Futurismos

Por Carlos Vogt

Todas as crises por que passamos passam também por nós com o zumbido feroz de sons e ruídos que desagregam o nosso mundo, interior e exterior, como as matracas despedaçam os ícones da harmonia nos rituais católicos da paixão de Cristo na sexta-feira santa. E como à morte sucede a ressurreição no sábado de Aleluia e a Páscoa celebra o renascimento, as crises, mesmo as piores, tendem a passar e a elas sobrevivemos e com elas aprendemos a continuar a viver, com esperança redobrada.A pandemia do coronavírus trouxe algo não experimentado pelo mundo conformado no século XX, com as consequências das grandes guerras mundiais e, no final dos anos 1980, com a  queda do muro de Berlim, algo que veio como um improviso de surpreendente magnitude e silenciosa ferocidade.

Os valores com que trabalhávamos nos mais diversos campos foram postos em estado de suspensão e de suspeição sem que tivéssemos, até agora, conseguido enxergar, em meio à claridade do silêncio, sequer os ruídos primários do que nos espera do outro lado do presente, dessa cortina que, de repente, caiu sobre a velocidade, o abismo das mudanças climáticas, a fragmentação do trabalhador, a unificação concentrada do capital.

Vivemos na outra ponta do início de século, não só pelo tempo transcorrido entre o começo do século XX e o começo do século XXI, mas também pela inversão dos valores que um e outro anunciam até mesmo na forma de manifestos que fazem a propaganda e o alarde dos princípios e dos mandamentos dos mundos novos que  propalam.

Nesse sentido, e porque se trata aqui de futuro, vale a pena reproduzir o Manifesto Futurista, escrito por Filippo Tommaso Marinetti, publicado no dia 20 de fevereiro de 1909, no jornal francês Le Figaro, com seu elogio do perigo, da audácia, da agressividade, da violência, da velocidade, das máquinas, do carro, do militarismo, do machismo, dos elementos primordiais, da guerra, do patriotismo, do desprezo pela mulher, do ferro, do aço, da energia, do arrombamento do impossível.

Deu no que deu: a crueza da primeira guerra mundial e a crueldade dos totalitarismos na segunda grande guerra!

Manifesto Futurista

  1.  Queremos cantar o amor do perigo, o hábito da energia e do destemor.
  2.  A coragem, a audácia e a rebelião serão elementos essenciais da nossa poesia.
  3.  Até hoje a literatura tem exaltado a imobilidade pensativa, o êxtase e o sono. Queremos exaltar o movimento agressivo, a insônia febril, a velocidade, o salto mortal, a bofetada e o murro.
  4.  Afirmamos que a magnificência do mundo se enriqueceu de uma nova beleza: a beleza da velocidade. Um carro de corrida adornado de grossos tubos semelhantes a serpentes de hálito explosivo… um automóvel rugidor, que parece correr sobre a metralha, é mais belo do que a Vitória da Samotrácia.
  5.  Queremos celebrar o homem que segura o volante, cuja haste ideal atravessa a Terra, lançada a toda velocidade no circuito de sua própria órbita.
  6.  O poeta deve prodigalizar-se com ardor, fausto e munificência, a fim de aumentar o entusiástico fervor dos elementos primordiais.
  7.  Já não há beleza senão na luta. Nenhuma obra que não tenha um caráter agressivo pode ser uma obra de arte. A poesia deve ser concebida como um violento assalto contra as forças ignotas para obrigá-las a prostrar-se ante o homem.
  8.  Estamos no promontório extremo dos séculos!… Por que haveremos de olhar para trás, se queremos arrombar as misteriosas portas do Impossível? O Tempo e o Espaço morreram ontem. Vivemos já o absoluto, pois criamos a eterna velocidade omnipresente.
  9.  Queremos glorificar a guerra — única higiene do mundo –, o militarismo, o patriotismo, o gesto destruidor dos anarquistas, as belas ideias pelas quais se morre e o desprezo da mulher.
  10.  Queremos destruir os museus, as bibliotecas, as academias de todo tipo, e combater o moralismo, o feminismo, e toda vileza oportunista e utilitária.
  11.  Nós cantaremos as grandes multidões agitadas pelo trabalho, pelo prazer ou pela sublevação; cantaremos a maré multicor e polifônica das revoluções nas modernas capitais; cantaremos o vibrante fervor noturno dos arsenais e dos estaleiros incendiados por violentas luas elétricas; as estações insaciáveis, devoradoras de serpentes fumegantes; as fábricas suspensas das nuvens pelos contorcidos fios de suas fumaças; as pontes semelhantes a ginastas gigantes que transpõem as fumaças, cintilantes ao sol com um fulgor de facas; os navios a vapor aventurosos que farejam o horizonte; as locomotivas de amplo peito que se empertigam sobre os trilhos como enormes cavalos de aço refreados por tubos e o voo deslizantes dos aviões, cujas hélices se agitam ao vento como bandeiras e parecem aplaudir como uma multidão entusiasta.

Em contraposição ao vanguardismo programático de Marinetti, um século depois, em 2009, o filósofo e ativista italiano Franco Berardi publica o livro Depois do futuro (edição brasileira da Ubu Editora, São Paulo, 2019), que traz também um manifesto, agora pós-futurista (p. 174-176) que, ao contrário de anunciar e pregar o futuro, canta “a infinidade presente” sem “mais necessidade do futuro”.

Manifesto Pós-Futurista

  1.  Queremos cantar o perigo do amor, a criação diária da energia doce que nunca se dispersa.
  2.  A ironia, a doçura e a rebelião serão elementos essenciais da nossa poesia.
  3.  A ideologia e a publicidade exaltaram até agora a mobilização permanente das energias produtivas e nervosas da humanidade para o lucro e para a guerra; nós queremos exaltar a ternura, o sonho e o êxtase, a fragilidade das necessidades e o fazer dos sentidos.
  4.  Afirmamos que a grandiosidade do mundo enriqueceu-se com uma beleza nova, a beleza da autonomia. Cada um tem o seu ritmo e ninguém deve ser obrigado a correr em velocidade uniforme. Os automóveis perderam o fascínio da raridade; sobretudo, não podem mais desempenhar a tarefa para a qual foram concebidos. A velocidade se tornou lenta. Os automóveis estão imóveis como estúpidas tartarugas no tráfego das cidades. Apenas a lentidão é veloz.
  5.  Queremos cantar o homem e a mulher que se acariciam para se conhecer melhor e conhecer melhor o mundo.
  6.  É necessário que o poeta se esbanje com calor e generosidade para aumentar a potência da inteligência coletiva e para reduzir o tempo do trabalho assalariado.
  7.  Só há beleza na autonomia. Nenhuma obra que não expresse a inteligência do possível pode ser uma obra de arte. A poesia é uma ponte lançada sobre o abismo do nada para criar compartilhamento entre imagens diferentes e libertar a singularidade.
  8.  Estamos sobre o promontório extremo entre os séculos… Temos que olhar para trás de nós para relembrar o abismo de violência que a agressividade militar e a ignorância nacionalista podem desencadear a qualquer momento. Vivemos há muito tempo na religião do tempo uniforme. A eterna velocidade onipresente já está atrás de nós, na internet; por isso, agora podemos esquecê-la para encontrar nosso ritmo próprio.
  9.  Podemos ridicularizar os idiotas que difundem o discurso da guerra, os fanáticos da competição, os fanáticos do deus barbudo que nos incita ao massacre, os fanáticos aterrorizados pela feminilidade desarmante que há em todos nós.
  10.  Queremos fazer da arte uma força de mudança da velocidade da vida, gostaríamos de abolir a separação entre a poesia e a comunicação de massa, gostaríamos de tirar a mídia do comando dos mercados para entregá-la aos sábios e poetas.
  11.  Cantaremos as multidões que podem, enfim, libertar-se da escravidão do trabalho assalariado, cantaremos a solidariedade e a revolta contra a exploração. Cantaremos a rede infinita do conhecimento e da invenção, a tecnologia imaterial que nos liberta do cansaço físico. Cantaremos o intelectual rebelde, que executa um trabalho precário mas que se põe em contato com o próprio corpo. Cantaremos a infinidade presente e não teremos mais necessidade do futuro.

A novidade, o inesperado, a surpresa e o surpreendente é que, diferentemente do Manifesto Futurista que já teve seu futuro realizado, é lanterna na popa, o Manifesto de Franco Berardi punha-se diante de um futuro presentificado pelas coordenadas históricas das grandes transformações impostas ao mundo e à sociedade pelas tecnociências. Era com essas transformações em curso que nos admirávamos. De repente, um agente viral põe este processo em suspensão e obriga que aguardemos o desfecho de sua disseminação para tentarmos saber de onde vamos retomar o mundo, se será possível retomá-lo, e de onde ele nos retomará para a caminhada temporária e permanente de cada um de nós e da humanidade no concerto da natureza e da cultura.