Transtorno do jogo foi incluído na Classificação Estatística Internacional de Doenças elaborada pela OMS
Eliane Comoli
Os games têm cada vez mais adeptos, principalmente entre jovens, e nem sempre se trata de relação saudável. Nos últimos anos aumentou o reconhecimento entre profissionais da saúde de que alguns padrões de gaming podem levar a um prejuízo considerável no funcionamento pessoal, familiar, social, educacional e ocupacional, assim como angústia psicossocial numa minoria significativa de jogadores. É o chamado transtorno do jogo – ou gaming disorder – segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Uma revisão publicada na revista científica Dialogues in Clinical Neuroscience traz mais dados sobre o impacto da tecnologia digital e da internet nos mecanismos cerebrais.
Estima-se que o problema afete entre 1,3 a 9,9% na população. Os sintomas incluem falta de controle durante o jogo, priorização do game sobre outras atividades e permanência frente à tela mesmo com consequências negativas. “São pessoas que ficam 12 horas em frente ao videogame. É algo muito intenso, e que a neurociência não elucidou completamente”, diz Alline Cristina de Campos, farmacologista do Departamento de Farmacologia da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto.
O transtorno do jogo e suas variantes online e off-line foi incluído na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID-11), elaborada pela OMS, e que entrou em vigor em 1º de janeiro de 2022. A CID-11 deve ser avaliada durante a Assembleia Mundial de Saúde prevista para maio deste ano, em Genebra. As preocupações não estão limitadas ao distúrbio do jogo em si, e incluem outros aspectos da saúde – atividade física insuficiente, dieta não saudável, problemas de visão e audição, privação de sono, comportamento agressivo e depressão.
Principais sistemas neurobiológicos envolvidos
Estudos apontam que os gamers (incluindo jogadores profissionais com estilo de vida normal) apresentam melhorias funcionais na atenção, processamento visual, função sensório-motora e controle cognitivo em relação a pessoas que não jogam. Porém, aqueles com gaming disorder apresentam funcionalidade diminuída em redes cerebrais envolvidas no controle cognitivo, na tomada de decisões e, em especial, no sistema de motivação e recompensa.
O sistema de recompensa cerebral gera incentivo e motivação para comportamentos de sobrevivência. É ativado em circunstâncias alimentares, defesa, durante o sexo, ou quando se compra algo pelo qual se sente atraído, por exemplo. Esse sistema envolve a dopamina, considerada por muitos como a substância do prazer. “Toda vez que encontramos um estímulo potencialmente prazeroso aumenta a liberação da dopamina pelo sistema de recompensa e isso nos impulsiona a buscar mais aquele prazer”, explica Lucas Albrechet de Souza, neurocientista do Departamento de Fisiologia do Centro de Ciências da Saúde da Universidade do Estado de Louisiana, nos Estados Unidos.
“Uma pessoa com gaming disorder se sente importante e motivada por estar no domínio de tudo em um mundo paralelo, e com a possibilidade de vencer”, explica Alline, que também ressalta outro componente que pode influenciar no excesso de atratividade dos games: o visual. Não é por acaso que as cores dos videogames são mais intensas. Esses estímulos visuais atraem demasiadamente a atenção. “Cores vibrantes direcionam o córtex frontal (envolvido com funções executivas e de controle) e o hipocampo (envolvido com memória e contexto) para esse mundo paralelo, ajudando o sistema de recompensa a funcionar nessa outra realidade do videogame”, completa a farmacologista.
Tanta estimulação na área de recompensa cerebral fazia os cientistas pensarem que essa região seria ultra desenvolvida nos pacientes com vício, porém uma pesquisa recente mostrou o contrário.
Um estudo que avaliou alterações cerebrais aponta que pessoas com gaming disorder apresentam uma parte do sistema de recompensa com tamanho menor – a área chamada núcleo acumbens, do lado direito. Isso fez com que os cientistas suspeitassem que essas pessoas, então, têm menos capacidade de sentir prazer. Assim, precisam de um estímulo muito mais forte. “Parece que os gamers que desenvolvem capacidade baixa de sentir prazer precisam de um estímulo muito maior para terem o funcionamento do sistema de recompensa perto do que chamamos de normal”, explica Alline.
Prazer e desordens
A neurociência busca entender os mecanismos cerebrais que geram prazer, desprazer e, eventualmente, tratamentos mais efetivos para desordens afetivas. Segundo Lucas, a capacidade para o prazer normal é essencial para a função psicológica saudável e bem-estar. “É como se fosse uma espécie de truque ousado da evolução, servindo para motivar o indivíduo”.
Um sintoma muito comum de depressão chamado anedonia – a incapacidade de sentir prazer com coisas prazerosas, como sair com os amigos – está presente em pessoas adictas aos games. “O sistema de recompensa cria empolgação, mas como para essas pessoas é muito difícil gerar esse sentimento, elas buscam outras atividades que potencializem esse sistema de recompensa”, observa Alline.
A adição ao gaming, mídia social e internet é um problema que tende a aumentar, uma vez que desempenham um papel importante na vida moderna. A OMS declara que é necessário alertar sobre o tempo que se gasta com jogos, principalmente se excluem outras atividades, bem como quaisquer mudanças na saúde física ou psicológica e funcionamento social que possam ser atribuídas ao padrão de comportamento de jogo.
Eliane Comoli é bióloga, mestre e doutora em neurociência pela USP, docente da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto-USP e cursou especialização em jornalismo científico no Labjor/Unicamp.