determinada a remoção dos processos de requisições minerárias da ANM incidentes em terras indígenas no estado do Pará. Ainda assim, os territórios continuam pressionadas pelos processos minerários em suas fronteiras.

Requisições minerárias na Agência Nacional de Mineração em fevereiro 2020 (esquerda) e junho 2023 (direita). Fonte: VERSTEGEN; RORATO, 2023.

Permissões de lavra garimpeira e expansão do conceito legal de garimpo

O código de mineração de 1967 conceitua o garimpo como o trabalho rudimentar e individual de mineração, que utiliza aparelhos manuais ou máquinas simples e portáteis (BRASIL, 1967). Porém, a Lei nº 7.805/1989 (BRASIL, 1989), ao atualizar as normativas sobre o garimpo, criou as Permissões de Lavra Garimpeira (PLGs), as quais não são permitidas em terras indígenas. Nas PLGs é aberta a possibilidade de o garimpo ser realizado individualmente ou mediante concessão a cooperativas, as quais, na prática, funcionam na forma de empresas.

Para o Ministério Público Federal (2020) a Lei nº 7.805/1989, ao afastar a premissa de trabalho rudimentar e individual à atividade garimpeira, ampliou o conceito de garimpo para atividades de grande porte e altamente capitalizadas. Esta mudança na legislação incentivou que a atividade tradicional fosse substituída, em grande escala, por atividade empresarial, sob a denominação de atividade garimpeira. Neste sentido, a legislação moderna abre uma interpretação para que uma ampla gama de empreendimentos possa ser considerada como garimpo, passando pelo exercício por pessoas físicas (até 50 hectares) ou por cooperativas (até 10.000 hectares). Assim, a atividade garimpeira, hoje, para além das formas rudimentares de exploração mineral, como faiscação e cata, também inclui o uso de equipamentos de alta capacidade de extração, como dragas e balsas, tratores de esteira e escavadeiras hidráulicas.

Projeto de Lei 191/2020

Na gestão federal que iniciou em 2019 e findou em 2022, a regulamentação do garimpo em terras indígenas foi apoiada e diretamente incentivada pelo poder executivo. Desde sua pré-campanha presidencial, o ex-presidente demostrava apoio a garimpeiros e ao garimpo em terras indígenas. Por meio de flexibilização na legislação e da fiscalização ambiental o governo buscou o objetivo de regulamentar o garimpo nestes territórios. Neste sentido, foi proposto o Projeto de Lei 191/2020 (BRASIL, 2020),  pelo líder do executivo à época, o qual foi retirado de pauta pelo atual presidente da república, após ampla pressão popular. O projeto previa a regulamentação de diversas atividades em terras indígenas, dentre as quais mineração, garimpo, geração de energia hidrelétrica, exploração de petróleo, gás e de agricultura em larga escala. Porém, na proposta apresentada não havia garantia de decisão dos indígenas sobre o futuro de seus territórios, prevendo apenas uma etapa de oitiva das comunidades afetadas. A oitiva consistiria, conforme conceituado no projeto de lei, em uma explicação e divulgação dos objetivos do empreendimento que haveria de ser implantado no território. A decisão em relação à sua implementação caberia ao congresso nacional,  não sendo concedido às comunidades o poder de veto. Apenas em relação à lavra garimpeira o projeto cita a necessidade de ‘consentimento’ da comunidade. O PL 191/2020 foi tratado como um assunto importante para a presidência da república na gestão que se encerrou em 2022, sendo pautado no regime de tramitação prioritária no congresso nacional. A prioridade do governo em pautar este projeto e o incentivo às atividades garimpeiras no território mudou profundamente as relações em torno da garimpo nas comunidades estudadas.

Processo de cisão entre as aldeias Kayapó

Atualmente, a maioria das aldeias Kayapó se organizam em torno de associações legalmente constituídas, que se concentram em captar e administrar recursos financeiros, aplicados em projetos de proteção das fronteiras do território e de incentivo de atividades econômicas sustentáveis. As associações Kayapó que representam estes objetivos são o Instituto Raoni (que representa parte do subgrupo Metuktire), o Instituto Kabu  (que representa parte do subgrupo Mekragnotire) e Associação Floresta Protegida (que representa parte do subgrupo Gorotire). Apesar das propostas e projetos positivos destas associações, algumas aldeias, encorajados por um possível cenário de regulamentação da atividade garimpeira, decidiram por deixar as associações de representação coletiva, visando expandir as atividades econômicas praticadas, em especial o garimpo

Em 2022, após ações da Polícia Federal de retirada dos garimpeiros, houve assinatura de um acordo por escrito para interrupção das atividades ilegais na terra indígena Baú. O acordo foi assinado na base da Operação Guardiães do Bioma, no município de Novo Progresso, no estado do Pará, uma operação integrada permanente conduzida pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública. O intuito da assinatura do documento foi aplicar um esforço institucional com finalidade de pressionar as comunidades envolvidas com atividades ilegais em cessá-las . O acordo foi assinado por representante das aldeias favorável ao garimpo e das aldeias contrárias ao garimpo, bem como de um representante do poder público, da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e representante da Operação Guardiães do Bioma (SASSINI, 2022) .

Raíssa Resende de Moraes é doutora em Ambiente e Sociedade (Unicamp) e gestora da Superintendência Regional de Meio Ambiente do Alto São Francisco

Referências

BRASIL. 277. Decreto Lei nº 277, de 28 de fevereiro de 1967. Decreta o Código de Mineração.  28 fev. 1967.
BRASIL. 7805. Lei nº 7.805, de 18 de Julho de 1989. Altera o Decreto-Lei n° 227, de 28 de fevereiro de 1967, cria o regime de permissão de lavra garimpeira, extingue o regime de matrícula, e dá outras providências.  18 jul. 1989.
BRASIL. PL 191/2020.  6 fev. 2020.
G1 AMAZONAS. “Agência Nacional de Mineração é condenada a negar pedidos de exploração em terras indígenas do AM”. Disponível em: <https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2021/08/03/agencia-nacional-de-mineracao-e-condenada-a-negar-pedidos-de-exploracao-em-terras-indigenas-do-am.ghtml>.
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Mineração ilegal de ouro na Amazônia: marcos jurídicos e questões controversas. Câmara de Coordenação e Revisão, 2020.
ROLLA, A.; RICARDO, F. Mineração em Terras Indígenas na Amazônia Brasileira. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2013.
SASSINI, V. “Aldeias de terra indígena dividida pelo garimpo fazem acordo por escrito para barrar atividade”. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2022/10/aldeias-de-terra-indigena-dividida-pelo-garimpo-fazem-acordo-por-escrito-para-barrar-atividade.shtml>. Acesso em: 2 abr. 2024.
VERSTEGEN, J. A.; RORATO, A. C. “Mining requests in Brazil‘s indigenous lands finally removed, but the battle continues”. Environmental Research Letters, v. 18, n. 10, 2023.